Olivia Santana, deputada estadual (PCdoB-BA)

As cenas chocantes do assassinato a pauladas do jovem congolês Moïse Kabagambe expõem a face dura da barbárie que persiste no pós-escravidão contra corpos negros no Brasil. Moïse é uma vítima fatal do racismo e do colonialismo. Ele e sua família fugiram da República Democrática do Congo, em 2014, na tentativa de escapar da miséria e das guerras que poderiam pôr fim as suas vidas.

Por Olívia Santana*

O Congo nunca teve grandes ciclos de paz. A colonização belga foi uma das mais violentas e atrozes da história colonial. Pessoas eram comumente mutiladas, mortas e esquartejadas quando não conseguiam cumprir as metas de produção impostas pelo reinado de Leopoldo II. O monarca tinha o Congo como sua propriedade particular, adquirida na partilha da África em 1905.

Em 2020, às vésperas da celebração dos 60 anos da Independência da República Democrática do Congo, um fato de relevância histórica repercutiu mundialmente, inclusive no Brasil. O rei da Bélgica, Filipe Leopoldo, pediu desculpas públicas ao povo congolês pelos crimes cometidos durante o período de colonização, após seu irmão, o príncipe Laurent, ter declarado não acreditar que o tataravô “tenha feito sofrer a população” da República Democrática do Congo, pelo simples fato de o rei nunca ter ido pessoalmente lá. Tal declaração revela o cinismo de quem se sente parte de um povo eleito, uma supremacia que pode banalizar o saque e o genocídio contra aquele povo que ele julga descartável.

Leopoldo II pode não ter pisado em solo congolês, mas mandou sua sangrenta engrenagem de sucção de corpos e riquezas para lá. A exploração foi tão brutal e letal que causou assombro, mesmo entre europeus. O pedido de perdão do rei Filipe Leopoldo, entretanto, não passou de gesto simbólico, pois não foi oficializado para não gerar responsabilidades indenizatórias da Bélgica para República Democrática do Congo.

Mesmo depois de conquistada a sua independência, sob a liderança de Patrice Lumumba, em 30 de junho de 1960, o território destroçado tornou-se palco de guerras civis, de disputas internas manipuladas pelo capital estrangeiro. Lumumba foi vítima de um golpe de Estado e, posteriormente, foi morto num atentado que envolveu os EUA e a Bélgica, aliados de Joseph Mobutu, seu opositor. Foi desse prolongado cenário de guerras, fome e pobreza que a família de Moïse fugiu e veio parar no Brasil. O problema é que preto aqui também morre que nem barata, numa guerra em que o racismo serve de potente munição.

O Brasil governado por Bolsonaro atiça o ódio, a desinformação, promove o acesso desenfreado às armas e munições. Crimes bárbaros contra negros e negras se revezam num cotidiano precarizado pela pobreza, miséria, fome e insegurança que alcançam a maioria dos negros e negras em nosso país, como um grande legado da escravidão que a conveniência de uma classe dominante atrasada e saudosa do escravismo é incapaz de pôr fim.

O desabafo desesperado do amigo de Moïse demonstra o choque de realidade entre o Brasil que ele julgava acolhedor e mãe de todo mundo e o Brasil sombrio que mata negros com requinte de crueldade. “Ele trabalhava! A gente trabalha duro. Fugimos da África pra ser acolhido aqui no Brasil. O Brasil é uma mãe, abraça todo mundo! Ai, Brasil é uma mãe, segunda casa. E como que vai matar um irmão trabalhando? Justiça vai ter que ser feita!”, afirmou o rapaz durante entrevista a um telejornal.

Há sim um Brasil acolhedor que abraçou imigrantes italianos, alemães, judeus, espanhóis, ucranianos e mesmo árabes, proporcionando a prosperidade e a mobilidade social de milhões de famílias desses povos integrados ao nosso país, que vieram construir uma vida nova. Porém o mesmo não se aplica com tanta generosidade aos africanos e brasileiros pretos. O racismo e a xenofobia são mais duros em se tratando de pessoas negras. Um negro pode ser morto com requinte de crueldade por furtar alimentos num supermercado, como aconteceu com Bruno e Ian Barros, em Salvador. Pode ser morto com três tiros pelo vizinho oficial da marinha, como no caso de Durval Teófilo, em São Gonçalo, no Rio de Janeiro, que foi confundido com um marginal – e marginal preto está sujeito ao código paralelo de pena de morte. Pode receber 80 tiros de fuzil disparados por militares, como ocorreu com o músico Evaldo Rosa na capital fluminense. Pode ser largado num elevador ainda criança, como o menino Miguel, no Recife, para encontrar a morte numa queda solitária do nono andar de um prédio. O Brasil, maior diáspora afro das Américas, precisa deixar de ser senzala e cova para negros e passar a ser o lar seguro e digno que o amigo e a família de Moïse idealizaram.

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*Deputada estadual da Bahia pelo PCdoB

(Artigo  publicado originalmente no Bahia Notícias)

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