Cem anos de Clóvis Moura, intérprete marxista do Brasil

Leia a nota aprovada na reunião do Comitê Central do PCdoB de 1º de junho de 2025, por ocasião do centenário de Clóvis Moura
Clóvis Steiger de Assis Moura nasceu em 10 de junho de 1925 na cidade de Amarante, estado do Piauí, onde iniciou os estudos. Começou o secundário em Natal (RN) e terminou em Salvador (BA). Em 1939, publicou no jornal do grêmio estudantil O Potiguar – criado por ele – o texto intitulado Libertas quae tamem (Liberdade, ainda que tardia), abordando a “Inconfidência Mineira” com vigor nacionalista.
Clóvis Moura figura entre os grandes intérpretes do Brasil. Autodidata, construiu sua obra à margem dos cânones acadêmicos, mas, pela qualidade, seus estudos e ideias reverberam nas universidades do país. É um dos principais intelectuais orgânicos do movimento negro brasileiro. Dentre os vinte sete títulos publicados, vinte tratam da história e dos problemas da população negra brasileira, tendo como nexo principal a efetiva participação da população negra na política brasileira.
Lançou, em 1959, Rebelião na senzala, obra que se tornou referência para interpretação do escravismo brasileiro, desmontando a tese da passividade do escravizado, indo além da senzala e estabelecendo o quilombo como categoria estratégica, a principal unidade política e produtiva antiescravista, transcendendo o perímetro e a dimensão territorial.
A confrontação básica do escravismo foi a relação senhor-escravo, que se constituía numa contradição essencial, insuperável, segundo Clóvis Moura. Por isso, considerou, como elementos de desestabilização do regime, as múltiplas formas de resistência: fugas individuais e em massa, suicídios, boicote da produção, assassinato de senhores, formação de quilombos, sedições e revoltas. Ou seja: as variadas formas de resistências têm sentido político, desde a simples reação individual de rompimento com a alienação que o escravizado se encontrava.
Clóvis Moura subdivide a escravidão em dois períodos: o pleno, que vai até 1850, tendo como marco a promulgação da Lei Euzébio de Queiroz, que proibiu o tráfico transatlântico de africano no Brasil, marco importante do processo de transição controlada para a abolição gradual, fase que vislumbrava a segregação de negros e negras como condição de população marginalizada; e o tardio, que atravessa a fase abolicionista e finda com a Lei Áurea.
No último período já estavam criadas as condições objetivas para uma transição conservadora, o desenvolvimento da produção capitalista mantendo estruturas arcaicas. O capitalismo dependente, de acordo com Clóvis Moura, foi constituído por riquezas primitivas acumuladas pela exploração de africanos e negros escravizados.
Clóvis Moura destaca a abolição como o fato histórico-social mais importante para formação da sociedade brasileira, que se deu em meio a um conflito com um projeto arcaico conservador para manter privilégios da elite dominante e, ao mesmo tempo, controlar as revoltas populares com vistas a impedir um projeto político mais avançado.
Contato com ideias marxistas
Clóvis Moura tornou-se simpatizante das ideias comunistas acompanhando os acontecimentos daquela conjuntura, sobretudo o fim da Segunda Guerra Mundial e a derrota do nazifascismo. Nas eleições de 1947, candidatou-se a deputado estadual no Piauí pelo Partido Socialista
Brasileiro (PSB), numa articulação de seu tio, João Mangabeira – liderança peessebista histórica –, apoiada pelos comunistas. Não se elegeu, apesar de obter votação expressiva.
Logo se ligou à revista Literatura e ao seu editor, Astrojildo Pereira, principal fundador do Partido Comunista do Brasil, ao qual se integrou, tomando contato mais profundo e sistemático com o marxismo. Em 1951, em Araraquara (SP), criou a revista Flama, um dos porta-vozes das ideias comunistas. Tornou-se uma das lideranças da campanha pela paz, contra a bomba atômica e o envio de jovens brasileiras para a Guerra da Coreia. Foi, também, um dos líderes da campanha O petróleo é nosso, em defesa da nacionalização do petróleo.
Clóvis Moura se destacou também como organizador de congressos da Associação Brasileira de Escritores (ABDE). Foi um dos responsáveis pelos congressos regionais da ABDE em São Paulo, atuando com intelectuais comunistas e de outros campos democráticos.
Atuou nos jornais comunistas O Momento, Hoje e Jacuba e fez um profundo estudo da formação histórica do Brasil. No início da década de 1950, mudou-se com a família para São Paulo e foi trabalhar no jornal Última Hora. Ao mesmo tempo, era secretário de redação da revista Fundamentos, na qual escreveu notas e artigos sobre a passagem do cinquentenário do livro Os Sertões, de Euclides da Cunha, resultado de seus estudos sobre o Brasil com a ótica do marxismo.
No mesmo período, Clóvis Moura trabalhou nos jornais Diário da Noite e Diário de São Paulo e fez a leitura mais intensa da obra de José Martí, aliando-se à luta pela independência e libertação de Cuba, reflexões que o aproximaram do antropólogo comunista Edison Carneiro, com quem passou a trocar correspondência.
Seus estudos sobre a formação histórica do Brasil se ampliaram para a pesquisa de documentos primários do período da escravatura, com foco na escravidão como parte do modo de produção e na resistência negra, que resultou no clássico Rebeliões da Senzala. De notória inspiração marxista, o livro mudou a compreensão da escravidão no Brasil e pôs o escravo como sujeito de sua resistência e libertação, enfoque que ganhou status de nova forma de interpretar o Brasil.
Na cisão do movimento comunista, consumada no Brasil entre 1961 e 1962, Clóvis Moura ficou no Partido Comunista do Brasil reorganizado, que assumiria a sigla PCdoB. Na ditadura militar, manteve encontros frequentes com os dirigentes comunistas Pedro Pomar e Diógenes Arruda Câmara, em constantes atualizações táticas e estratégicas.
Em meados da década de 1970, compôs o Conselho Editorial do jornal Movimento, ligado a intelectuais progressistas e a organizações do grupo dos “autênticos” do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), o partido de oposição à ditadura. Em conjunto com o jornalista José Carlos Ruy, articulou matérias que noticiaram a Guerrilha do Araguaia, a resistência armada organizada pelo PCdoB no Sul do estado do Pará. Escreveu, em 1982, o prefácio da primeira edição da revista Guerrilha do Araguaia – uma epopeia pela liberdade, censurada e apreendida pela ditadura militar.
Seus estudos sobre a escravidão o levaram ao desenvolvimento de um tema correlato: o racismo sob o imperialismo e o neocolonialismo. Desdobrando esse projeto, publicou artigos na revista Princípios, fundada por João Amazonas – histórico dirigente comunista –, desde seus primeiros números, no início dos anos 1980. E, em 1994, entregou à Editora Anita Garibaldi sua obra mais elevada: Dialética radical do Brasil negro.
A concepção moureana tem impacto significativo na compreensão das relações raciais no Brasil, no âmbito da luta de classes. Permitiu entender que o racismo não é resíduo de uma sociedade arcaica, que seria superado à medida do avanço da modernização do capitalismo, mas seu elemento central, estruturante. Está na gênese do próprio capitalismo brasileiro. Ou seja: o racismo se desenvolve com as estruturas capitalistas de opressão política.
Clóvis Moura analisou a emergência do neoliberalismo e suas consequências, escreveu, ministrou palestras e manteve contato com quadros comunistas, sobretudo com José Carlos Ruy, histórico jornalista comunista, colaborando com a luta de ideias do PCdoB até sua morte, em dezembro de 2003.
Também colaborou e interagiu com parlamentares comunistas de vários estados e manteve forte relação com a União de Negras e Negros pela Igualdade (Unegro), da qual escreveu o primeiro calendário com datas importantes relacionadas a presença negra no Brasil.
É, seguramente, o intelectual com contribuições mais relevantes para compreensão do racismo e para a organização política do movimento negro brasileiro. Suas reflexões se consolidam diante de um terreno ideológico altamente complexo: de um lado, enfrentou o mito da democracia racial, segundo o qual o modelo do escravismo no Brasil deu forma a uma sociedade tolerante com as diferenças raciais; de outro, se contrapôs a concepções ideológicas conservadoras nas lutas contra o racismo.
Mantém-se como fundamental no combate teórico e político ao liberalismo e ao chamado pós modernismo que influenciam negativamente o movimento negro.
No ano de seu centenário, o PCdoB, em conjunto com o pensamento avançado, marxista e progressista do país, com o movimento negro brasileiro e demais movimentos do povo e dos trabalhadores, celebra a rica contribuição desse grande brasileiro, responsável por importantes avanços na interpretação do país e na construção de um Brasil soberano, democrático, desenvolvido e sem racismo, sob a perspectiva da conquista do socialismo.
(Edição: André Cintra)