Para propaganda falsa tem remédio
A recente manifestação de membros da CPI da Covid-19, sobre um possível pedido de indiciamento do presidente da República por curandeirismo e charlatanismo, em decorrência de sua reiterada defesa do uso de medicamentos com comprovada ineficácia no tratamento da Covid-19, reacende o debate sobre a propaganda de medicamentos no Brasil.
Por vários autores*
Além disso, o depoimento de Jailson Batista¹, diretor da farmacêutica Vitamedic, uma das principais produtoras de ivermectina no Brasil, quando admitiu que a empresa patrocinou publicidade feita pela associação “Médicos pela vida”, no valor de R$ 717 mil reais, do tratamento precoce contra Covid-19, conhecido como kit covid e que incluía a ivermectina, sem efetividade contra a doença, fortalece a necessidade de ampliação deste debate junto à sociedade.
E em plena crise sanitária, social e econômica, nos vemos diante de um projeto político nacional que atua, com intencionalidade, contra as vidas. O incentivo ao uso incorreto de medicamentos para a Covid-19, se traduziu em ampliação de produção de cloroquina, nota orientadora de seu uso por parte do Ministério da Saúde², propaganda por parte do presidente da República, além da ausência de campanhas esclarecedoras sobre os riscos da automedicação.
Embora a propaganda de medicamentos no Brasil seja lícita, é fundamental registrar que trata-se de uma atividade que está sujeita a regras específicas, conforme previsto na Constituição Federal em seu art. 220 – parágrafo 4º. Afinal, os medicamentos não são bens de consumo comuns, e sim, bens de saúde, fundamentais para o tratamento de doenças e prevenção de agravos, como as vacinas. O Estado brasileiro, ao regular a propaganda de medicamentos, exerce a sua função de mediador de assimetrias de informação e de interesses entre o produtor dos mesmos e os consumidores. (BRASIL,1988)
O direito à liberdade, e livre iniciativa da indústria de medicamentos em disseminar informações sobre os seus produtos, não pode estar acima da garantia à população do seu direito à saúde, expresso na redução de riscos no uso inadequado de medicamentos.
A obra “Vendendo Saúde: A História da Propaganda de Medicamentos no Brasil” de Eduardo Bueno e Paula Taitelbaum, editada pela Anvisa em 2008, traz uma importante análise sobre o direito à saúde expresso no contexto de Estado social em que se enquadra a Constituição de 1988, onde é possível perceber que a saúde está vinculada a vários outros temas e, por isto, transcende ao expresso na seção da saúde da Constituição (no artigo 196). Assim, para interpretar a proteção à saúde é necessário atentar para todo o contexto constitucional. Essa análise nos convida a refletir que o direito à “dignidade da pessoa humana”, expresso no artigo primeiro da Constituição, tem primazia e orienta os demais valores sociais do trabalho, da livre iniciativa, dos direitos individuais e da ordem econômica.
Por isso, o que temos acompanhado em relação à propaganda de medicamentos comprovadamente ineficazes contra a Covid-19, atenta contra a saúde e à dignidade das pessoas, e caracteriza-se como propaganda abusiva, na medida em que explora o medo em relação à pandemia e induz as pessoas a se comportarem de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde. Também trata-se de propaganda enganosa, quando emite informação falsa e induz o consumidor ao erro de se achar protegido do vírus e abandonar os cuidados de proteção, expondo-se à infecção.
A luta pela promoção do Uso Racional de Medicamentos passa, também, pela atenção às práticas relacionadas à propaganda desses produtos. A Resolução RDC/ ANVISA n°96/2008, define propaganda como o conjunto de técnicas utilizadas com objetivo de divulgar conhecimentos e/ou promover adesão a princípios, ideias ou teorias, visando exercer influência sobre o público através de ações que objetivem promover determinado medicamento com fins comerciais, exercendo impacto nas práticas terapêuticas e no comportamento das pessoas em relação ao uso. (BRASIL,2008)
Segundo a página do CEE-Fiocruz, em matéria publicada em agosto de 2017, a “exposição a medicamentos sem eficácia comprovada, risco de submissão a tratamentos inadequados, suscetibilidade a efeitos colaterais e ao agravamento de quadros clínicos são possibilidades criadas pela preponderância do viés publicitário e mercadológico no cuidado com a saúde”.[4]
A preocupação com os malefícios da propaganda de medicamentos no Brasil tem sido uma pauta central dos farmacêuticos e farmacêuticas por meio da atuação da Federação Nacional dos Farmacêuticos – Fenafar.
Em 2005, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a Federação Nacional de Farmacêuticos (Fenafar) e a Federação Nacional dos Médicos (Fenam) fizeram uma parceria com o objetivo de reduzir os efeitos do mau uso de medicamentos. Assim, iniciaram uma ação conjunta para coibir a propaganda de medicamentos, que resultou na realização de quatro seminários regionais e o fechamento com o Seminário Nacional sobre Propaganda e Uso Racional de Medicamentos, que aprofundou o debate sobre medidas para proibir a propaganda de medicamentos nos meios de comunicação e também para regular a divulgação de folhetos promocionais além da formulação de um plano de ação nacional para a inserção do Uso Racional de Medicamentos nas práticas dos profissionais prescritores e dispensadores, e que ganhou materialidade em uma série de processos no setor público e privado que envolvem o uso de medicamentos.
Nestes processos, os papéis dos profissionais de saúde, gestores, prestadores de serviço e meios de comunicação são estratégicos para a promoção do uso racional de medicamentos ao cumprir o seu fazer, no atendimento às necessidades e bem-estar das pessoas.
O SUS estabeleceu a Saúde como direito, e com o advento da Política Nacional de Assistência Farmacêutica (PNAF), em 2004, o medicamento passou a ser um insumo garantidor desse direito. Assim, mais do que responsabilizar criminalmente aqueles que buscam lucrar ou beneficiar-se politicamente de forma vil, inescrupulosa e negacionista da demanda por um “remédio” para a Covid-19, a sociedade brasileira precisa reforçar os mecanismos que a protegem da tirania na política, e da ganância do mercado, que desconsideram e desprezam as necessidades e bem-estar das pessoas, a ciência e a vida, que passa pelo fortalecimento do SUS e a submissão dos setores complementares e suplementares, na sua regulação e planejamento, incluindo a farmácia, que a partir de 2014, passou à condição de uma unidade de prestação de serviços destinada a prestar assistência farmacêutica, assistência à saúde e orientação sanitária individual e coletiva (Brasil, 2014).
Formulações acerca do uso racional de medicamentos estão sendo oferecidas à sociedade brasileira quase ao mesmo tempo das formulações das diretrizes assistenciais e gerenciais de como garantir o funcionamento do SUS, público, universal e integral. É necessário reunir forças técnicas e políticas para que as diferentes atividades econômicas da saúde atendam de fato ao interesse público e não a manutenção ou ampliação de poderes e lucros.
E definitivamente não é apenas discurso, mas inúmeras iniciativas, se já implementadas, poderiam ter evitado as nefastas consequências ao povo brasileiro. A CPI do Senado tem evidenciado esta questão, que se traduz na necessidade de concretizar ações tais como: o desenvolvimento de campanhas de conscientização da população e ação conjunta dos gestores públicos para utilização dos seus órgãos de comunicação para a promoção do uso racional de medicamentos; estímulo à aproximação das categorias de prescritores e dispensadores; conduta médica, farmacêutica e da equipe de saúde baseada nos princípios da ética, da saúde e em evidências; ação do parlamento com projetos de lei que fortaleçam a Assistência Farmacêutica como direito; retomada de debates amplos sobre a propaganda de medicamentos, com a participação do controle social do SUS.
É fundamental seguirmos somando forças com amplitude para que se tenha garantido o direito dos cidadãos à assistência farmacêutica e o respeito ao uso racional de medicamentos como instrumento essencial no contrapondo à má publicidade de medicamentos e remédios e na defesa das vidas, da ciência e da democracia.
Notas
¹À CPI, diretor de farmacêutica diz que não vendeu ivermectina ao governo – Jailson Batista confirmou que Vitamedic pagou R $717 mil em campanha que apoiava ‘tratamento precoce’, com medicamentos sem eficácia comprovada . Disponível aqui:
²Orientações do Ministério da Saúde para tratamento medicamentoso precoce de pacientes com diagnóstico da Covid-19 – Retirado do site em março de 2021.
³Fonte: MS / FIOCRUZ / SINITOX – Disponível aqui
[4]-Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz -CEE/Fiocruz. Perigosa e alienante, a publicação de medicamentos, na análise de especialistas. 22.ago.2017. Disponível aqui
Referências
Brasil, Constituição da República Federativa do Brasil, de 05.10.1988. Brasília, 1988. 11.ago.2021 Disponível aqui
Brasil, Ministério da Saúde, Agência Nacional de Vigilância Sanitária, RESOLUÇÃO-RDC Nº 96, DE 17 DE DEZEMBRO DE 2008 – Dispõe sobre a propaganda, publicidade, informação e outras práticas cujo objetivo seja a divulgação ou promoção comercial de medicamentos , Brasília,2008,. 11.ago.2021 . Disponível aqui
Brasil, Presidência da República, Casa Civil, Lei. N. 13.021 de 08 de agosto de 2014. Dispõe sobre o exercício e a fiscalização das atividades farmacêuticas. Brasília, 2014. 11.ago.2021. Disponível aqui
Bueno, Eduardo e Taitelbaum, Paula, – Vendendo Saúde: A História da Propaganda de Medicamentos no Brasil, 2008,Ed. Anvisa, Brasília – 11.ago.2021 Disponível aqui
*Autores:
Debora Raymundo Melecchi é farmacêutica, presidenta do Sindicato dos Farmacêuticos do Rio Grande do Sul, diretora da Federação Nacional dos Farmacêuticos e Conselheira Nacional de Saúde;
Maria Eugênia Carvalhaes Cury é farmacêutica, Mestre em Educação pela Unicamp;
Maria Eufrásia de Oliveira Lima é tecnóloga de Administração em Recursos Humanos e assessora sindical na Federação Nacional dos Farmacêuticos;
Ronald Ferreira dos Santos é farmacêutico, mestre em Saúde Pública pela UFSC, Presidente da Federação Nacional dos Farmacêuticos;
Alice Portugal é farmacêutica, deputada federal do PCdoB-BA.
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As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do PCdoB