Número de brasileiros sem ter o que comer pode mais do que dobrar
A decisão do Governo Bolsonaro de, com o fim do auxílio emergencial, extinguir o Bolsa Família e criar um novo benefício – o Auxílio Brasil – pode jogar mais 22 milhões de pessoas em situação de fome, na qual outros quase 20 milhões já se encontram no país. É este o número de brasileiros que passam mais de 24 horas sem ter o que comer, de acordo com o estudo realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Pessan) em dezembro de 2020.
“Bolsonaro disse que o Auxílio Brasil terá 17 milhões de beneficiados e só o Bolsa Família tem em torno de 15 milhões de famílias beneficiadas e outros 2 milhões na fila de espera. Mas 39 milhões de pessoas recebem o auxílio emergencial. Quantas vão ficar fora do novo benefício? Essa matemática não fecha. O que vai acontecer com os 22 milhões que estão no perfil de renda, em risco e não estão no cadastro único do Bolsa Família?”, questiona Ieda Castro, que foi Secretária Nacional de Assistência Social no governo da Presidenta Dilma Rousseff e atualmente é secretária de Trabalho e Desenvolvimento Social de São Benedito (CE) e diretora do Colegiado Nacional de Gestores Municipais de Assistência Social (Congemas).
Caso seja extinto o Bolsa Família e os que beneficiários do auxílio emergencial que ainda não estão no Cadastro Único fiquem de fora do Auxílio Brasil, isto significa que pode mais do que dobrar o número de pessoas que passam fome no Brasil, segundo calcula: “Podemos passar de 20 milhões para 42 milhões de pessoas passando fome. Quem são esses 22 milhões de pessoas? As outras, que estão no Bolsa Família, já se sabe o perfil delas. E as que não estão no cadastro único e não foram orientadas ao longo da pandemia a entrar nele? O Auxílio Brasil não atenderá às necessidades de hoje e é fato que o auxílio emergencial, dia 30 de outubro, não existe mais. Mas o que vai ficar no lugar é a discussão que cabe ao Congresso. Ficará o Bolsa Família melhorado ou o Auxílio Brasil”?
Ela alerta ainda para outro aspecto alarmante na implementação do Auxílio Brasil: “Bolsonaro também cometeu um equívoco ao determinar que só vai receber o auxílio quem está com o cadastro atualizado. Desde fevereiro de 2020 o governo federal flexibilizou para não ter atualização cadastral. Se em primeiro de novembro só vai receber o valor do Auxílio Brasil quem tiver o cadastro, há uma perda nesse novo benefício desde a concepção, na gestão e nos ganhos dos beneficiários que vão ficar sem o benefício em decorrência das não atualizações. O cadastro está há um ano e nove meses sem atualização. Teve município que fez, mas o que seguiu as orientações do governo federal não atualizou”.
Além disso, de acordo com Ieda Castro, existe um risco de o Auxílio Brasil não perdurar: “Segundo consta só vai haver orçamento assegurado até 2022 para o Auxílio Brasil. Estamos com um programa de 18 anos, o Bolsa Família, e corremos o risco de estar sendo extinto um benefício permanente em troca de um temporário”. Outro problema nesta transição, aponta ela, é que aumentará a vulnerabilidade social dos beneficiários. “O governo Bolsonaro tirou um benefício que é de proteção social e criou um que é de mera proteção financeira”, afirma.
Leia a entrevista completa concedida ao Portal Vermelho.
Se for extinto o Bolsa Família, como Bolsonaro pretende, haverá alguma perda na transição para o Auxílio Brasil?
Ele está extinguindo o Bolsa Família e há um prejuízo porque, na verdade, o Bolsa Família quando foi pensado tem um conceito, uma transferência monetária que é incentivo para que possa melhorar o desempenho da família na educação e na saúde e romper com o ciclo inter-geracional da pobreza. Investe-se nas novas gerações, em saúde e educação, duas políticas básicas para desenvolvimento infantil, geração com melhor condição de acesso; eleva-se a escolaridade; diminui-se a mortalidade. Com isso, cria-se uma política estrutural que poderia interromper o ciclo da pobreza.
O Bolsa Família tem 18 anos. A geração do Bolsa Família teve futuro melhor do que os seus pais, conseguiu concluir o ensino médio e ter acesso a universidades. O que está sendo colocado no lugar é simples transferência monetária e atribuindo ao recurso uma meritocracia. Ele cria uma espécie de crédito educativo para primeira infância, mas a mãe precisa provar que está procurando emprego. Só que até para a mulher procurar o emprego, ela precisa já ter assegurado o crédito educativo do filho.
A substituição do Cadastro Único por uma nova plataforma apresenta algum risco para a gestão dos benefícios?
É outra questão bem complicada Bolsonaro trazer mudanças no cadastro de acesso aos benefícios. O Cadastro Único é ferramenta de gestão extremamente importante porque faz o retrato das vulnerabilidades das famílias e fornece subsídios para políticas públicas. Ele está transformando o Cadastro Único, cuja gestão é realizada pelos três entes federados: município operando, estado operando e acompanhando, e o governo federal fazendo fiscalização e dando diretrizes gerais. Quando ele anuncia que será uma plataforma, ele está fazendo isso sem discutir com os entes federados, ou seja, quer federalizar algo que é resultado de compartilhamento de responsabilidades. Uma das dimensões da pobreza é o não acesso à internet e a população vai ter dificuldade de manter o seu cadastro atualizado.
Em termos reais, haverá ganho com o Auxílio Brasil como disse o presidente?
Bolsonaro está excluindo 22 milhões de beneficiários de transferência monetária, que hoje recebem o auxílio emergencial. Como não tem perda? E o valor também tem perda. Porque ele associa ao valor outros penduricalhos, de outros benefícios, faz com que se tenha a ilusão. Na Medida Provisória do Auxílio Brasil, o governo não informa qual é o corte de pobreza, se é o mesmo do Bolsa Família, de R$ 89. Pela linha de corte do Banco Mundial, a renda deveria ser de até R$ 300 para ter acesso ao benefício. E, para chegar a somente 17 milhões de beneficiários, o governo vai ter que usar o mesmo corte de pobreza de R$ 89 reais do Bolsa Família, que está muito baixo.
Levantamento Genial/Quaest mostrou que 54% dos brasileiros acreditam que novo programa diminuirá as chances de voto no presidente. A população não está aprovando o Auxílio Brasil?
O Auxilio Brasil não é transparente. Estou trocando o Bolsa Família pelo quê? A insegurança aumentou, a desproteção social. Por que as pessoas estão inseguras? É o fim do Bolsa Família anunciado. É uma insegurança muito grande nas famílias que precisam dele para necessidades básicas, afora a discussão da creche. Bolsonaro diz que cria um voucher, mas não é um voucher. É um crédito educativo. A União paga uma empresa educacional, a qual pode vincular as crianças e fere a lógica do município. A educação infantil é municipalizada. Como a União vai contratar diretamente uma empresa? Vai virar depósito de crianças.
Bolsonaro está tirando um programa que tem base na saúde e educação. Não precisaria mudar o Bolsa Família. O programa pode ser melhorado. No que ele não é suficiente? O corte de renda e o valor pago não são suficientes. Mas você não precisa destruir o benefício, precisa qualificar.
Incluir 2 milhões de pessoas não é o bastante. A pobreza está bem maior que isso. O governo está usando o corte de pobreza de 5, 6 anos atrás. Com o aprofundamento da miséria, da fome, da pobreza e das desigualdades, a base deveria ser os 39 milhões recebem o auxílio emergencial.
A pobreza vai dar um salto maior agora. O governo já sabia que a pobreza ia dar um salto quando tirasse o auxílio de R$ 300. Mas a estratégia de R$ 600 reais é que foi comprovada que teria efeito positivo e precisaria alargar para os 39 milhões de beneficiários e não os 17 milhões.
Como muda, na prática, a vida do beneficiário com o Auxílio Brasil?
Com o auxílio emergencial e agora com o Auxílio Brasil, o benefício se tornou meramente financeiro. A pessoa não pega mais em dinheiro com o cartão digital, é tudo no banco, para pagar conta. Esta foi uma mudança de conceito forte. Mas a relação comercial entre as pessoas mais pobres é informal. O aluguel não tem contrato, não é um boleto. Então, a pessoa tem que sacar o dinheiro para pagar. Essa modalidade financeira não permite isso. As pessoas que estavam cadastradas no Bolsa Família deixaram de ter a conta bancária. Isso é irreversível e não foi transparente. Ninguém sabe como será operado. O usuário procura a conta no município e não tem mais.
Vamos supor que 50% dos que recebem o auxílio emergencial estejam no perfil do Bolsa Família, mas não estão no cadastro único. Como vão entrar e como serão beneficiados? Não se sabe. Bolsonaro está pedindo apoio do parlamento para um cheque em branco. Qual é o estudo social que fundamentou o novo modelo? Qual a expectativa com esse novo auxílio? Ninguém sabe.
É possível se considerar o Auxílio Brasil um novo Bolsa Família?
O Auxílio Brasil não é um novo Bolsa Família. Porque não é um Bolsa Família melhorado, é outro conceito de benefício, um conceito extremamente conservador de política social, ultraliberal e meritocrático. Há um problema moral aí muito sério. Na década de 1930, o conceito era de criminalização da pobreza, de que ela existe porque as pessoas têm preguiça, não procuram emprego. Este conceito que estigmatiza a pobreza é o que está embutido neste benefício.
As políticas públicas deste governo são ultrapassadas, da década de 1970, quando havia bolsas federais para pagar escolas. É também o caso do Bolsa Atleta: só tem direito quem tiver premiação. Antes o atleta tinha que estar vinculado a um clube, participar dos treinos e do campeonato. Ele poderia ter benefício a mais se vencesse. Mas o básico era a bolsa para ele fazer os treinos. A premiação é um resultado. Agora, numa competição ele está bem, ganha. E se não ganhar na outra competição, perde o benefício? No esporte, às vezes você está em baixo mas sobe de novo, é do esporte. Se o governo vincula bolsa a prêmio, mudou o conceito. É a história da meritocracia: só recebe quem provar que merece receber, o que só reforça preconceitos como a crença de que as pessoas pobres não procuram emprego. A conjuntura não é favorável, principalmente, para quem tem baixa escolaridade. Se for mulher, então…
Ouve-se pessoas da elite dizerem que não conseguem mais uma empregada doméstica ou alguém para fazer serviço no jardim, que essas pessoas acostumaram a não trabalhar. Elas não consideram que existe uma sociedade desigual, que não vai abrir oportunidade para todos. Há a questão da escolaridade, do analfabetismo funcional e a reforma trabalhista jogou as pessoas na informalidade. O contrato intermitente, por exemplo, é um absurdo. A pessoa tem que estar disponível quando for convocada, mas o patrão não precisa dela todo dia. Aí a desproteção e a insegurança aumentam. É preciso assegurar a renda básica à classe trabalhadora.
Mas, com a extinção do Bolsa Família, como fica a assistência social às famílias que hoje recebem o benefício?
O governo não tem fonte de pagamento desse novo benefício. Ele tem um saldo equivalente a 1 ano e 9 meses de recursos não utilizados para o Bolsa Família. Ficou esse crédito orçamentário. Estávamos na disputa para mais recursos para serviços socioassistenciais. Mas agora há projeto de lei para esse recurso orçamentário bancar o Auxílio Brasil já nos meses de novembro e dezembro. Se é benefício novo, o governo não pode lançar no ano que vem, por conta da eleição. Tem que começar a pagar esse ano. Por isso a pressa.
Bolsonaro não quer destruir somente a marca Bolsa Família, mas todos os avanços que aconteceram nos governos progressistas. A partir de 2003, montou-se um sistema de segurança alimentar, que começou com a campanha de combate à fome. O Sistema Único de Assistência Social (SUAS) é um dos mais complexos do mundo: tem benefícios, serviços e programas. Conta com programas como Criança Feliz, erradicação do trabalho infantil, acompanhamento às famílias, Bolsa Família, BPC. É o único sistema de proteção que tem essas três áreas. Não adianta fazer transferência monetária e não ter o lugar de apoio para a família no local onde mora. As pessoas têm necessidade de acesso a saúde, educação, saneamento, lazer. As famílias precisam da retaguarda do Estado em situações de violência, de violação de direitos. Desmontar isso é jogar as pessoas à própria sorte. É isso que os CRAS (Centros de Referência de Assistência Social) fazem nos municípios.
Pelo contrário, numa conjuntura de aprofundamento da desigualdade, é preciso um sistema protetivo mais sólido. É um momento inadequado para tirar o Bolsa Família. O que o governo pode fazer é qualificar, melhorar o programa. É uma aventura o que está sendo feito. Essa é uma discussão que o parlamento tem que fazer. Há uma corresponsabilidade nisso. E o governo poderia fazer uma nova edição do auxílio emergencial, mantendo pelo menos os R$ 300 reais para todos. É melhor do que encolher o alcance do benefício para 17 milhões de pessoas.