Putin falou a Guterres sobre esforços da Rússia por um diálogo construtivo na solução do conflito na Ucrânia

Apresentando-se como “mensageiro da paz”, o secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, foi recebido no Kremlin pelo presidente russo Vladimir Putin, na terça-feira (26), depois de se reunir com o chanceler Sergei Lavrov. A Guterres, Putin disse esperar que um acordo de paz seja alcançado e debateu com o chefe da ONU a questão do conflito na Ucrânia.

Na quarta-feira, Guterres foi a Kiev, para discutir com o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky. O chefe do regime de Kiev não havia escondido a irritação pelo fato de Guterres ter primeiro ido a Moscou na busca de uma negociação de paz.

O secretário-geral da ONU trouxe à Rússia a proposta de que os corredores humanitários sejam coordenados, conjuntamente, pela ONU e pelos dois lados do conflito, como forma de “salvar vidas e reduzir o sofrimento” e se disse preocupado com a situação em Mariupol.

Putin enfatizou o compromisso da Rússia com a ordem internacional sob a Carta da ONU e repeliu a “ordem mundial sob regras” – a mais recente formulação sobre o mundo unipolar agonizante – que certos países tentam impor aos demais.

Ele também se dispôs a debater com Guterres as circunstâncias e a legitimidade da operação especial militar russa em proteção ao Donbass ameaçado de limpeza étnica, ao abrigo do artigo 51 do Capítulo 7 da Carta da ONU (direito de defesa). O secretário-geral insistiu em que houve violação da Carta.

Sobre os corredores humanitários em Mariupol, o presidente russo asseverou a Guterres que ele fora mal informado sobre a realidade, destacando que “eles funcionam” e que mais de 100 mil pessoas os usaram.

Em relação aos “civis de Mariupol”, encurralados na siderúrgica cercada Azovstal, Putin enfatizou que “se há civis na instalação, os militares ucranianos devem deixá-los sair”.

Putin esclareceu a Guterres que a siderúrgica “está completamente isolada, eu ordenei que não haja combates lá”. “Ouvimos das autoridades ucranianas que há civis lá, então os militares ucranianos devem deixá-los sair ou eles estariam agindo como terroristas, como o Estado Islâmico na Síria usando civis como cobertura”.

Quanto aos militares ucranianos cercados na siderúrgica o presidente russo assinalou que eles têm o  exemplo de seus camaradas que depuseram as armas [mais de 1.500] e estão sendo tratados condignamente.

“Se, caro secretário-geral, os representantes da Cruz Vermelha Internacional e da ONU quiserem ver como e onde eles são mantidos, como os feridos são tratados, por favor, estamos prontos para oferecer essa oportunidade”, acrescentou.

Negociações de paz

Em seu encontro com Guterres, o líder russo disse que continua esperando que um acordo de paz duradouro possa ser alcançado. “Apesar do fato de que a operação militar está em andamento, ainda esperamos poder chegar a acordos também na via diplomática. Estamos mantendo negociações, não vamos desistir delas”, disse Putin ao secretário-geral da ONU.

“Além disso, nas conversações em Istambul [em 29 de março]… conseguimos alcançar um avanço bastante significativo, porque nossos colegas ucranianos não vincularam demandas por garantias de segurança internacional com questões como ‘fronteiras internacionalmente reconhecidas da Ucrânia’. Crimeia, Sebastopol e as repúblicas do Donbass, reconhecidas pela Rússia, foram deixadas de fora, embora com algumas reservas”, acrescentou.

Infelizmente, disse Putin, depois que esses acordos foram alcançados, e depois que Moscou deu passos para que as negociações continuassem, inclusive retirando tropas de áreas ao redor de Kiev e Chernigov, “fomos recebidos com a provocação no assentamento de Bucha, com a qual o Exército russo não tem nada a ver”. “Sabemos quem fez isso, quem planejou essa provocação, quais recursos e pessoas estiveram envolvidas”, enfatizou.

Intransigência

A partir daí, e sob um influxo crescente de armas, a Ucrânia vem dificultando as negociações e passou a exigir que se dêem ao nível dos chefes de estado, antes de qualquer acordo concreto, inclusive sobre questões como o status da Crimeia e do Donbass, afirmou Putin.

“Para nós, é óbvio que se essas questões forem levadas ao nível dos chefes de Estado, sem terem sido previamente acordadas, pelo menos em forma de rascunho, não serão resolvidas. Assinar um acordo de segurança sem resolver questões territoriais é algo que simplesmente não podemos fazer”, enfatizou o presidente russo. No entanto, as negociações continuam no formato online.

Putin reiterou a posição russa sobre as causas profundas da crise ucraniana, observando que “todo o problema surgiu após o golpe de estado ocorrido na Ucrânia em 2014. Este é um fato óbvio. Pode-se chamá-lo como quiser ou ter qualquer apego que seja por aqueles que o realizaram, mas isso realmente foi um golpe inconstitucional.”

Foi depois disso, lembrou o presidente russo, que os moradores da Crimeia optaram por romper com a Ucrânia e se juntar à Rússia, da mesma forma que as pessoas em Kosovo, Sérvia, se separaram da Sérvia, “com a única diferença de que na Crimeia e Sebastopol isso foi feito em um referendo”.

Também no leste da Ucrânia, disse Putin, os moradores locais “não apoiaram o golpe e seu resultado, mas enfrentaram uma pressão muito séria, incluindo uma operação militar em grande escala envolvendo o uso de aviação e equipamentos militares pesados”.

Acordos de Minsk descumpridos

A Rússia, assinalou Putin, juntou-se a seus parceiros europeus na elaboração dos Acordos de Minsk em 2015, na tentativa de resolver a situação pacificamente. “Infelizmente para nós, ao longo de oito anos, as pessoas que viviam nestes territórios foram, em primeiro lugar, submetidas a um bloqueio, com as autoridades de Kiev dizendo publicamente que estavam organizando um bloqueio desses territórios, e continuaram a pressão militar”.

Nestas circunstâncias, depois que as autoridades de Kiev disseram publicamente – “e eu gostaria de enfatizar isso” – que “não pretendiam cumprir com esses Acordos de Minsk”, fomos “forçados – com o objetivo de parar o genocídio das pessoas que vivem nestes territórios – a reconhecê-los como Estados soberanos e independentes”.

Depois disso, disse Putin, as Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk apelaram à Rússia por assistência em meio à agressão militar ucraniana, e Moscou foi forçada a responder com sua operação militar.

Donbass

Falando da situação no Donbass, o presidente russo lembrou que, nos documentos do Tribunal Internacional de Justiça das Nações Unidas sobre a situação no Kosovo, está estipulado que “recorrendo ao seu direito à autodeterminação, um território de um não-Estado não está obrigado a solicitar permissão para declarar sua independência das autoridades centrais do país”.

“Isto foi dito em relação ao Kosovo e esta é a decisão do Tribunal Internacional”, sublinhou. “E esta decisão foi apoiada por todos”, acrescentou Putin. O presidente russo explicou que, embora a ONU não reconheça Kosovo, “reconheceu a essência” da situação.

“Se assim for, então as repúblicas de Donbass – a República Popular de Donetsk e a República Popular de Lugansk – têm o mesmo direito de declarar sua soberania sem recorrer às autoridades centrais da Ucrânia, porque um precedente foi criado”, ressaltou.

Desta forma, quando as repúblicas se declararam independentes, a Rússia também teve o direito de reconhecer sua independência, explicou o presidente.

“Isto é o que muitos estados do mundo, incluindo nossos oponentes no Ocidente, fizeram em relação ao Kosovo. Kosovo é reconhecido por muitos países. É um fato”, disse ele. “Fizemos o mesmo em relação às repúblicas do Donbass”, reiterou Putin.

O presidente russo lembrou que Lugansk e Donetsk pediram ajuda à Rússia contra o Estado que “está realizando operações militares contra eles”. “Tínhamos o direito de fazê-lo em plena conformidade com o artigo 51 do capítulo 7 da Carta das Nações Unidas”.

Putin também se referiu à recusa da Rússia de se submeter a um mundo unipolar. “Acreditamos que a regra principal é a Carta das Nações Unidas e outros documentos adotados por essa organização e não certos papéis escritos por alguém para si ou para satisfazer seus próprios interesses”, concluiu.