O que impacta a economia é a pandemia

“Apostar na imunidade de rebanho, é muito arriscado. Implicaria em aceitar um número muito
grande de mortes até que pelo menos 60 ou 70% da população esteja infectada. Isso significa
aceitar centenas de milhares de mortes, em um país como o Brasil”, afirma Frederico Guanais,
chefe-adjunto do departamento de Saúde da OCDE
“O que impacta a economia é a pandemia, e não as medidas para controlar o vírus”, afirmou o
chefe-adjunto do departamento de Saúde da Organização para a Cooperação e o
Desenvolvimento Econômico (OCDE), Frederico Guanais, na quarta-feira (13), ao declarar que
“o dilema entre vidas e empregos é falso”.
Há que se registrar que, mesmo a OCDE, baluarte do neoliberalismo e um organismo
extremamente insensível aos anseios populares e sociais, diante da gravidade da crise da
Covid-19, adota posições mais sensatas que e do governo brasileiro.
Na última semana, Bolsonaro acirrou seu discurso contra governadores e prefeitos, que têm
atuado fortemente no enfrentamento à pandemia da Covid-19. No seu discurso, Bolsonaro
acusa os governadores de estarem “arrebentando com a economia”, para tentar levar os
trabalhadores e empresários a se rebelarem contra a quarentena – realizada para conter a
proliferação da Covid-19 no País – doença que já matou mais de 13 mil brasileiros.
Guanais avalia que para os países em desenvolvimento, como o Brasil, protegerem as suas
economias, “é necessário controlar a disseminação do vírus”. O chefe-adjunto do
departamento de Saúde da OCDE defende que, mesmo que eles não tenham as mesmas
condições financeiras dos países mais ricos, os países em desenvolvimento devem “buscar o
melhor caminho para fazê-lo. Primeiro, protegendo as pessoas e setores da economia mais
vulneráveis e afetados”.
“Com certeza as medidas de isolamento e quarentena implicam em redução da atividade
econômica, com fortes perdas para os trabalhadores e as empresas. Mas eu penso que o
dilema entre economia e saúde é falso. Para proteger a economia, é necessário controlar a
disseminação do vírus. Sem controle, as perdas humanas, sociais e econômicas da pandemia
são enormes. Em última análise, o que impacta a economia é a pandemia, e não as medidas
para controlar o vírus”, afirmou Frederico Guanais, em entrevista à Rádio França Internacional
(RFI).
“Naturalmente, os países mais ricos estão em melhores condições de implantar medidas de
isolamento e quarentena, mas isso não significa que os outros países não devam buscar o
melhor caminho para fazê-lo. Primeiro, protegendo as pessoas e setores da economia mais
vulneráveis e afetados. Essas devem ser a prioridade do apoio governamental. Depois,
preparar o sistema de saúde e mobilizar as fortalezas que cada país tem”, defendeu Guanais,
ao lembrar que o Brasil já tem as ferramentas para alavancar essas medidas.
“O Brasil é um país em desenvolvimento, mas é um país de renda média, que conta com um
sistema de saúde universal, com todos os problemas que possa ter o SUS [Sistema Único de
Saúde]. Conta com programas de proteção social, com cadastro da população mais pobre. Ou
seja, com elementos para poder alavancar essas medidas e poder fazer de uma forma que
proteja a sua população, ao mesmo tempo em que busca proteger os danos e impactos à sua
economia”, enfatizou.
Sobre a possibilidade de liberar a quarentena por um período e, se a tensão nos hospitais
voltar a aumentar, impor novamente a quarentena, Guanais considera que essa é uma ideia
com a qual teremos de nos acostumar, pelo menos até que aconteça uma de duas coisas: “ou
que a imunidade de rebanho seja alcançada, ou que uma vacina ou tratamento estejam
disponíveis em grande escala”. “Apostar na primeira opção, a imunidade de rebanho, é muito
arriscado. Implicaria em aceitar um número muito grande de mortes até que pelo menos 60
ou 70% da população esteja infectada. Isso significa aceitar centenas de milhares de mortes,
em um país como o Brasil”, afirmou.
Questionado se o Brasil poderia se espelhar em outros países em desenvolvimento e economia
semelhantes à brasileira, que conseguiram ajustar medidas mais equilibradas entre a proteção
tanto da economia quanto da população, Guanais afirmou que a “melhor comparação está
dentro do próprio Brasil”.
“O Brasil, por ser um sistema federativo descentralizado, apresenta muita variação entre as
medidas que foram implementadas em nível estadual. Acho que a melhor comparação está
dentro do próprio Brasil: avaliar como, dentro dos Estados, isso está acontecendo e que
resultados eles estão obtendo com essas medidas. Na América Latina, tem outros países que
têm adotado medidas fortes, como a Colômbia, a Argentina, o Chile e o Peru, dentro das suas
possibilidades. São países enfrentando desafios similares, que poderiam aprender uns com os
outros”.
Indagado também se adianta só manter uma parte da população confinada, e deixar a outra
trabalhando normalmente, ou quase, Guanais respondeu que “a imunidade parcial pode ser
arriscada”.
“A imunidade parcial pode ser arriscada, por criar um grupo de pessoas que não foi exposto ao
vírus, e um segundo grupo no qual o vírus circula mais amplamente. Você preserva uma
população que, em algum momento, quando entrar em contato com essa outra população, é
como se fosse uma população nova, um vírus novo. Então, é importante ter um conjunto de
medidas: nenhuma única ação é 100% eficaz”.
“A literatura mostra o quanto é importante combinar medidas, como o trabalho remoto
quando é possível, mudanças para reconfigurar os ambientes de negócios e trabalho, o uso de
máscaras e álcool em gel em locais públicos e nos transportes, etc”, avaliou o especialista em
Saúde.
“A decisão pelo abrandamento deve estar baseada em dados como o número de novos casos e
a capacidade disponível no sistema de saúde”, destacou Guanais.
“É isso que vai determinar a margem de manobra que as autoridades têm para aplicar medidas
de abrandamento. Junto com isso, é fundamental usar ferramentas conhecidas há muitos anos
da saúde pública: localizar todos os sintomáticos, testar essas pessoas e rastrear os seus
contatos. É uma ferramenta básica já usada para controlar tuberculose, ebola e várias outras
doenças contagiosas”.
“O que tem de novo agora são as ferramentas digitais que podem fazer com que esse processo
seja acelerado. Mas eu não acho que existam ferramentas mágicas. Eu diria que é uma
combinação entre soluções tecnológicas com o trabalho de profissionais de saúde, como
agentes comunitários, médicos de atenção primária, enfermeiros. Esses profissionais da linha
de frente podem ajudar nesse processo”, defendeu.
“A saúde não é um gasto: é um investimento”, defendeu Frederico Guanais ao ser questionado
sobre a postura reiterada do governo Bolsonaro em minimizar pandemia, de ir em desacordo
às recomendações da Organização Mundial de Saúde.
“O Brasil já faz parte de vários comitês da OCDE, participa de reuniões do comitê de saúde da
OCDE, ou seja, o Brasil está exposto a esse trabalho técnico desenvolvido por aqui. O papel da
OCDE não é de aplicar sanções aos países: é produzir evidências e, a partir do debate, do
conhecimento técnico, produzir caminhos de melhores políticas públicas. Eu acho que é
importante, dentro do Brasil, aprender o que está funcionando dentro do contexto local. No
sistema federal, existe uma descentralização de responsabilidades. O diálogo internacional é
muito importante, aprender com os erros e os acertos dos outros países, mas também é
essencial reconhecer quando as políticas públicas estão funcionando ou não. Estar atento aos
dados, e o Brasil produz muitos dados, é muito importante para ir calibrando as respostas para
buscar um sistema de saúde cada vez mais forte. A saúde não é um gasto: é um investimento”,
defendeu Guanais.