Por Osvaldo Bertolino*

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“O Partido Comunista do Brasil não faz proselitismo em função do Araguaia. Nosso Partido achou que cumpriu o seu dever, de procurar, em condições difíceis, o caminho da resistência, preparando o fim do regime de tirania implantado no Brasil. O Partido Comunista simplesmente cumpriu o seu dever, e cumprirá em qualquer circunstância, porque é um Partido integrado com as raízes do nosso povo e que aspira a um regime de liberdade, de justiça social, de esperança para a nossa gente tão sofrida e humilhada, sujeita a um processo de degradação que horroriza a todos nós. Que vivam eternamente na lembrança dos brasileiros os feitos gloriosos dos guerrilheiros do Araguaia.”

João Amazonas, em audiência pública da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, no dia 16 de maio de 1996.

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“Seria oportuno que as Forças Armadas proclamassem que tais crimes contra o povo jamais serão repetidos. As Forças Armadas são instituições pagas com o dinheiro do povo, não podem tê-lo como inimigo principal. É necessário que repudiem tais crimes, condição para que possam contar com a simpatia do povo, preparando-se para as grandes batalhas que poderão advir em defesa da soberania e da independência da Pátria.”

João Amazonas, em audiência pública da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, no dia 16 de maio de 1996.

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“Companheiros, dirijo este Partido — como principal dirigente, digamos assim — desde 1962. Claro que não era somente eu, pois se tratava de uma direção coletiva de companheiros abnegados, de quem não posso falar sem lembrar com saudades e com respeito pela sua combatividade — companheiros como Maurício Grabois, Pedro Pomar, Lincoln Oest, Carlos Danielli, Ângelo Arroyo, Luis Guilhardini e outros tantos que estiveram presentes na direção deste Partido e que pagaram alto preço pela coragem de desafiar um regime de traição e brutalidade em nosso país, para defender os interesses do nosso povo. Esses companheiros foram todos assassinados pela repressão e morreram com honra no seu posto de luta.”

João Amazonas, no 10º Congresso do Partido Comunista do Brasil (PCdoB).

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A Guerrilha do Araguaia faz parte das marcas populares gravadas na história do Brasil de forma indelével. Mas, como convém aos que analisam os acontecimentos históricos à luz dos interesses ideológicos dominantes, a resistência à ditadura militar organizada pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB) é majoritariamente apresentada como fato passageiro — um mero choque entre grupos extremados à esquerda e à direita, deflagrado pelos primeiros com a opção da luta armada.

A retórica em geral transforma-se em palavras ao vento, mas o que é escrito e gravado torna-se referência históricas. O que foi publicado desdobrou-se em entrevistas e proselitismos de toda forma, uma mobilização do que há de mais rancoroso na mídia para dar eco às deformações e difamações ao estilo Joseph Goebbels – a transformação de mentiras em verdades à força de repetição.

Gay Talese, um dos criadores do jornalismo literário nos Estados Unidos, dizia que o realismo é fantástico. A constatação corrobora a lógica de que a história da Guerrilha Araguaia contada pelos fatos tem muito mais qualidade. A opção pela ficção é um claro viés ideológico, a militância de um certo de tipo de jornalismo que se propagandeia isento para, do alto dos impérios midiáticos, lançar diatribes e forjar empreendimentos ideológicos a serviço de causas escusas.

É um tipo de militância que rende dividendos, prêmios e até títulos acadêmicos, já definido como indústria do anticomunismo. Desde que Karl Marx e Friedrich Engels lançaram o Manifesto do Partido Comunista, em 1848, considerado o primeiro documento programático do comunismo, essa militância age freneticamente. “Todas as potências da velha Europa se uniram em uma santa campanha difamatória contra ele: o papa e o tsar, Metternich e Guizot, radicais franceses e policiais alemães”, escreveram.

A máxima de que uma maré crescente eleva todos os navios se aplica aqui. Com a marcha da extrema direita, nominada em diferentes épocas com marcas que se tornaram símbolos de inimigos da humanidade – o mais conhecido deles é o nazifascismo –, a apologia a genocídios ganha ares de normalidade, constatação agora comprovada nas ficções apologéticas à barbárie da ditadura militar contra a Guerrilha do Araguaia. É um aval ao conceito de operações definido como “guerra suja”, pelo qual não havia regras para as perseguições aos guerrilheiros e ao povo.

Foi uma violação das convenções de guerra e da doutrina de Nuremeberg, que julgou e condenou os criminosos nazistas, acolhida pela Organizações das Nações Unidas (ONU) em 1948 no documento conhecido como Convenção sobre o genocídio. A palavra “genocídio” surgiu exatamente para situar as atrocidades contra os povos desde que o mundo começou a viver sob constante ameaça de guerra. Ela se consolidou no Tribunal de Nuremberg por iniciativa do jurista polonês Rafal Lemkin, integrante do grupo de trabalho encarregado de preparar os julgamentos. Aliás, o termo cabe perfeitamente para situar o atual presidente da República, Jair Bolsonaro, sobre a sua conduta a respeito da pandemia da Covid-19.

A “guerra suja” no Araguaia teve precedentes na Comuna de Paris, na Guerra Civil na Rússia no imediato pós-Revolução de 1917, na Segunda Guerra Mundial, na Guerra da Coreia, na Guerra no Vietnã, entre outras. A reação violenta aos ideais progressistas é a arma do sistema que, em decadência, não encontra força moral para se manter. Lênin, o líder da Revolução Russa, analisou o fenômeno numa vasta produção, demonstrando que a guerra é um recurso essencialmente de quem já não possui condições para se manter diante da acumulação de contradições.

Os socialistas sempre condenaram as guerras entre os povos como atitudes bárbaras e brutais, disse ele na obra publicada com o título O socialismo e a guerra. “Mas a nossa atitude em relação à guerra é fundamentalmente diferente da dos pacifistas (partidários e pregadores da paz) burgueses e dos anarquistas. Distinguimo-nos dos primeiros pelo fato de compreendermos a ligação inevitável das guerras com a luta de classes no interior do país, de compreendermos a impossibilidade de suprimir as guerras sem a supressão das classes e a edificação do socialismo”, escreveu.

Os socialistas também reconhecem inteiramente o caráter legítimo, progressista e necessário das guerras civis, isto é, das guerras da classe oprimida contra a classe opressora, dos escravos contra os escravistas, dos camponeses servos contra os senhores feudais, dos operários assalariados contra a burguesia, disse ele. “Nós, marxistas, distinguimo-nos tanto dos pacifistas como dos anarquistas pelo fato de reconhecermos a necessidade de estudar historicamente (do ponto de vista do materialismo dialético de Marx) cada guerra em particular”, constatou.

Lênin lembrou que na história houve repetidamente guerras que trouxeram todos os horrores, atrocidades, calamidades e sofrimentos inevitavelmente ligados a qualquer guerra. Mas as guerras à guerra foram progressistas, úteis ao desenvolvimento da humanidade, ajudando a destruir instituições particularmente nocivas e reacionárias. “A grande Revolução Francesa abriu uma nova época na história da humanidade. Desde então e até à Comuna de Paris, de 1789 a 1871, um dos tipos de guerras foram as guerras de carácter progressista burguês, nacional-libertador”, avaliou.

As guerras de libertação nacional marcaram o século XX, a mais aguda a que liquidou a máquina militar nazifascista. Na Coreia e no Vietnã a guerra do povo também legou importantes feitos para a humanidade. Naquele contexto, a “Nova Ordem” de Adolf Hitler fora sucedida pela “Doutrina Truman”, o nome dado à política externa do governo Harry Truman para unir o bloco de países capitalistas no pré-Guerra Fria, essencialmente anticomunista. As bombas atômicas no Japão – Hiroshima e Nagasaki – e o bombardeio de Dresden, na Alemanha, foram uma espécie de cartão de visitas da ordem capitalista-imperialista que emergiu das cinzas da Segunda Guerra Mundial.

O golpe militar no Brasil, em 1964, fez parte desse corolário ideológico. Falando ao jornal O Estado de S. Paulo na ocasião, o embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Lincoln Gordon, disse que “a revolução de 1964” estava entre os acontecimentos mais importantes para o “ocidente”, ao lado “do Plano Marshall, do bloqueio de Berlim e da derrota dos comunistas na Coréia”. Eram tempos de consolidação do modelo econômico do dólar como padrão financeiro mundial, das hostilidades na fronteira da Segunda Guerra Mundial chamada por Winston Churchill de “cortina de ferro” e da corrida armamentista da Organização do Atlântico Norte (Otan).

A instrumentalização de um grupo de militares para a missão de dar forma a essa ordem mundial imperialista com epicentro nos Estados Unidos – a “conquista do Estado”, como definiu René Armand Dreifuss em seu livro com esse título – foi denunciada pelo PCdoB no documento O golpe de 1964 e seus ensinamentos, de agosto daquele ano do golpe. “Sub-repticiamente, a máquina do golpe foi sendo montada no Exército. A Escola Superior de Guerra transformou-se em antro de conjura”, fundada por inspiração do Pentágono. “Desde a sua criação, essa Escola vem elaborando, com a ajuda de técnicos norte-americanos e de reacionários brasileiros, todo um programa de administração do país calcado nas ideias dos monopolistas dos Estados Unidos”, diz o texto, retratando a realidade daquele tempo.

Essa instrumentalização conta muito na análise do papel das Forças Armadas, como demonstra o livro História Militar do Brasil, de Nelson Werneck Sodré, publicado em 1965. Em um alentado trabalho publicado na revista Estudos sociais, em 1958, o jornalista e escritor comunista Rui Facó mostra que o Exército e as Forças Armadas em geral não formam algo à parte na sociedade, nem tampouco em relação ao poder político, como uma muralha chinesa. Não estão acima das classes ou à margem delas.

No movimento abolicionista, o Exército desempenhou papel de magna importância ao recusar-se a caçar escravos fugidos. “E se podemos buscar características especiais para as Forças Armadas – e em particular o Exército –, uma das mais notáveis, em toda a nossa história, é precisamente essa: sua militância política. Se generais e marechais procuram fazer a política das classes dominantes, a massa do Exército se orienta no sentido das mais puras aspirações populares. Em todos os movimentos revolucionários na história do Brasil, desde os fins do século XVIII, nas fileiras das Forças Armadas destacaram-se homens que são nomes de legenda no coração do povo: desde Tiradentes e Pedro Ivo até Prestes e Siqueira Campos”, escreveu Facó.

A tentativa de dar sutileza à deformação dessa realidade ocorre também por meio do que o jurista argentino Jaime Malamudi Goti chamou de “teoria dos dois demônios”, a falácia de um suposto enfrentamento equânime. A tese legitima o golpe e deslegitima a resistência democrática, uma grosseira deformidade histórica. E uma das formas utilizadas é a de separar a criatura do criador, a Guerrilha do seu mentor e organizador, este o “demônio” a ser execrado.

Essa forma implica questões de fundo, estratégicas. O PCdoB definiu o caminho da guerra popular com base na teoria de Lênin sobre a organização revolucionária. Seria a guerra do povo, um longo caminho para a libertação nacional dos ditames que Lincoln Gordon explicitou na entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo. Esse caminho indica, sem margem para dúvidas, que a Guerrilha do Araguaia faz parte da essência leninista do PCdoB, como registraram Maurício Grabois e João Amazonas no documento A atualidade do pensamento de Lênin, escrito em 1970 na selva amazônica.

Foi a primeira manifestação pública de divergências com o Partido Comunista da China sobre a tese do “Pensamento de Mao Tse-tung” como uma “nova etapa do marxismo”. A inspiração da Revolução Chinesa passava antes pelo pensamento de Lênin, conforme explicita o documento Guerra popular — caminho da luta armada no Brasil, de 1969, que expôs, “nos aspectos essenciais”, a concepção “da luta armada em que todo o povo brasileiro se empenhará para livrar o país da ditadura e do domínio imperialista norte-americano”.

Os ensinamentos de Lênin sobre o partido, a luta ideológica, o papel das massas, a violência revolucionária e o internacionalismo, entre inúmeros outros, constituem poderosos meios nas mãos dos revolucionários, diz o documento A atualidade do pensamento de Lênin. “O pensamento de Lênin sobre o papel do partido e das massas impregna a orientação do PC do Brasil”, prossegue.

Para Lênin, conforme mostra sua vasta produção revolucionária, a organização partidária é central. A obra Que fazer? é a fonte inicial da teoria política de partido de novo tipo. O assunto esteve em suas avaliações sobre os revolucionários da Comuna de Paris, partindo do que dissera Karl Marx. Não havia um partido operário, não havia uma séria organização política do proletariado, nem fortes sindicatos, nem grandes cooperativas, disse Lênin.

A teoria leninista de organização partidária era muito cara para a Guerrilha do Araguaia, assunto que esteve também no centro dos debates que perpassaram a segunda metade da década de 1970 e o início da década de 1980. O desfecho se deu no 6º Congresso, em 1983, depois dos debates no Comitê Central até a Chacina da Lapa em 1976 e na 7ª Conferência, concluída em 1979.

O PCdoB vinha de uma longa experiência de resistência democrática – que passou pelo Levante de 1935, pelo enfrentamento à ditadura do Estado Novo e pelo combate ao governo do general Eurico Gaspar Dutra. O Brasil no pós-Segunda Guerra Mundial também foi analisado sobretudo nos documentos Manifesto de 1948 e Manifesto de Agosto, de 1950, mais tarde, no 4º Congresso de 1954, minuciosamente examinados nos longos debates para a elaboração do Programa. A Conferência Extraordinária que reorganizou o Partido Comunista do Brasil em 1962 e a 6ª Conferência, de 1966, também mergulharam no tema.

Essa elaboração balizou as tomadas de decisões sobre o combate à ditadura militar. “Combatendo as correntes pequeno-burguesas (o chamado foquismo), os comunistas voltaram sempre o gume de seu ataque às concepções que elas defendem de desprezo pelas massas. A orientação do Partido sobre a luta armada, exposta no documento Guerra popular, caminho da luta armada no Brasil, tem como viga-mestra a participação das grandes massas na luta libertadora”, escreveram Maurício Grabois e João Amazonas no documento A atualidade do pensamento de Lênin.

O pressuposto de guerra popular, como se nota, não era meramente semântico. Se a guerra era do povo, cumpria organizar o povo em diferentes locais do país, como documentou a 6ª Conferência. Com base nessa resolução, o Partido criou três grupos de trabalho — um dirigido por Pedro Pomar e Ângelo Arroyo, outro por Maurício Grabois e João Amazonas, e um terceiro por Carlos Nicolau Danielli.

O Araguaia era apenas um deles, um local mais apropriado para proteger os que estavam na mira do terrorismo de Estado, sobretudo após o Ato Institucional número 5 – AI-5 –, de 1968. O início dos ataques aos guerrilheiros, em abril de 1972, se deu quando outros pontos passavam por desmobilizações, uma fase em que nem as preliminares iniciais da guerra popular estavam dadas. A repressão havia fechado o cerco sobre a resistência, com o objetivo de liquidar todas as organizações que atuavam na clandestinidade.

A logística de São Paulo, sob o comando de Carlos Nicolau Danielli, o secretário de Organização do PCdoB – a base material da Guerrilha –, caiu nas mãos da repressão na virada de 1972 para 1973. Danielli foi cruelmente assassinado no DOI-Codi paulista em 31 de dezembro de 1972 pelo facínora Carlos Alberto Brilhante Ustra, pessoalmente. A Comissão de Organização também foi dizimada, com os assassinatos de Lincoln Oest, de Luiz Guilardini e do jovem Lincoln Bicalho Roque, dirigente da União da Juventude Patriótica (UJP), fundamental na ligação com a Comissão de Organização.

Reconstituí essa história na biografia Testamento de luta – a vida de Carlos Danielli, totalmente ignorada pelos caluniadores do Araguaia por ser esteio da história da Guerrilha. Da mesma forma, as biografias de Pedro Pomar, de Maurício Grabois – também de minha autoria – e de João Amazonas – de autoria de Augusto Buonicore – são essenciais para quem analisa aquele episódio. Ignorá-las faz parte do negacionismo que transforma um fato da mais relevância para a história do povo brasileiro em reles ficção.

São obras que dão a dimensão histórica da Guerrilha do Araguaia – além do filme Osvaldão, derivado de um documentário com participação do líder guerrilheiro Osvaldo Orlando da Costa feito na Tchecoslováquia na década de 1950, que tomei conhecimento em conversas com o filho de Pedro Pomar, Eduardo, quando preparava a biografia de seu pai –, um movimento de resistência popular que se inscreve entre os mais importantes do povo brasileiro. Havia ali, condensados, dois veios cujas nascentes remontam aos primórdios do Brasil como nação.

A tentativa de desqualificá-lo insere-se na mesma lógica de certos falsificadores da história sobre o levante mineiro – a chamada “Inconfidência Mineira” –, afirmando que o episódio só teve repercussão devido à morte violenta de Tiradentes, ignorando a clareza de objetivos e a amplitude do movimento. Foi igualmente assim com Canudos e Contestado, revoltas populares também impiedosamente esmagadas. E tantos outros episódios marcantes da luta do povo. Os repressores sabiam perfeitamente o que faziam — ao punir com rigor os revoltosos tinham consciência do que estava em questão. As calúnias ao Araguaia dão razão a esses repressores. Cumpre desmascará-las sistematicamente. É o que faz este livro.

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Osvaldo Bertolino* é jornalista, escritor e historiador

 

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