Pânico moral vai se intensificar nas eleições, diz especialista em religiões
Antes mesmo do início oficial da campanha, o clima de ódio entre esquerda e direita já foi estimulado pelo bolsonarismo. Caríssimos painéis estimulando ódio e pânico em relação à esquerda e supostos valores apaziguadores de direita espalharam-se por todo o país.
O tom religioso dos painéis é evidente, chegando ao nível de acusar Lula de ter “pacto com o diabo”. Mas a principal arminha utilizada pelo bolsonarismo para agregar votos à reeleição, é a esposa do presidente, Michelle Bolsonaro.
Esta é a principal novidade da campanha, segundo a jornalista e doutora em Ciências da Comunicação, Magali Cunha, pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (ISER) e colaboradora do Conselho Mundial de Igrejas.
Ela sugere que, embora a esquerda menospreze o efeito “esposa evangélica”, desde o episódio da Micheque (os cheques que Fabrício Queiroz repassou para depósito em sua conta), as frequentes aparições da bela mulher, com seus looks de “crente chique”, têm surtido o efeito desejado. O objetivo é reconquistar o eleitorado evangélico feminino perdido com as grosserias de Bolsonaro.
Magali deixa bem claro o quanto Michelle expressa um perfil de esposa admirado pelas mulheres e louvado por pastores evangélicos. Com isso, talvez a campanha nem precise apelar para ataques contra a esposa de Lula, Rosangela da Silva, a Janja, como foi aventado pela campanha.
Além disso, segundo Magali, a campanha de Bolsonaro tem um outro arsenal de ataques, coletados desde a eleição de 1989. Os de que as esquerdas perseguem as religiões, e o governo Lula fecharia igrejas, são os mais preocupantes. “Deu certo lá, e está sendo ressignificado nesta campanha”, diz a comunicóloga.
A preocupação de Magali é como a esquerda e a campanha de Lula vai lidar com os ataques provocativos. Na opinião dela, pagar com a mesma moeda, se utilizando do mesmo discurso, será um erro enorme. Em sua opinião, assim como a direita explora medos fantasiosos, a esquerda precisa atacar os medos reais com sua plataforma programática.
“Fala-se da destruição da família, muito por conta da moralidade sexual e do empoderamento das mulheres. As mulheres são a base da família, do cuidado”, menciona ela. Na opinião dela, questões econômicas como o desemprego e a perda de direitos, assim como a questão da segurança pública, podem ser tratadas como medos reais das pessoas que precisam de solução.
Além dessa reflexão, a jornalista, que é uma das coordenadoras do coletivo Bereia de jornalistas e pessoas de outras áreas que pesquisam ou têm interesse em religiões no país, mencionou as mentiras mais comuns que circulam nos grupos de WhatsApp de evangélicos. Ela explica que o sentimento de pertencimento de cada pessoa nesses grupos, facilita a circulação desse tipo de conteúdo. Tanto, que o sonho de consumo de muitos políticos é circular livremente por estes grupos de Whatsapp religiosos.
O coletivo Bereia, de checagem de informação, é o único que circula em ambiente religioso, com um tratamento específico na linguagem. Ao final da entrevista, a jornalista elencou cinco categorias de conteúdos mais frequentes entre aqueles que mais circulam como mentira, falsificação, distorção, manipulação ou imprecisão nos grupos e sites evangélicos.
Leia a íntegra da entrevista:
A senhora já esperava que a campanha começasse nesse clima de painéis apócrifos de tom religioso?
Sim, os quatro anos do governo Bolsonaro são muito ruins, do ponto de vista da retirada de direitos, da falta de políticas públicas de relevância para a população. As pessoas sabem julgar isso, daí o alto nível de rejeição desse governo, de avaliação negativa. Sobrou muito pouco em termos de apoio para Bolsonaro. Ele tem militares, alguns empresários, alguns grupos obscurantistas, e sobraram os religiosos, em especial as corporações religiosas evangélicas, e uma parcela conservadora do catolicismo. Ele tenta manter, intensificando esse apoio em cima dos setores que o deram a sua eleição em 2018, conforme sobe a rejeição na sociedade em geral.
Os ataques reciclam antigos fantasmas. Isso tem efeito significativo depois de 14 anos de governos progressistas e os últimos anos de bolsonarismo?
Tem um efeito significativo, sim. Todo esse discurso, essa instrumentalização da religião, durante o período de governo, desde 2018, foi mantido como clima de campanha . Um governo que não tem como apresentar feitos, tem que trabalhar com o emocional. Isso ele tem feito, desde 2018, reciclando, refazendo, ressignificando imaginários que permeiam a cultura política do Brasil, há muito tempo. Esse imaginário de comunismo como sinônimo de esquerda, relacionado a pânico moral em torno de questões sexuais, situação do aborto, das demandas LGBT+, tudo isso atrelado à esquerda e ao comunismo, para criar essa mentalidade de pânico moral, que vem sendo alimentada, desde 2018. Deu certo lá, e está sendo ressignificado nesta campanha.
Do ponto de vista religioso, inclusive, entra em campo uma ideia que não é nova, de que as esquerdas perseguem as religiões, o governo Lula fecharia igrejas, algo que vem desde a campanha de 1989, nas primeiras eleições diretas depois da ditadura.
As pessoas estavam lá, sabem que isso não aconteceu, mas há um efeito na forma como isso é apresentado, em especial com essa força que têm as mídias sociais e a internet com a produção de vídeo e áudio, que chega diretamente para a pessoa, numa tela de celular. Isso tem um efeito e está sendo muito bem produzido e trabalhado.
Qual sua expectativa para o tom desta campanha?
Essa campanha é a manutenção da campanha de 2018, que nunca terminou. Esse governo esteve em campanha durante esses quatro anos. Como não tem feitos, teve que manter o tom emocional com que venceu as eleições de 2018. Apesar de ser um governo marcadamente corrupto, mantém a guerra contra a corrupção, mas a comunicação é muito bem trabalhada de forma a blindar a figura do presidente. Agora, entrando, ao lado dele, a figura da esposa Michelle Bolsonaro.
Acredita que vem alguma novidade pela frente? Fala-se muito em ataques à esposa do ex-presidente Lula, que tem ocupado um papel importante em sua campanha.
O que temos de novidade é a figura de Michele Bolsonaro assumindo a dianteira. Principalmente, por ser uma mulher evangélica, que se comunica bem, que se coloca como a religiosa autêntica. O que Bolsonaro não é! Ele não é um homem religioso, não tem nenhuma identidade marcada da religião, por mais que se esforce para colocar essa imagem. As pessoas percebem isso.
Mas essa ideia da esposa que ora, que dá o sustento em oração, que está ali como “esteio da família”… Isso é uma expressão que circula muito entre evangélicos. Isso já está fazendo efeito, desde o início deste ano, quando ela foi colocada como personagem chave, acompanhando ele em todos os compromissos, e discursando. Discursando muito! Colocando a imagem da mulher evangélica nas roupas, na estética com que ela se apresenta. Criando essa identidade com o público feminino, que é justamente as mulheres que têm rejeitado mais Bolsonaro, desde 2018. E, entre os evangélicos, isso se repete. Essa já é uma novidade.
Vai se intensificar a atuação das corporações religiosas que apoiam Bolsonaro, e que têm interesses em ganhos, desde perdão de dívidas da Receita Federal, até financiamentos de projetos que vêm de emendas do orçamento do Governo Federal. Vai se intensificar, principalmente, o tom do pânico moral. De que Bolsonaro é o escolhido de Deus para salvar o Brasil dos efeitos nocivos da esquerda. Tudo isso vai ser intensificado ao longo dos dias que temos pela frente.
É preciso muita sabedoria, muita nitidez nos atos e nas estratégias de reação, para que não se tente pagar com a mesma moeda, ou se utilizar do mesmo discurso. Porque isso não vai ter efeito, principalmente sobre grupos religiosos.
Qual o medo efetivo dos evangélicos que votam alarmados com essa desinformação?
Essa questão do medo é muito forte, que já foi trabalhada desde 1989. Temos processos eleitorais cada vez menos racionais. Menos apresentação de projetos para o país, do que o trabalho emotivo, acionando os medos das pessoas.
A primeira campanha do Lula tinha como mote “sem medo de ser feliz”, porque se colocava medo nas pessoas, em termos da esquerda e do comunismo. Todos esses motes antiesquerda se trabalham em torno do Lula, que é, hoje, a candidatura mais forte. Isso já aconteceu em todas as campanhas eleitorais que Lula concorreu e, agora, esses medos são acionados. Fala-se da destruição da família, muito por conta da moralidade sexual e do empoderamento das mulheres, que se coloca como aquilo que vai destruir as famílias. As mulheres são a base da família, do cuidado. Esses medos são muito trabalhados.
Por isso, é importante que uma campanha de oposição tenha essa dimensão do medo como algo a ser trabalhado. Há medos que não passam por moralidade. Medo do futuro e do presente, em termos da alimentação, do emprego, do futuro dos jovens, medo de morrer de uma bala perdida. A questão da segurança pública gera um medo terrível.
Essa população evangélica que está, a maioria dela, nas periferias do país, são pessoas que vivem o medo de perder um ente querido. A pandemia aumentou o medo da morte. Tem famílias que foram completamente destruídas. É preciso lidar com essa dimensão do medo, também pelo outro lado. Pela questão dos direitos, que na sua ausência, redobram medo, que passam, muito além da sexualidade. É preciso ter sabedoria para lidar com essas questões.
Haveria uma vontade de impor os costumes evangélicos a toda a sociedade, como ocorre em alguns países islâmicos?
Impor costumes é algo que ocorre por parte de algumas lideranças, que têm a dimensão da religião como um exclusivismo, de que doutrinas religiosas possam ser assumidas por toda a sociedade. Isso é um sonho, um desejo, que passa por um imaginário, desde que os missionários evangélicos e católicos trouxeram sua fé para o Brasil. Todos têm a sua doutrina, que gostariam de ver assimiladas.
Quando se aprovou o divórcio, nos anos 1970, os católicos trabalharam muito contra isso, e atrelaram o divórcio ao comunismo e à esquerda, da mesma forma. Então, cada grupo religioso tem um imaginário de que a sociedade acolha suas doutrinas, o que se dá entre os evangélicos e de uma parcela de lideranças, que têm projeto de poder. Não podemos atribuir isso a toda a comunidade evangélica, que é muito diversa. Grupos muito diferentes, com progressistas, que querem defender tão só o estado laico e a liberdade de crença, a liberdade de existir e de praticar a sua fé, e que não passa por essa sede de poder e de imposição de valores.
Como tratar as fake news ou a desinformação? Existe uma abordagem mais eficaz, como checagem, ignorar ou buscar um tratamento mais dialógico com a realidade das pessoas?
Sobre fake news e desinformação, é um grande mal, em que o grupo religioso é considerado como muito afeito à desinformação. Porque ela circula com muita facilidade, pelo sentimento de pertença aos grupos religiosos.
Os grupos de Whatsapp de religiosos têm um poder muito grande, porque tudo que circula ali é pelo bem da comunidade. Tudo circula com aceitação, e as pessoas passam adiante com muita boa intenção, de que outras pessoas tenham conhecimento daquele conteúdo. Então, grupos religiosos, em geral, – cristãos, espíritas, judeus -, têm essa facilidade de transmissão de desinformação.
Para uma abordagem mais eficaz, a checagem é o que precisa ser feito. Nós temos o coletivo Bereia, que foi criado em 2019, informação e checagem de notícias. É o único com abordagem de checagem de conteúdo que circula em ambiente religioso. Para um tratamento específico e cuidadoso na linguagem e especializado com a temática da religião para atingir os grupos religiosos.
O que temos identificado é que é possível não apenas checar, mas buscar um processo educativo das pessoas. É preciso toda uma articulação. Hoje, existe uma rede nacional de combate à desinformação. O coletivo Bereia é parte de 150 grupos, do Brasil inteiro, de pesquisas de universidades, coletivos, projetos da sociedade civil, que se articulam nessa rede.
O tom é de uma ação conjunta por um processo de checagem, de denúncia, de explicitação, daquilo que é falso, enganoso, que precisa ser conhecido pela educação. Mas também de processos de educação, para ajudar as pessoas aprenderem a desconfiar. Aprender, elas mesmas, a buscarem a pesquisa e a informação correta sobre determinados fatos. Desconfiar daquilo que possa ser nocivo e desinformativo.
Um segundo ponto importante é a denúncia. É preciso denunciar quem faz isso, tornar pública a face desses grupos que atuam para interferir no espaço público com desinformação. E também trabalhar pelas leis do nosso país, para que haja punição desses grupos.
Essas são ações que todo mundo que trabalha por informação com justiça e pelo direito à informação, que é um direito humano, deve promover uma ação conjunta nesse sentido.
Existem papas evangélicos? Qual o tamanho de sua influência nas comunidades religiosas?
Não existem! Esse é um problema que nós temos no Brasil, do desconhecimento e a ignorância em relação à pluralidade religiosa e quem são os evangélicos. Estão aqui, desde o século 19, e só agora estão assumindo um protagonismo no espaço público. Por isso, geram esse interesse.
Olham os evangélicos, que são cristãos, como se fossem católicos. A Igreja Católica tem sua estrutura hierárquica de um Papa, que tem um poder doutrinário sobre esse grupo, no mundo inteiro. Os evangélicos têm dezenas de tradições, como as clássicas, as relacionadas ao mundo pentecostal, que se divide em muitos grupos com suas doutrinas específicas. Há elementos comuns, que são articulados, fé e linguagem comum. Mas há muitas práticas sobre quem preside e coordena a igreja, cada um com sua organização.
O que existe é um equívoco das mídias que fazem a cobertura da religião e que dão destaque para este ou aquele líder religioso. Há o exemplo do pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus, que é colocado como uma referência ouvida sempre, uma fonte do mundo conservador. Mas ele não representa os evangélicos. Até mesmo os evangélicos conservadores tem queixas sobre esse credenciamento que é dado à figura de Silas Malafaia. Então, há também as lideranças que estão no mundo progressista e que são invisibilizadas por isso. Essa diversidade não permite que haja um porta-voz, como existe no mundo católico, que é o Papa e os bispos.
Mas existem, sim, as lideranças de grandes corporações, como as Assembleias de Deus e as lideranças midiáticas, que ganham visibilidade, e que acabam tendo influência. Uma articulação que permite arrebanhar apoios e influenciar. Mas isso não é uma unanimidade. Há divergências muito grandes, inclusive entre os grupos conservadores.
Quais são as mentiras mais persistentes e porque perduram?
Fizemos no coletivo Bereia, um apanhado sobre as cinco principais notícias no mundo religioso e evangélico, principalmente, que têm uma ressonância em todas as igrejas. Dessas, eu destaco a questão da perseguição religiosa, a cristofobia, que parece o tom forte para a campanha deste ano. Criar pânico em torno da perseguição religiosa. Uma coisa velha, antiga, que vem desde 1989, mas que tem sido reconstruída e repaginada.
O primeiro tema destacado na checagem de desinformação em ambientes religiosos é sobre a pandemia de covid-19, que foi alvo de mentiras questionadoras das medidas de isolamento social, disseminadoras de tratamentos preventivos e curativos, acusatórias à China e à Organização Mundial de Saúde e opositoras à campanha de vacinação.
O segundo tema foi o da “ideologia de gênero”, esta que pode ser classificada como a mais bem-sucedida concepção falsa criada no âmbito religioso. Surgido no ambiente católico e abraçado por distintos grupos evangélicos, que reagem aos avanços políticos no campo dos direitos sexuais e reprodutivos, o termo trata de forma pejorativa as ações diversas por justiça de gênero, atrelando-as à ideologia, no sentido banalizado de manipulação e ilusão. A “ideologia de gênero” é falsamente apresentada como uma técnica “marxista”, com vistas à destruição da “família tradicional”, gerando pânico moral e terrorismo verbal entre grupos religiosos.
A terceira mentira mais veiculada em ambientes religiosos é a da cristofobia, ou a perseguição religiosa a cristãos no Brasil. O termo nem se aplica, por conta da predominância cristã no País, onde há plena liberdade de prática da fé. Uma estratégia de políticos e religiosos extremistas que usam a palavra para falarem contra os direitos daqueles que consideram “inimigos da fé”. Ou seja, contra ativistas de direitos sexuais e reprodutivos, religiosos não cristãos e até cristãos progressistas.
A quarta mentira propaga que há uma ameaça comunista em curso no mundo, liderada pela China. Na nova abordagem, comunistas tornam-se sinônimo de todos os que propagam justiça econômica (defesa de programas de distribuição de renda, por exemplo), advogam os direitos humanos, em particular os das minorias, e reivindicam e atuam na superação de violência racial, cultural, de gênero e de classe.
A quinta mentira que tem circulado em ambientes religiosos é a imagem do presidente Jair Bolsonaro como evangélico convertido e a apresentação do seu governo, por influenciadores e políticos apoiadores, como um sucesso.
Por Cezar Xavier