O presidente da China, Xi Jinping, durante seu pronunciamento no Fórum de Davos, 25/01/2021

Há uma aceleração de mudanças nas relações internacionais, como poucas vezes vistas em períodos de paz.

É toda uma ordem em revolvimento. Há os impactos da crise capitalista de 2008, ainda insuperados e, agora, agravados pela pandemia. Há o vigor do eixo econômico asiático, sob a liderança do rápido ascenso da China e de sua assertividade em liderar uma globalização desenvolvimentista.

Por Walter Sorrentino*

Por outro lado, as condições econômicas norte-americanas em termos de desigualdade social e a divisão radicalizada de sua sociedade sob o governo Trump, comprometeram sua liderança no mundo, que não será nunca mais como antes.

A unipolaridade da pax americana com o fim da URSS foi fugaz e seus resultados, terríveis para povos e nações em todo o mundo. A revalorização do multilateralismo é o terreno das relações entre Estados nacionais que lutam por seus próprios interesses. E esses desenvolvimentos da ordem internacional criam maiores margens de manobra estratégica para os países dependentes.

Nessa direção, destaca-se o recente Fórum de Davos, cristalizando o novo estado de correlação de forças. O discurso do presidente Xi Jinping foi de enorme importância. Com altivez e descortino, ele afirma que a história avança e o mundo não voltará a ser o que era no passado: não haverá civilização humana sem diversidade, e essa diversidade continuará a existir por tanto tempo quanto podemos imaginar. O que soa o alarme é a arrogância, o preconceito e o ódio, a tentativa de impor hierarquia à civilização humana ou de impor a própria história, cultura e sistema social aos outros”.

Continua ele: “iniciar uma nova Guerra Fria, rejeitar, ameaçar ou intimidar os outros, impor deliberadamente dissociação, interrupção do fornecimento ou sanções e criar isolamento ou estranhamento apenas empurrará o mundo para a divisão e até para o confronto”.

E indica, daí, o compromisso da China por uma globalização econômica que seja mais aberta, inclusiva, equilibrada e benéfica para todos.

Fazendo das palavras ações, destaca-se na iniciativa chinesa a intitulada Parceria Econômica Regional Abrangente (RCEP, na sigla em inglês), maior tratado de livre comércio da história. Inclui os dez membros da Associação de Nações do Sudeste Asiático, além de China, Japão, Coreia do Sul, Austrália e Nova Zelândia. A Índia também fez parte das negociações, mas desistiu em 2019 por temer que a redução das tarifas prejudicasse seus produtores (na verdade, mais que isso, o interesse em preservar a aliança da extrema-direita de lá com os EUA, o que pode isolar o país).

Imaginem isso ao lado do acordo estratégico China-Rússia, e se terá um panorama concentrado, econômico e geopolítico da ordem global em evolução.

De passagem, anote-se também o Congresso em curso do Partido Comunista do Vietnã. O país espera um crescimento médio anual do produto interno bruto de 7% nos próximos cinco anos. Sua agenda é manter o ritmo da industrialização e modernização e emergir como um “país industrializado orientado à modernidade” (país de renda média) até 2030 e um “país moderno e industrializado” (país de alta renda) até 2045.

A prevista continuidade do atual núcleo de poder assegura o equilíbrio das relações do Vietnã com a China e também seus interesses comerciais com os EUA. Isso é reconhecido com realismo pela China. No entanto, o Vietnã, sob a atual direção, se afastou da armadilha americana do QUAD (sigla inglesa para o Diálogo de Segurança Quadrilateral, grupo que foi criado para ser o que a China já chamou de “mini-OTAN” no Pacífico). Trump fez um forte discurso para envolver o Vietnã como parceiro crítico em sua estratégia do Mar do Sul da China e induzi-lo como membro do “QUAD” para se opor à China. No entanto, para os vietnamitas, sabiamente, o RCEP reforçará sua estratégia própria em busca de benefícios às suas altas taxas de crescimento econômico.

Lembro também o discurso em Davos de Angela Merkel, governante da Alemanha, evidenciando que se trincou a confiança das relações subservientes entre EUA e UE em boa medida. Em crítica velada a Trump, ela defende a integridade dos sistemas multilaterais globais e afirma, contrastando com a posição dos EUA, que gostaria muito de evitar a construção de blocos. Ela ironiza: “dizer estes são os EUA e ali está a China e vamos nos agrupar em torno de um ou outro não é o entendimento sobre como as coisas devem ser, pois o mundo não pode ser forçado a escolher entre dois lados”. Precedendo o discurso, foi muito importante o acordo, enfim aceito pela Alemanha, sobre o gasoduto do gás da Rússia, sempre contestado pelos EUA (aliás, o uso de outro gasoduto foi acordado de passar pela Turquia também).

Por fim, integram também esses desenvolvimentos o discurso de Putin, presidente da Rússia, no mesmo Fórum de Davos. Ele parte da constatação de que “a pandemia exacerbou os problemas e desequilíbrios que se acumularam no mundo antes e há todas as razões para acreditar que as diferenças provavelmente se tornarão mais fortes”.

E afirma: Nem preciso dizer que não há paralelos diretos na história. São fortes suas palavras: “a situação pode tomar um rumo inesperado e incontrolável – a menos que façamos algo para evitar isso. Há uma chance de enfrentarmos uma formidável ruptura no desenvolvimento global, que estará repleta de uma guerra de todos contra todos e tentativas de lidar com contradições através da nomeação de inimigos internos e externos”. Ele argumenta sua tese de que os problemas socioeconômicos acumulados são a razão fundamental para o crescimento global instável.

E termina no mesmo diapasão da China: “obviamente, a era ligada às tentativas de construir uma ordem mundial centralizada e unipolar terminou. Para ser honesto, esta era nem sequer começou. Uma mera tentativa foi feita nesta direção, mas isso, também, é agora história. A essência desse monopólio contrariava a diversidade cultural e histórica de nossa civilização”.

Finalizando, parecem então evidentes os movimentos tectônicos de diferentes centros de desenvolvimento no mundo, com seus modelos distintos, sistemas políticos e instituições públicas, que tomaram forma no mundo. Hoje, é muito importante criar mecanismos de harmonização de seus interesses para evitar que a diversidade e a concorrência natural dos polos de desenvolvimento desencadeiem a anarquia e uma série de conflitos prolongados. Os EUA não são o único centro do mundo, felizmente, e seu poder está em declínio relativo nessa ordem internacional.

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Walter Sorrentino é  Vice-Presidente Nacional e Secretário de Relações Internacionais do Partido Comunista do Brasil (PCdoB)