Em Genebra, representantes dos dois governos de fato da Líbia assinam acordo para deter o conflito | Foto: Violaine Martin/ONU via EFE/EPA

Representantes dos dois governos que se defrontam na Líbia há seis anos em uma guerra civil assinaram na sexta-feira (23) em Genebra um cessar-fogo permanente no país mediado pela ONU, que incluirá a saída de todos os combatentes estrangeiros em até três meses.

Desde 2011, quando a Otan interveio no país para derrubar o governo do líder Muammar Kadhafi em favorecimento de bandos jihadistas armados, a Líbia, que detinha os melhores índices sociais da África, mergulhou no caos e divisão.

Retrocesso que chegou a tal ponto que, atualmente, até mercados de escravos existem no país, que se tornou cabeça de praia da qual botes apinhados de refugiados cruzam o Mediterrâneo rumo à Europa. A produção de petróleo, principal riqueza do país, foi praticamente paralisada.

Em Nova Iorque, o secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, classificou o anúncio do cessar-fogo “um passo fundamental para a paz e estabilidade na Líbia”.

Ele instou a comunidade internacional a apoiar os líbios na implementação do cessar-fogo e no fim do conflito. Quase nove mil líbios morreram nos confrontos.

O chefe da ONU repetiu que “não há solução militar para o conflito na Líbia” e que “há muito trabalho árduo pela frente.”

Guterres reiterou ainda a urgência no respeito “total e incondicional” ao embargo de armas a qualquer lado do conflito, já aprovado no Conselho de Segurança.

Desde que a Otan violou em a resolução da ONU que apenas autorizava ‘proteger manifestantes’ e passou a bombardear a Líbia por meses até a deposição do governo e o assassinato, depois de seviciado, de Kadhafi, o país caiu nas garras de milícias rivais, com prisões em massa, tortura e mais de um milhão de refugiados. A unidade nacional ficou ameaçada.

A derrubada de Kadhafi também possibilitou o assalto aos arsenais líbios, que foram pilhados para armar na Síria as gangues extremistas que atacavam o governo legítimo de Bashar Al Assad, episódio que teve como dano colateral o assassinato do embaixador norte-americano em Benghazi.

Armas que também serviram para fortalecer extremistas ao sul da Líbia, o que redundou no atual conflito no Sahel, a região que fica entre o deserto do Saara e a África negra.

Ao saber do assassinato de Kadhafi, a então secretária de Estado Hillary Clinton, festejou em um programa de televisão às gargalhadas: “nós viemos, nós vimos e ele morreu”.

O acordo de cessar-fogo foi assinado depois de cinco dias de reuniões da Comissão Militar Conjunta, conhecida como 5+5, sob mediação da ONU, que se seguem a quatro rodadas de negociações desde fevereiro e impasse no quadro militar no terreno. A mais importante delas realizada na Alemanha, no início do mês, com a presença de Guterres.

O chefe da delegação do chamado ‘governo do Parlamento em Tobruk’, Amhimmid Mohammed Alamami, destacou que a comissão 5+5 “teve sucesso ao conseguir o que todos os líbios esperavam: mostrar que pertencemos a uma só nação e conseguir a paz e a segurança”.

Por sua vez, o coronel Ali Abushahma, chefe da delegação do governo de Trípoli, o assim chamado Governo do Acordo Nacional (GNA), manifestou sua expectativa de que o cessar-fogo “ponha fim ao conflito armado e ao derramamento de sangue na Líbia”. Ele conclamou a reconstituir um aparato militar único “que seja uma mão forte contra quem tente minar a segurança e a estabilidade da Líbia”.

Teoricamente reconhecido pela ONU, o GNA durante muito tempo quase só controlou a capital Trípoli, enquanto o governo do Parlamento Nacional, instalado em Tobruk no leste do país, mantinha o controle sobre a maior parte do país, com o chamado Exército Nacional Líbio, coalizão de forças sob comando do general Knalifa Haftar.

No entanto, a tentativa do general Haftar de resolver o dissenso marchando a Trípoli, acabou se estiolando e foi detida pela chegada de forças turcas em socorro do GNA, de conhecidos vínculos com a Irmandade Muçulmana. Também irromperam protestos no leste líbio. A entrada de forças especiais e armamentos turcos em socorro do GNA ameaçou levar o país a uma internacionalização do conflito, com outros países ameaçando passar a intervir abertamente, como o vizinho Egito.

A diretora da Missão da ONU para a Líbia, Stephanie Williams, afirmou que o acordo tem efeito imediato e exige que “todas as unidades militares e grupos armados devem abandonar os fronts de batalha e retornar aos seus quartéis”.

Ela acrescentou que também devem deixar o território líbio “todos os mercenários e tropas estrangeiras que operem em terra, mar e ar”. Williams que ressaltou que o cessar-fogo não abrange grupos incluídos na lista de organizações terroristas da ONU.

Além disso, até que um governo unificado e formado por representantes dos dois lados do conflito assuma o controle do país, o treinamento de tropas será suspenso e sairão do país as equipes estrangeiras de formação militar.

Pelo acordo, haverá a criação de centros de operações conjuntos da polícia e do exército para garantir a segurança do território, assim como a possível reintegração, sob algumas condições, de membros de grupos armados às “instituições estatais”.

As duas partes pediram que o Conselho de Segurança da ONU adote uma resolução para garantir que o acordo seja cumprido não apenas pelos atores do conflito dentro da Líbia, mas também pelos do exterior.

Segundo analistas, o governo de Tobruk recebeu apoio da França, Rússia, Egito, Emirados Árabes e Arábia Saudita, enquanto o GNA era respaldado por Washington, Londres, Roma e Ancara.

Guterres pediu também que as partes em conflito “mantenham o empenho atual e mostrem a mesma determinação em alcançar uma solução política para o conflito, resolvendo questões econômicas e abordando a situação humanitária.”

Na quarta-feira, a Comissão Militar Conjunta 5+5 já havia fechado um acordo pela reabertura das rotas ter restes e aéreas no país. Foram retomados os voos entre Trípoli e Benghazi, as duas principais cidades do país, controladas respectivamente pelo GNA e pelo Parlamento.

As equipes de negociação anunciaram que a produção de petróleo do país, que esteve bloqueada durante meses, deverá ser retomada em breve e de maneira integral.

Próximas rodadas irão detalhar a desmobilização das tropas, a reintegração de seus membros à sociedade e a luta antiterrorista no território líbio.

Em paralelo às negociações no plano militar em Genebra, duas outras comissões, uma política e outra econômica, têm buscado em Berlim alcançar consensos para a paz.

Williams destacou “o senso de responsabilidade e compromisso em preservar a unidade da Líbia e reafirmar sua soberania” de todas as partes e agradeceu, em especial, ao presidente do Conselho da Presidência, Faiz Al-Sarraj (GNA), do presidente do Parlamento (Tobruk), Aqila Saleh, e do comandante Khalifa Haftar.

Para a enviada da ONU Williams, a expectativa é que o acordo permita “que os deslocados, tanto dentro como fora do país, regressem às suas casas e vivam em paz e segurança”.

Como destacou Williams, o acordo é uma resposta ao pedido feito em março, pelo secretário-geral Guterres, de um cessar-fogo em todos os conflitos globais, em razão da pandemia.

Guterres reiterou seu apelo por um cessar-fogo global para que o mundo se possa concentrar em combater a pandemia de Covid-19.

Segundo ele, com a inspiração do acordo conquistado na Líbia, “agora é o momento de mobilizar todos os esforços para apoiar as mediações que ocorrem para acabar com os conflitos no Iêmen, Afeganistão e na Armênia/Azerbaijão.”