Olívia Santana: Do açoite à morte sob custódia
A escravidão foi abolida, de fato, nas Américas, tardiamente. Mas a igualdade racial, social, ou de oportunidades, por esses rincões, nunca passou de uma quimera. Do ventre secular do escravismo, que aqui por tanto tempo vicejou, nasceram sociedades fundadas no privilégio, de classe e de raça. E, doloroso é perceber como, destes privilégios, os mais bárbaros e cruéis são os de raça.
Na história das Américas, poderosos entrincheiraram-se para impedir que algo verdadeiramente novo, no sentido libertário, pudesse surgir dos escombros do velho edifício escravista. Tramaram a manutenção de estruturas onde a supremacia branca, camuflada, sobrevivesse.
Em 1863, Abraham Lincoln assinou o Ato de Emancipação dos escravizados, nos EUA e já, em 1866, supremacistas brancos criaram essa excrescência do gênero humano que foi a Ku klux klan. Essa organização terrorista linchou negras e negros, incendiou suas casas, assassinou-os aberta e impunemente durante anos e anos. Até hoje não está inteiramente desfeita.
Angela Davis, ativista negra, feminista e marxista americana disse em seu livro “A Liberdade é uma Luta Constante” ser essa organização criminosa “… uma tentativa de controlar a população negra livre, que teria sido muito mais bem sucedida em fazer avançar a democracia para todas as pessoas”.
“Assassinato sob custodia” não é só um filme que retrata a história de crimes perpetrados na África do Sul, do apartheid, é, mais que isso, é a realidade de negros que caem nas mãos de forças policiais e são sumariamente mortos, sem nenhum respeito aos protocolos legais de segurança e direitos humanos. E isso em diversas partes do mundo, até hoje. Aqui no Brasil, onde não há o instituto da pena de morte, de fato existe, de forma tácita, a pena de morte para negros, especialmente para jovens homens negros.
A sólida estrutura de desigualdades econômica, política e social foi mantida e atualizada no pós-colonialismo. Emergiu nos EUA, no Brasil e em outros países da América – guardadas as diferenças e características próprias dessas sociedades, um capitalismo estruturalmente racializado, uma ideologia de dominação racista, que amalgamou as relações sociais com universos culturais. Do mercado de trabalho, às condições habitacionais, ao acesso aos direitos constitucionais, pretensamente universais, o nascer e o morrer, tudo é distinto para brancos e negros, em sistemática desvantagem para os segundos.
As manifestações realizadas pelo movimento #BlackLivesMatter (Vidas Negras Importam), que tomam os EUA, em reação ao assassinato de George Floyd, cravaram a ausência dos direitos humanos da população negra na pauta de um mundo imerso numa pandemia que já devorou milhares de vidas. Para os negros e negras, antes de enfrentar o coronavírus, é preciso escapar do sistema racista, sair da alça de mira, proteger seu corpo das balas e seu pescoço dos joelhos estranguladores.
As mortes de Eric Garner, por asfixia, em Nova York, depois de ter sido preso por suspeita de venda ilegal de cigarros, em 2014; a morte de Michael Brown, um jovem negro de dezoito anos, após ser alvejado por um oficial da polícia municipal em Fergunson (2014); a morte do menino Joel, em Salvador, ou o sequestro e assassinato do menino Davi Fiuza, em 2014, também em Salvador; a bala que ceifou a vida da menina Ághata e, o mais recente assassinato de João Pedro, no Rio, todos sob custódia, revelam que a mão que puxa o gatilho obedece sempre ao mesmo sistema.
Por isso, antes de julgar a contundência dos protestos, há que se considerar o transbordar do combustível que alimentou as chamas. Sim, vidas negras importam!
Temos nos Estados Unidos de Trump e no Brasil de Bolsonaro um avanço do fascismo, que aprofunda ainda mais a exclusão neoliberal, o desemprego, a pobreza, e o descarte de milhões de vidas. Este quadro, que já era ruim, se agudiza com o crescimento da pandemia.
As manifestações, lá e cá, apontam para um sistema socioeconômico falido, que criminaliza e mata pretos e pobres, que não é capaz de responder a pauta da vida, da dignidade humana. A saída envolve a construção de uma nova ordem socioeconômica, democrática e antirracista. E aí, topam?