Da janela de seu escritório, na Praça de São Pedro, o Papa Francisco acena durante a oração do meio-dia do Angelus, domingo (4/10) | Foto: Gregorio Borgia/AP

A recusa do Papa Francisco em se encontrar com o Secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, gerou polêmica. E, no domingo (4) o líder de uma das principais religiões do mundo, a Igreja Católica Romana, entrou em nova polêmica ao publicar uma encíclica que apela veementemente à substituição do capitalismo neoliberal por um sistema mais justo e humano.

Por John Wojcik (*)

Encíclicas são documentos raros e importantes emitidos por papas quando desejam confirmar, revisar ou iniciar uma nova política da Igreja.

Francisco declarou em sua encíclica que a atual pandemia de coronavírus sublinha a dura realidade de que o capitalismo é incapaz de atender às necessidades mais básicas da vasta maioria da população mundial e que é, de fato, responsável por grande sofrimento e guerra.

O papa Francisco escreveu que a pandemia do coronavírus provou que as “teorias mágicas” do capitalismo de mercado falharam e que o mundo precisa de um novo tipo de política que “promova o diálogo e a solidariedade e rejeite a guerra a todo custo”.

Na encíclica, intitulada “Fratelli Tuti” (“Todos Irmãos”), o Papa adverte que a economia global capitalista neoliberal tem provocado uma “nuvem negra” de injustiças que cobre o mundo e está destruindo o planeta.

Mesmo a própria Igreja Católica não ficou fora das críticas do papa, que disse que certas doutrinas da Igreja também fazem parte do problema que o mundo enfrenta, e que devem ser reformuladas.

Na encíclica, Francisco também rejeitou a doutrina secular da Igreja Católica que justificava a guerra como meio de legítima defesa , dizendo que ela foi amplamente aplicada na história e não é mais viável.

“É muito difícil hoje em dia invocar os critérios racionais elaborados nos séculos anteriores para falar da possibilidade de ‘guerra justa’”, escreveu, em um dos muitos novos elementos controversos da encíclica.

A rejeição da doutrina da guerra justa está de acordo com um movimento crescente contra as armas nucleares, especialmente na Europa. Os defensores da guerra anti-nuclear que constantemente se manifestam em uma base de mísseis nucleares dos EUA em Ramstein,

Alemanha, dizem há anos que, na era moderna, a própria guerra é o principal inimigo.
Este movimento fortalece cada vez os laços com o movimento ambientalista, condenando a deterioração da própria terra por empresas capitalistas de combustíveis fósseis com fins lucrativos.

A recusa do Papa em se encontrar com Pompeo é consistente com sua condenação do complexo militar-industrial e da abordagem perigosa e militarista dos problemas mundiais.
Pompeo, que tem sido um líder de torcida das ameaças guerreiras de Trump contra países ao redor do mundo, também atacou o papa, chamando-o de “brando” com a China.

Francisco disse em sua encíclica que o capitalismo neoliberal fez com que a “família humana se desintegrasse” e que os problemas com esse sistema remontam a muito antes do início da pandemia. Disse que a pandemia e a resposta a ela, entretanto, confirmaram sua crença de que as atuais instituições políticas e econômicas devem ser reformadas para atender às necessidades legítimas das pessoas mais prejudicadas pelo coronavírus. Pediu que os pobres do mundo tenham prioridade no recebimento de uma eventual vacina covid-19.

Deixou implícito que a recusa do governo Trump em dar instrumentos às pessoas de outros países que lutam contra o vírus é uma política que deve ser revertida. Disse também que combater o vírus exigirá mais do que apenas melhorar ou aumentar o que já está sendo feito. Disse que será preciso mais do que mexer no status quo.

“Além das formas diferentes com que vários países responderam à crise, sua incapacidade de trabalhar juntos tornou-se bastante evidente”, escreveu. “Quem pensa que a única lição a ser aprendida é a necessidade de melhorar o que já estávamos fazendo, ou apenas refinar os sistemas e regulamentações existentes, está negando a realidade.”

A encíclica também alertou os políticos que devem prestar atenção aos “movimentos populares” de massa em todo o mundo que estão lutando não apenas contra o vírus, mas por justiça econômica e social. Disse que é particularmente importante ouvir o que esses movimentos têm a dizer sobre o combate ao desemprego mundial que resultou da pandemia.

Disse que deve ser dado apoio às soluções apresentadas por esses movimentos, pelos sindicatos e por grupos marginalizados. Disse que esses grupos devem estar envolvidos na construção de uma sociedade mais justa.

“A fragilidade dos sistemas mundiais em face da pandemia demonstrou que nem tudo pode ser resolvido pela liberdade de mercado”, escreveu. “É imperativo ter uma política econômica proativa direcionada a promover uma economia que favoreça a diversidade produtiva e a criatividade empresarial e possibilite a criação de empregos, e não seu corte.”

Em uma condenação nem tão velada de Donald Trump e outros líderes mundiais de direita, Francisco denunciou a “política populista que busca demonizar e isolar” e apelou a uma “cultura de encontro” que promova o diálogo, a solidariedade e um esforço sincero de trabalho para o bem comum.

A encíclica atingiu o cerne de uma defesa ideológica tradicional do capitalismo ao abordar o conceito sacrossanto de “direito absoluto” à propriedade privada.

Francisco rejeitou esse conceito, enfatizando, em vez disso, o “propósito social” e o bem comum que deve advir do compartilhamento dos recursos da Terra. Chamou o capitalismo neoliberal de sistema econômico global “perverso”, que mantém os pobres à margem enquanto enriquece apenas 1%. Esta foi essencialmente uma repetição do que ele já havia dito em sua encíclica ambiental histórica, “Laudato Sii” (“Louvado seja”), de 2015.

Ele também enfatizou sua oposição a outras teorias usadas para justificar o sistema capitalista. Rejeitou firmemente, por exemplo, a teoria da economia “trickle-down” (“à conta gotas”) popularizada nos EUA durante os anos em que Ronald Reagan foi presidente.

“Simplesmente não funciona assim”, escreveu o Papa. “O neoliberalismo simplesmente se reproduz recorrendo a teorias mágicas de ‘ transbordamento’ ou ‘gotejamento’- sem usar o nome – como a única solução para os problemas sociais”, escreveu. “Há pouca apreciação do fato de que o alegado ‘transbordamento’ não resolve a desigualdade que dá origem a novas formas de violência que ameaçam o tecido da sociedade.”

Outra área em que Francis atingiu a política do governo de Trump foi na área dos direitos dos imigrantes.

Disse que acolher os imigrantes é necessário para que uma sociedade permaneça saudável, e condenou com veemência as políticas nacionalistas e isolacionistas de Trump e outros líderes mundiais.

A encíclica faz referências bíblicas para justificar seus pontos de vista políticos e econômicos progressistas.

Francisco aproveitou a história do Bom Samaritano, declarando que a bondade e o cuidado com os estranhos são coisas que devemos fazer hoje e que devem ser características do novo mundo que deve ser criado.

Na encíclica, Francisco codificou ainda mais sua oposição à demonização dos muçulmanos e da fé islâmica.

Uma seção sobre “fraternidade humana” e paz mundial deriva de seu apelo conjunto em 2019, com o grande imã do Egito, Al-Azhar, a venerada residência do Islã sunita, que já tem 1.000 anos. O documento “Fraternidade humana” estabeleceu a relação entre católicos e muçulmanos como “irmãos”, com a missão comum de promover a paz.

Isso pode acabar sendo tão controverso quanto sua condenação do capitalismo e seu apelo para que seja substituído. As ideas do primeiro documento conjunto católico-muçulmano da história agora fazem parte de uma encíclica papal.

Alguns católicos conservadores e líderes da Igreja conservadora atacaram o papa por ter assinado aquele documento, chamando-o de “herético”.

O documento afirma que a diversidade de religiões e crenças é “a vontade de Deus”. Isso contradiz diretamente a doutrina secular de que a Igreja Católica é a única Igreja verdadeira.

(*) John Wojcik é editor-chefe de “People’s World”.

(BL)