Nunca esqueça o que os fascistas fizeram
Na Bulgária, as campanhas que igualam o comunismo ao nazismo não se destinam a defender a democracia contra a “intromissão russa”, mas sim a reabilitar o fascismo búlgaro e sua cumplicidade com os nazistas e com o Holocausto.
Por Jana Tsoneva (*)
O 35º aniversário da derrota do nazismo deveria ter sido motivo de comemoração. Esse era o pensamento do Centro Cultural Russo em Sófia (Bulgária) ao anunciar uma exposição intitulada “O caminho para a vitória”. Em vez disso, a iniciativa provocou uma tempestade de protestos – e dias antes da abertura – planejada para 9 de setembro – o Ministério das Relações Exteriores búlgaro emitiu uma declaração forte acusando os russos de “se intrometer nos assuntos internos da Bulgária”.
Mas por que uma celebração da derrota do nazismo deveria ser considerada uma intromissão indesejada? A resposta se deve ao aniversário específico que está sendo comemorado – os eventos de 9 de setembro de 1944, o dia em que a Frente da Pátria assumiu o governo. Unindo uma coalizão anti-nazista de comunistas, agrários e social-democratas, a Frente da Pátria chegou ao poder no contexto da chegada das tropas soviéticas anti-nazistas. Portanto, essa data é geralmente considerada o início do socialismo na Bulgária, abrindo caminho para a ascensão do Partido Comunista em 1947.
Todos os anos, esse aniversário (conhecido como 9/9) desencadeia debates e denúncias. Os liberais nunca perdem a oportunidade de lamentar os eventos de 1944 e o “desvio criminal da história” que o socialismo búlgaro supostamente representou. Mas este ano, a exposição russa adicionou uma dimensão internacional ao tradicional “debate de 9 de setembro”. O problema, para muitos, era que a derrota da Bulgária – então um país nazista, mas soberano – foi integrada a uma celebração geral da libertação da Europa Central e Oriental da ocupação nazista.
O Ministério das Relações Exteriores da Bulgária reagiu com raiva a essa narrativa. Argumentou que, independentemente da contribuição indiscutível da União Soviética para a derrota do nazismo, o Exército Vermelho não trouxe à Bulgária liberdade, mas opressão totalitária, desvio da dinâmica econômica do mundo desenvolvido e assim por diante. Os russos ficaram perplexos: perguntaram, com razão, como alguém ousa condenar uma exposição que ainda não tinha visto.
Mas parece que a explicação deveria estar localizada na intensidade do próprio debate. Mesmo sem um forte movimento da classe trabalhadora na Bulgária, as forças da classe dominante permanecem obcecadas em demonizar o comunismo. Como na moção ao Parlamento Europeu, no mês passado sobre a equivalência de todos os “totalitarismos”, uma batalha de natureza política que, atualmente, é travada no terreno da memória histórica, condenando ou reabilitando os demônios do passado.
E diante de uma esquerda ausente, é a mensagem da direita que toma a dianteira.
A reação do Ministério encapsula uma posição típica da direita búlgara e, de fato, dos liberais: o Exército Vermelho não teria sido o libertador falsamente chamado pelo socialismo, mas sim uma força de ocupação que impôs o “anti-fascismo” do lado de fora, como um falso pretexto para sua própria dominação.
A direita baseia essa afirmação no fato de que apenas alguns dias antes do 9/9, a Bulgária havia mudado de lado e declarado guerra à Alemanha nazista. Os soviéticos não se comoveram com essa súbita mudança de orientação: em 8 de setembro de 1944 o Exército Vermelho entrou na Bulgária através do Danúbio e no dia seguinte a Frente da Pátria proclamou-se o novo governo.
A proclamação coroou a bem-sucedida tomada de importantes instituições estatais por um pequeno grupo de comunistas em uniforme militar na noite anterior, seguida por ações semelhantes em cidades de todo o país (incluindo uma revolta liderada por prisioneiros no porto de Varna). Com uma classe dominante enfraquecida pelo caos e dividida entre o Eixo nazi-fascista e os Aliados, e a invasão soviética garantindo o fim do regime existente, não surpreende que os comunistas tenham aproveitado a oportunidade para tomar o poder. O Partido Comunista à frente do movimento nunca fez segredo de que seu objetivo era a revolução na Bulgária.
No entanto, mesmo a legitimidade que pode estar implícita na palavra “revolução” é agora negada. De fato, se durante a era socialista o 9/9 foi comemorado como uma revolução, depois de 1989 foi rotulado de “golpe”. Como observa o historiador Alexander Vezenkov, esse “golpe” tinha em particular a característica incomum de que o poder era imediatamente entregue a uma força civil – a Frente da Pátria. Mas negar que foi uma “revolução” tem outro propósito. Mesmo apesar dos anos de difamação, a palavra “revolução” ainda evoca a participação das massas e, portanto, implica um certo grau de consentimento democrático, enquanto “golpe” geralmente se refere a uma tomada do poder ilegítima e faccional.
A direita não pode admitir que houve uma “revolução”, porque isso seria reconhecer que os eventos de 1944 corresponderam às aspirações do povo búlgaro e não apenas aos “ocupantes” russos. Isso também é ligado a uma tendência proeminente na esfera pública liberal pós-1989 – à frente de um revisionismo histórico contínuo – que nega que houvesse algo como um fascismo búlgaro, que seria necessário combater. Essa negação da legitimidade básica do antifascismo torna mais fácil retratá-lo como uma política antidemocrática fraudulenta imposta por uma potência imperial estrangeira.
Neste revisionismo histórico necessariamente os fatos tem pouca importância – afinal, a Bulgária anterior a 1944 era tudo menos democrática. Além de ser um aliado nazista, era uma monarquia constitucional com fraca vida parlamentar interrompida por golpes, suspensões da constituição, violência paramilitar e uma ditadura real que suspendeu a vida político-partidária entre 1934 a 1944. Em janeiro de 1941, oito meses depois à adesão ao Eixo, a Bulgária adotou uma Lei de Proteção da Nação que retirava os direitos cívicos e políticos dos judeus búlgaros e lançou o terror estatal contra eles.
Como aliada do Eixo, a Bulgária enviou todos os judeus dos territórios que ocupara na Grécia e na Macedônia para o campo de extermínio de Treblinka. Embora o governo búlgaro não fosse explicitamente nazista, era maifestamente fascista e criou ou tolerou várias organizações fascistas. Se, de fato, a Bulgária evitou cair sob a bota nazista como a vizinha Iugoslávia ou a Grécia, seu regime deu boas razões para a oposição local combatê-lo. De fato, uma resistência antifascista emergiu antes mesmo da Bulgária aderir ao Eixo: certamente não foi apenas “importada” pelas baionetas do Exército Vermelho.
Isso nos leva ao outro fato crucial que o revisionismo omite – a escala da oposição búlgara ao fascismo. Devido à natureza ilegal de suas atividades, é difícil ter uma estimativa definitiva dos números partidários. Segundo o historiador Iskra Baeva, a oposição anti-fascista búlgara tinha de 5.000 a 9.000 militantes; Vezenkov coloca o número na extremidade inferior e mostra que esses combatentes foram apoiados por cerca de 12.000 “ajudantes” que davam comida, alojamento e outros tipos de assistência aos guerrilheiros. Juntos, esses números são impressionantes, já que o país não estava enfrentando uma ameaça existencial sob ocupação nazista como seus vizinhos.
De fato, apesar de seu destino hoje sombrio, a esquerda na Bulgária era historicamente uma força forte. Vezenkov observa o paradoxo de que o chamado “governo pessoal” do rei – banindo todos os partidos políticos em 1934 – ajudou o Partido Comunista, enquanto a atividade dos outros partidos dependia de sua base no parlamento, que fora destruída. Os comunistas eram melhor adaptados à construção de estruturas de massa clandestinas.
No entanto, havia também outras tradições locais de esquerda, desde o Partido Agrário de Alexander Stambolijski (o primeiro partido de massa real nos Bálcãs, promovendo um socialismo orientado para os camponeses) até o Partido dos Trabalhadores Social-Democratas. Uma narrativa que vê a queda do rei apenas como efeito de “ocupação estrangeira” deve necessariamente ignorar essas forças socialistas domésticas e sua oposição à guerra e ao anti-semitismo. E, inadvertidamente, acaba sendo um pedido de desculpas pelo fascismo, porque poucos países europeus se libertaram do fascismo sem intervenção ou invasão externa. O revisionismo anticomunista também deve ignorar o fato de que não apenas os soviéticos, mas também britânicos e americanos, apoiaram os anti-fascistas.
A declaração do Ministério das Relações Exteriores também reitera outro ponto de discussão comum na direita: em 1944 um totalitarismo teria substituido a outro. Toda celebração da derrota do nazismo é substituída pela queixa de que a Bulgária foi “forçada a sair da Europa pela invasão soviética”.
A suposta equivalência moral dos “totalitarismos” nazista e socialista justifica um segundo movimento, alegando que o socialismo era o pior uma vez que 1) durou muito mais tempo e 2) ao contrário do nazismo, viola o sagrado direito à propriedade privada. O último argumento foi feito por políticos como Zhelyu Zhelev, o primeiro presidente búlgaro eleito democraticamente e um pensador liberal que introduziu a noção de totalitarismo na Bulgária. É claro que os fascistas no poder violaram alguma propriedade privada, por exemplo, a dos judeus, mas parece que consideram esse um preço pequeno a pagar pelos membros do Eixo na Bulgária e pela preservação do capitalismo em geral.
De fato, se numerosas declarações no Parlamento Europeu colocam explicitamente o comunismo e o nazismo em pé de igualdade, as ações dos liberais traem uma preferência por um “totalitarismo” em detrimento do outro. Um dos patrocinadores da controversa moção recente no Parlamento Europeu sobre memória histórica, o eurodeputado búlgaro Andrey Kovatchev, convidou até Dyanko Markov – um membro do grupo paramilitar nazista no período entre guerras conhecido como Legiões Nacionais da Bulgária – ao Parlamento Europeu. Markov se beneficiou da onda de reabilitação dos fascistas entre guerras dos anos 90: em uma ocasião solene, em homenagem às “vítimas do comunismo”, tentou justificar a deportação dos judeus para Treblinka dizendo que eram “uma população inimiga”. Ele pronunciou essas palavras nada menos que no Parlamento da Bulgária.
O outro eurodeputado búlgaro que patrocinou a moção do Parlamento Europeu, Alexander Yordanov – um político anticomunista liberal – insistiu publicamente que nunca houve fascismo na Bulgária. Vale ressaltar que esses eurodeputados são membros do Partido Popular Europeu no poder – a respeitável “centro-direita” – e não de algum partido extremista marginal.
De fato, além de criar as condições para essa apologética fascista, um importante beco sem saída do revisionismo liberal que iguala os “dois totalitarismos” é tornar impossível entender por que os soviéticos se preocuparam em lutar contra os nazistas. Ou, de fato, por que o povo búlgaro lutou ao lado do Exército Vermelho. Em setembro de 1944, o exército soviético entrou na Bulgária sem disparar um único tiro, não tendo enfrentado nenhuma oposição por parte de seu homólogo búlgaro – e isso não teria ocorrido se fosse uma “invasão”. Depois disso, o exército búlgaro participou comprometidamente da fase final da 2ª Grande Guerra ajudando a expulsar os nazistas do sudeste da Europa – um fato também curiosamente negligenciado pela direita búlgara.
Pode-se perguntar por que, trinta anos após 1989, o comunismo continua sendo uma questão tão inflamada na Bulgária. A ausência de um movimento organizado da classe trabalhadora ou de um partido de esquerda forte em disputa pelo poder parece tornar isso irrelevante. No entanto, a obsessão da classe dominante por esta questão persiste, seja em iniciativas legislativas para criminalizar o comunismo ou nas queixas constantes de que os livros escolares não dizem a verdade sobre o comunismo.
Mais recentemente, elogios ao passado comunista foram declarados uma “ameaça à segurança nacional” por um novo grupo de reflexão euro-atlântico, fundado pelo ex-“segundo homem” do partido no poder após sua expulsão do partido por escândalos de corrupção. Uma maneira de entender essa obsessão paranóica com o passado é vê-la como uma estratégia da direita para costurar sua hegemonia descontrolada e combater a crescente fadiga com o consenso da reforma neoliberal. Os búlgaros não se apressaram em abraçar o Partido Socialista ou qualquer alternativa hipotética de esquerda, mas também não estão entusiasmados com a centro-direita.
Em um contexto em que o consenso está em declínio e ainda faltam alternativas, o anticomunismo se torna ainda mais intenso, expressando não a força da direita, mas sua fraqueza e capacidade declinante de mobilização. O anticomunismo discute o afastamento dos eleitores de uma classe dominante ossificada, incapaz de oferecer um futuro que não seja a repetição interminável das mesmas políticas anti-trabalhistas e de austeridade dentro de um modelo de desenvolvimento degradante baseado em baixos salários e baixos impostos.
Com o futuro fechado, os confrontos simbólicos do passado se transformam no único terreno significativo para expressar diferenças políticas. Como explica a socióloga Lilyana Deyanova, na ausência de um confronto político significativo após o eclipse de grandes narrativas, “a guerra civil da memória” começa a agir como uma ersatz política. Mas com o anti-comunismo e o anti-totalitarismo liberal em marcha, o único efeito é ajudar o fascismo a se aproximar cada vez mais da reabilitação.
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(*)Jana Tsoneva cursa doutorado em sociologia na Universidade da Europa Central em Budapeste, trabalha nos campos da sociologia política e econômica e é membro do Coletivo de Intervenções Sociais, Sofia.
Tradução, seleção de trechos e adaptação: José Carlos Ruy