A pandemia impôs o desafio de produzir vacinas em tempo recorde para salvar vidas

A publicação, pela prestigiosa revista médica The Lancet dos resultados positivos preliminares da vacina em desenvolvimento pela Universidade de Oxford, em paralelo à divulgação de resultados favoráveis em outras vacinas em teste, como a da China/Butantan (Coronavac), da russa do Instituto Gamalei/Ministério da Defesa e a alemã-americana da BioNtech/Pfizer, vem chamando a atenção e trazendo alento, o que foi saudado pela Organização Mundial da Saúde nesta segunda-feira (20).

A OMS, que parabenizou os cientistas pelo trabalho desenvolvido em prazo recorde, ao mesmo tempo alertou através de seu diretor-geral,Tedros Adhanom, que o mundo não pode esperar por uma vacina para conter a pandemia, e precisa e pode “salvar vidas agora”.

O Dr. Tedros convocou todos a aplicarem a técnica do rastreamento dos contatos dos pacientes infectados pelo coronavírus, enfatizando que “nenhum país conseguirá controlar sua epidemia se não souber onde está o vírus”.

“O rastreamento de contatos é essencial para localizar e isolar casos, além de identificar e colocar em quarentena os seus contatos.”

Preocupação que tem como base o fato de que essas vacinas, se tudo der certo, estariam disponíveis para ampla aplicação em meados do próximo ano, e a pandemia segue sem controle em muitas partes.

Na semana passada, o total de infectados de Covid-19 no mundo aumentou em 1 milhão em quatro dias – em 100 horas! -, para 14 milhões, e o total de mortes ultrapassou os 600 mil. Na sexta-feira, foi batido o recorde de novos contágios em 24 horas, 237.743.

Por sua vez, o diretor de emergências da OMS, Michael Ryan, assinalou que os resultados divulgados “são estudos da fase 1, agora precisamos avançar para testes em larga escala no mundo real, mas é bom ver mais dados e mais produtos entrando nessa fase muito importante da descoberta de vacinas”. “Parabéns aos colegas”, enfatizou.

Como comentou o infectologista brasileiro Roberto Medronho, da UFRJ, “é uma gota de esperança em um oceano”.

23 VACINAS EM TESTES CLÍNICOS

163 vacinas estão em desenvolvimento, segundo a OMS, sendo que 23 estão em estágio mais avançado, já na fase de testes clínicos, e em torno de seis são tidas como as mais promissoras.

A fase 1 consiste em uma avaliação preliminar com poucos voluntários adultos monitorados de perto, enquanto a fase 2 abrange centenas de participantes, escolhidos de forma aleatória, para verificar se a vacina induz imunidade e se há reações adversas; há um grupo de controle que recebe placebo.

A fase 3, com milhares de indivíduos, visa a avaliação definitiva da eficácia e segurança da vacina, para só então o registro ser concedido pelas autoridades sanitárias.

É o caso da vacina chinesa Sinovac/Butantan, envolvendo 9 mil voluntários em São Paulo e mais cinco estados, e da vacina Oxford/AstraZeneca, que envolverá 50 mil participantes, dos quais 5 mil no Brasil, em convênio com a Unifesp e a Fiocruz.

Com o mundo imerso em uma crise simultaneamente sanitária, econômica e humanitária, esforços ingentes estão sendo feitos para chegar lá o quanto antes. Vem sendo um enorme desafio para os pesquisadores no mundo inteiro, já que a vacina desenvolvida anteriormente mais rápido – contra a caxumba – precisou de quatro anos. É a primeira vez na história em que a produção de vacinas acontece ao mesmo tempo em que os estudos se desenvolvem.

A entrada na ordem do dia dos testes de fase 3 nas vacinas pesquisadas tinha sido antecedida, de certa maneira, pelo alarido sobre suposta pirataria de pesquisas por parte da Rússia, ao se tornar público que a vacina do Instituto Gamalei informava poder concluir seus testes até setembro, com a fase 3 concluída até lá e iniciando a vacinação mais amplamente.

Kirill Dimitriev, diretor do fundo estatal que está financiando as pesquisas de vacina russas, fez referências elogiosas à proposta de vacina da Oxford e à chinesa da CanSino/Academia Militar de Ciências Médicas que, como a russa do Instituto Gamalei, têm como vetor um adenovírus desativado em que foi introduzida a proteína utilizada pelo coronavírus no processo de infecção, para gerar a resposta imune.

Russos, chineses e ingleses também estão desenvolvendo vacinas que usam a já tradicional e comprovada tecnologia do vírus desativado quimicamente ou atenuado.

A vacina da BioNTech/Pfizer, em testes de fase 1 e 2, também mostrou resposta imune. A vacina da empresa de biotecnologia de Massachusetts, a Moderna, no teste de fase 1, gerou anticorpos em 8 de 45 voluntários. Essa proposição, que é apoiada pelos Centros de Controle de Doenças norte-americanos, inova ao utilizar um fragmento do código genético do vírus (RNA mensageiro), que não causa infecção ou sintoma da Covid-19, mas gera uma resposta do sistema imunológico.

Parte essencial da discussão da vacina é a exigência de que tem que ser acessível a todos os países. A OMS reafirmou a decisão da Assembleia Geral da ONU que prevê o direito de quebra de patente numa situação como a atual. Também a China e a França defenderam a vacina como um bem público mundial. Nessa questão, a postura exclusivista pró-patente deixou o governo Trump bastante isolado.

A Universidade de Oxford e a multinacional sueco-britânica AstraZeneca fizeram seu comercial no maior capricho. “A nova vacina usa um vírus do resfriado comum (adenovírus) que infecta chimpanzés, que foi enfraquecido para não causar nenhuma doença em humanos e é geneticamente modificado para codificar a proteína spike (S) do Sars-CoV-2 (aquela que o coronavírus usa para invadir as células humanas). Isso significa que, quando o adenovírus entra nas células das pessoas vacinadas, também fornece o código genético da proteína S. Isso faz com que as células dessas pessoas produzam a proteína S, e ajuda a ensinar o sistema imunológico a reconhecer o vírus Sars-CoV-2″, explicou à BBC o cientista Andrew Pollard.

Participaram 1.077 pessoas, em dois grupos, um recebeu a vacina experimental e o outro, um placebo [no caso, uma vacina de meningite], no chamado duplo cego, em que quem aplica e quem recebe a dose não sabe se é de um grupo ou de outro.

Comprovou-se uma resposta por células T (células do sistema imune capazes de identificar e destruir outras células infectadas) 14 dias após a dose e, por anticorpos, 28 dias após a administração.

Não houve efeito adverso sério, mas foram constatadas algumas reações, como febre, dores musculares, algum inchaço ao redor da injeção e braço dolorido. Segundo a pesquisadora de Oxford Sarah Gilbert, não se sabe se a vacina vai funcionar nos idosos – que são um dos principais grupos de risco.

Como ninguém tem certeza de qual é a vacina que vai funcionar, explica-se o palpite triplo do premiê britânico Boris Johnson, que já anunciou ter assegurado 100 milhões de doses da vacina de Oxford, 30 milhões da BioNtech/Pfizer, que usa partes do código genético do novo coronavírus, e 60 milhões da Valneva, que usa uma versão inativada do coronavírus.

RASTREIA, TESTA, RASTREIA

O descontrole da Covid-19 nos EUA está tornando a discussão de como a pandemia chegou a esse ponto no país mais rico do mundo no talvez principal tema de campanha, pondo em risco a reeleição de Trump. Questão posta em relevo pela Newsweek, que estampou que o número diário de casos de coronavírus nos EUA é hoje 2.392 vezes mais alto do que na Coreia do Sul, que tem uma população seis vezes menor.

A comparação é interessante, porque a primeira morte da Covid nos dois países aconteceu no mesmo dia, 20 de fevereiro (mais tarde se descobriu uma morte anterior nos EUA, o que não invalida a comparação). Cinco meses depois, a Coreia do Sul está incomparavelmente melhor.

Grande parte desse sucesso foi atribuída à capacidade do país de testar, rastrear os contatos de cada caso que haja dado positivo, orientar e monitorar a situação, cortar a disseminação e cuidar de quem precisa.

Esse sistema já existia, em razão de epidemia anterior, mas foi posto à prova dramaticamente no final de fevereiro, quando a cidade de Daegu registrou uma escalada repentina de milhares de casos.

O rastreamento funcionou esplendidamente, ao deparar com uma paciente, apenas identificada pelo número 31, que fora atendida em um hospital depois de um acidente de trânsito no dia anterior, 6 de fevereiro. Ela teve permissão para ir em casa para recolher alguns pertences. Mais tarde naquela semana, ela saiu para almoçar com uma pessoa e assistiu a um serviço religioso de duas horas com cerca de mil pessoas. No hospital, ela tivera contato com 128 pessoas.

Assim, em apenas dez dias, mais de 1.000 pessoas foram contagiadas, um caso típico de ‘superpropagação’. Como complicação, os crentes da igreja de que ela fazia parte – Schincheonji de Jesus – não gostam de se identificar, por temor de discriminação.

O chefe do sistema de rastreadores de Daegu, professor Kim Jong-Yeon, revelou que a princípio a paciente 31 “não nos falou que era da igreja Schincheonji. Fomos nós, os rastreadores de contato, que descobrimos isso mais tarde”. A parte mais difícil da investigação foi estabelecer quem havia estado no templo naquela semana.

“Finalmente conseguimos uma lista de 9 mil integrantes daquela igreja. A princípio começamos a telefonar para saber se elas tinham tido algum sintoma. Cerca de 1,2 mil pessoas disseram que sim, mas outras se recusaram a fazer testes ou a fazer quarentena”, relatou. Foi preciso que o governo sul-coreano emitisse uma ordem executiva determinando que todos os fiéis praticassem o isolamento.

A investigação rigorosa de todos os novos casos, combinada com a testagem exaustiva, freou rapidamente a propagação do vírus e em princípios de abril Daegu já estava registrando zero pacientes novos de covid-19.