Orlando Silva
Deputado Federal Orlando Silva | Foto: Richard Silva/Câmara dos Deputados

Não acho que derrubar estátuas seja um bom caminho, mas a reação dos recém-conversos defensores da estatuária pública é estranha e pediria certa análise.

Por Orlando Silva*

Ainda que a derrubada seja um erro, o que é discutível, é normal toda esta gritaria repentina? É razoável chamar o movimento de ditatorial, violento e… fascista? Não é estranho que o movimento que colocou o governo Trump em colapso seja lido apenas ou principalmente por estes atos?

É importante lembrar que estamos falando em monumentos públicos cuja principal função é construir uma memória coletiva. Eles ficam espalhados pela cidade justamente por isso: porque têm a função política clara e assumida de construir um discurso sobre o passado.

Se eles têm uma missão política no nosso mundo, se estão destinados a construir uma memória coletiva, então não são sagrados, indiscutíveis e intocáveis. Se estão dentro de um contexto político, devem ser discutidos politicamente, devem ser alvo da deliberação pública. Claro que essa definição é sempre subjetiva, mas uma estátua do presidente Campos Salles, em uma praça de Campinas, não é a mesma coisa que uma Pietá de Michelangelo dentro de uma igreja italiana, ainda que esta também traga em si um discurso.

Alguém pode dizer que não é contra discutir politicamente e mesmo remover os monumentos, mas é contra retirar à força. Se o autor da assertiva estiver no campo democrático, sabe que o protesto de rua acontece quando os canais de deliberação política institucional não são capazes de canalizar aquele processo, seja porque estão entupidos, seja porque o caráter questionador da luta está em um patamar que não permite essa absorção. Em suma, estátuas em locais públicos são política e a política das ruas é legítima. Para se concordar com isso não é necessário ser de esquerda, basta ser um liberal de verdade.

Quando olhamos para uma cidade, vemos uma versão da história. Essa narrativa não é neutra, mas apresenta tanto uma visão sobre o passado quanto uma posição sobre o presente e o futuro. Fazendo uma corruptela de uma frase famosa, a cidade dominante do ponto de vista de seus monumentos é a cidade do discurso dominante.

Às vezes, grandes movimentações de massas têm objetivos mais imediatos: um aumento de salário, barrar um corte de verbas, derrubar um personagem da política. Mas, em momentos especiais, estes movimentos têm sentidos mais profundos, mais estratégicos, ainda que possamos simpatizar ou não com eles. Nessas horas, as pessoas estão na rua porque têm outra visão sobre o que foi o passado, o que é o presente e o que deveria ser o futuro. É natural que, nessas circunstâncias, elas entrem em choque com esse tipo de discurso sustentado por monumentos e nomes de logradouros.

Bom lembrar que o palco dessas lutas é justamente a cidade: suas ruas, praças e avenidas. É nesse espaço público que ocorre esse encontro um tanto dramático entre estátuas e multidão, as primeiras representando o mundo que existe, a segunda um novo tempo desejado. As ruas nas quais a história é feita têm nome e muitas vezes é contra eles que se luta, que se joga a batalha política sobre o que deve ser o futuro. Não é compreensível que o confronto se estabeleça? Fico pensando que as pessoas que estão assim tão ciosas das fortes experiências estéticas que uma estátua de Nilo Peçanha, na rua da Quitanda, proporciona, poderiam pensar na dimensão estética desse acontecimento, desse encontro entre dois discursos.

Durante a Revolução Russa, antes dos bolcheviques chegarem ao poder, houve ataque massivo aos monumentos do czarismo. As massas tinham ódio do que eles representavam, do que diziam sobre o passado, o presente e o futuro. Quando no poder, os bolcheviques se concentraram em retirar essas referências. Eram fascistas as massas em revolta, os mencheviques e bolcheviques? Por outro lado, quando essa experiência foi derrotada e caíram a URSS e o Leste Europeu, as massas atacaram as estátuas erguidas pelos comunistas, sob aplausos de boa parte dos atuais apaixonados pelos Borba Gatos de nosso tempo. Independentemente de sua posição sobre a queda das primeiras experiências socialistas, eu pergunto: eram fascistas aquelas massas, ou estamos diante de uma espécie de padrão histórico que se repete nessas situações?

Quando o fascismo, o salazarismo e o franquismo caíram na Península Ibérica e na Itália, centenas de monumentos foram destruídos pelos populares. Deveriam ter sido preservados? Isso é discutível. Mas o que importa para o meu raciocínio: eram ditatoriais, violentas e fascistas as massas que lutaram contra o fascismo? Essa conclusão parece absurda. Deveriam os argelinos, haitianos e vietnamitas conviver com os monumentos aos franceses que os escravizaram, massacraram e destruíram em nome da manutenção da história?

Uma herança do passado pode ser ressignificada, criticada ou mantida como lembrete do que não queremos repetir, mas nenhuma dessas atitudes é intrinsecamente melhor ou mais democrática do que a sua retirada. E, mais importante, é preciso respeitar quem está lutando por toda a Humanidade neste momento.

Entendo que haja uma justa preocupação com aonde esse ímpeto poderia parar. É verdade: grande parte dos maiores feitos artísticos da humanidade são discursos que refletem as ideias dos setores dominantes de determinada época, e isso precisa ser discutido. É preciso discutir democraticamente fronteiras. Durante a Revolução Francesa, por exemplo, esses limites foram ultrapassados, e o confronto entre passado e presente levou à destruição de peças de arte que (essas sim!) eram patrimônio de toda a Humanidade. Mas deveríamos nos perguntar por que não ocorreu a ninguém razoável chamar Robespierre e Danton de fascistas.

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