Retrato oficial dos juízes da Suprema Corte dos EUA, em 30 de novembro de 2018

Desde a década de 1930, o movimento conservador moderno tenta restringir o governo da maioria – porque sabe que um movimento democrático de massas é uma ameaça a seu poder.

Por Miles Culpepper*

Durante a campanha eleitoral de 2016, e imediatamente depois, os comentaristas repetidamente advertiram que Donald Trump representava uma ameaça fascista à democracia, completamente anômala à experiência dos EUA – ele foi comparado aos ditadores fascistas da Europa da década de 1930, aos caudilhos latino-americanos e aos homens fortes africanos.

Entre seus ataques à liberdade de imprensa, sua retórica fanática e sua fraca compreensão dos freios e contrapesos institucionais, argumentou-se que Trump rejeitou o ideal estadunidense da própria democracia liberal.

É verdade que a retórica abertamente racista e misógina de Trump mergulhou o discurso político dos EUA em profundezas invisíveis desde os dias de Jim Crow [quando, nos estados do Sul, a segregação racial era definida em leis que estiveram em vigor até meados da década de 1960 – Nota da redação]. Mas o tempo de Trump na presidência revelou uma verdade mais mundana: o presidente, com todo o seu desprezo pela democracia, é um produto do movimento conservador dominante nos EUA.

O índice de aprovação de Trump entre os eleitores republicanos gira em torno de 90%, e há poucos republicanos, se é que há algum, dispostos a criticá-lo publicamente. Em 2012, Mitt Romney procurou o apoio de Trump, apesar (ou talvez por causa) de seu papel de liderança na teoria racista da conspiração. Importantes veículos de comunicação conservadores, que rejeitaram Trump como palhaço autoritário nas primárias republicanas de 2016, de modo geral se rebatizaram como defensores ativos do presidente. David Brooks e o resto dos Never Trumpers (Nunca Trumpers) que permanecem só são respeitados por moderados assinantes do New York Times, mas não por conservadores.

A história mais ampla, eclipsada pelo comportamento escandaloso de Trump, é que há décadas a direita dos EUA luta para reverter o progresso conquistado pelos grandes movimentos sociais do século 20. Para fazê-lo, provaram repetidas vezes que estão dispostos a ir contra a própria democracia, na tentativa de preservar o domínio dos oligarcas sobre o governo e a riqueza – auxiliados em grande parte pela exploração das várias instituições contra-majoritaristas do sistema político estadunidense.

A democracia, é claro, é mais do que apenas um governo representativo, uma regra da maioria ou o acesso às urnas. As verdadeiras democracias repousam sobre uma distribuição igualitária de poder na economia e na sociedade, bem como na forte proteção a grupos minoritários e aos indivíduos. No entanto, mesmo se a democracia for definida como a capacidade das pessoas comuns de escolher representantes que fazem política em seu nome, fica claro que o movimento conservador é abertamente hostil à democracia. E tem sido desde sempre.

O movimento conservador moderno nasceu como reação à luta dos trabalhadores e, nos EUA, ao estado de bem-estar do New Deal, e atingiu a maturidade combatendo o movimento pelos direitos civis.

Barry Goldwater, o primeiro candidato presidencial republicano do movimento conservador contemporâneo, começou sua carreira política em oposição ao New Deal. Quando Goldwater garantiu a indicação presidencial em 1964, combatia vigorosamente as propostas liberais de mobilizar o poder do governo federal para acabar com o apartheid no sul. Goldwater insistiu que a questão dos direitos civis deveria ser deixada para os estados – mesmo se esses estados impedissem os afro-americanos de participar do processo político. Com base nessas ideias, Goldwater se tornou o primeiro republicano a fazer incursões significativas no “Sólido Sul” dos Dixiecrats [como se designava, no passado, nos estados do Sul dos EUA, o partido “States’ Rights Democratic Party” (SRDP – Partido Democrata para o Direito dos Estados, em tradução livre) – nota da redação].

Os futuros presidentes George Bush, então concorrendo ao Senado pelo Texas, e Ronald Reagan, porta-voz da campanha de Goldwater, na eleição de 1964 seguiam a liderança de Goldwater. Bush fez vigorosa campanha contra a Lei dos Direitos Civis (1964), sendo derrotado para o Senado. E Reagan manteve a hostilidade aos direitos civis ao longo de sua carreira política, dando início à a campanha presidencial de 1980 com um discurso que exaltava o direito dos estados, pronunciado num condado do Mississippi onde, em 1964, foram assassinados três ativistas pelo direito de voto. Reagan também tentou, em vão, destruir a Lei do Direito de Voto durante seu primeiro mandato. E foi só depois de uma campanha de pressão pública que ele apoiou a renovação da lei em 1982. Ele também se opôs a tornar feriado nacional o Dia de Martin Luther King.

Os conservadores tiveram de esperar até 2013 para enfraquecer a Lei do Direito de Voto. A oposição aberta a essa lei histórica, que se tornou símbolo da igualdade racial e do legado do movimento pelos direitos civis, era insustentável para qualquer autoridade eleita. A Suprema Corte, imune a tais críticas, agiu então pondo fim à supervisão federal da política eleitoral em estados com histórico de discriminação, com uma sentença que teve 5 votos contra 4, no caso Shelby County vs. Holder (2013).

Nos anos seguintes, uma enxurrada de medidas de eliminação de eleitores (incluindo o fechamento de urnas, a remoção dos registros de eleitores e as leis de identificação de eleitores) ajudou os conservadores a manterem o poder, mesmo quando suas políticas se tornam mais extremas e menos populares. Mais recentemente, os republicanos da Flórida usaram um artifício para anular os resultados de um referendo que restaurou o direito de voto a mais de um milhão de ex-criminosos.

A Constituição dos EUA dá aos tribunais um poder imenso. Dá aos juízes da Suprema Corte o poder de derrubar a legislação (um produto da decisão no caso Marbury vs. Madison, 1803) e desfazer ordens executivas, independentemente de quão populares elas possam ser. Às vezes, essa prerrogativa tem sido usada para fins progressistas, como foi o caso no auge do liberalismo pós-guerra, quando Earl Warren serviu como chefe de justiça [entre 1953 e 1969 – Nota da Redação]. Ocasionalmente, os tribunais ainda desempenham essa função, como quando a Suprema Corte legalizou o casamento gay em 2015.

Mas, quase sempre, os tribunais têm sido profundamente conservadores. Durante a “era de Lochner” (que começou ao fim da Guerra da Secessão e terminou no segundo mandato de Franklin Roosevelt), os tribunais puniram impiedosamente a organização sindical e minaram até mesmo as mais modestas reformas sociais. O caso infame de que o período recebe o nome, Lochner versus New York, declarou inconstitucional uma lei estadual que estabelecia a semana de trabalho máxima de 60 horas para os trabalhadores de padaria. Mesmo o conservador juiz John Roberts admite hoje que os juízes daquele caso não “interpretavam a lei, eles faziam a lei”.

Reconhecendo sua vantagem inerente em um corpo não democrático, os conservadores trabalham pacientemente para retornar à era Lochner. Segundo os relatos, o tribunal dirigido por John Roberts é o mais conservador de que há memória, e rotineiramente revoga direitos civis, regulamentações no local de trabalho e proteções ambientais. Hoje, dois dos quatro liberais dos tribunais têm 80 anos de idade, ou mais; por outro lado, o mais antigo conservador só tem 71 anos. E há um vasto conjunto deles nos tribunais inferiores entre os quais conservadores podem escolher, caso algum liberal morra ou se aposente na hora errada.

Neste verão, os conservadores da Corte deram luz verde para a autodestruição partidária irrestrita, uma tática fundamental para inflar o poder de direita. O gerrymandering (uma forma fraudulenta de redesenhar um distrito eleitoral para alcançar vantagens no pleito – nota da redação) teve consequências desastrosas em Wisconsin e na Carolina do Norte, entre outros estados, onde governos de extrema-direita, sem sintonia com a opinião pública, dominaram a política na última década.

Em 2018, o resultado da eleição estadual em Wisconsin favoreceu os democratas, que elegeram o progressista Tammy Baldwin para o Senado pela margem de 10,8 pontos percentuais, e o moderado Tony Evers derrotou o antissindicalista Scott Walker na eleição do governador por uma margem ainda mais estreita.

No entanto, na assembleia estadual, 63 das 99 vagas foram ocupadas por republicanos. Em um ciclo eleitoral que repudiou os conservadores, a direita manteve o poder de impedir a promulgação de qualquer legislação estadual progressista em Wisconsin.

E há o Senado. Entre os principais compromissos da Convenção Constitucional [de 1787] esteve a criação de uma legislatura bicameral: o Senado, com um número fixo de representantes por estado; e a Câmara, com um número de deputados proporcional à população do estado. Hoje, isso significa que os nove maiores estados têm pouco mais da metade da população do país, mas ficam com apenas 18 das cem vagas no Senado. Os pequenos estados, que tendem a ser esmagadoramente brancos, rurais e conservadores, ficam com a maioria. Os estados maiores tendem a ser mais densamente povoados, urbanos e de tendência esquerdista. Mesmo antes de considerar o poder do dinheiro, a direita tem assim uma vantagem estrutural embutida na legislação eleitoral.

Pior, há um ciclo de retroalimentação entre os tribunais e o Senado, pelo qual a captura do Senado contramajoritário significa a captura do poder de controlar o sistema judiciário flagrantemente antidemocrático. A confirmação, em 2018, do consevador Brett Kavanaugh para a Suprema Corte, por 50 a 48, resultou do voto de senadores que representam apenas 44% da população. Não contente com esse poder, a linha-dura do Tea Party, ala radical do movimento conservador, vem pedindo há uma década a revogação da 17ª emenda, na tentativa de tirar dos eleitores a capacidade de eleger os senadores [a 17ª Emenda, de 8 de abril de 1913, determina que cada estado tenha dois senadores, escolhidos por eleição pelo povo desse estado – nota da redação].

A recente controvérsia sobre a questão da cidadania censitária [sobre a origem nacional dos pesquisadores do censo oficial dos EUA – nota da reação] do governo Trump é uma nova evidência de até que ponto a direita está disposta a usar meios antimajoritários para seus fins políticos. O imbróglio começou quando o governo anunciou que perguntaria aos recenseadores se eles eram cidadãos estadunidenses, uma medida que reduziria a participação de imigrantes e das comunidades imigrantes.

Desafios legais se seguiram, culminando na decisão da Suprema Corte que, por 5 a 4, rejeitou os argumentos do governo Trump. John Roberts juntou-se aos quatro liberais da Corte, mas se opôs à alegação de que a questão da cidadania produziria um censo menos preciso ou distorceria a representação política; o argumento do governo Trump – de que o censo seria usado para defender melhor a Lei do Direito de Voto – foi uma mentira descarada.

Tivesse Trump vencido no tribunal, as consequências teriam sido terríveis. É com base no censo que é feita a distribuição do poder político e dos recursos federais nos EUA. O governo usa dados do censo para decidir quanto financiamento cabe a cada estado, para programas cruciais como Medicaid. O censo também determina quantas vagas cada estado tem Câmara dos Deputados na década seguinte, e também influencia o processo de distribuição de vagas nos legislativos estaduais.

A questão da cidadania censitária foi proposta pela primeira vez à equipe de transição de Trump pelo veterano líder do partido, Tom Hofeller. Os políticos conservadores do establishment apoiaram, de maneira unânime, a questão da cidadania. Quatro dos cinco juízes conservadores da Suprema Corte, cada um deles com laços de longa data com o Partido Republicano, apoiaram a Casa Branca, apesar da justificativa dissimulada do Departamento de Justiça.

Esta não foi a primeira vez que os republicanos tentaram fraudar o censo a seu favor. Na década de 1990, o governo Clinton havia proposto uma solução tecnocrática simples (mudança para técnicas modernas de amostragem estatística) para um problema antigo: mesmo o censo mais bem-sucedido diminui a classe trabalhadora, especialmente as minorias raciais. Não apenas imigrantes, mas crianças pequenas, pessoas de baixa renda sem moradia estável, índios americanos, negros e latinos tendem a ser mais difíceis de contar. As pessoas mais fáceis de contar estão envelhecendo como proprietários brancos, um bloco votante confiável e conservador.

Os republicanos reagiram contra o plano de Clinton, argumentando essencialmente que era uma conspiração liberal inventar pessoas falsas a fim de obter mais financiamento federal e representação política para sua base. Os republicanos ganharam essa luta, com facilidade, e seus argumentos reapareceram no período que antecedeu o censo de 2010, que também não usou métodos de amostragem.

Na última década, antecipando o censo de 2020, a agenda de austeridade dos conservadores reduziu o financiamento do censo dos EUA, forçando-o a adotar métodos mais baratos (como pesquisas na internet e uso de registros administrativos públicos e privados) que, segundo os especialistas, levará a uma contagem muito pior do que em 2010. O impacto dessa silenciosa adulteração do censo será enorme. Estudo publicado pelo Urban Institute (de Washington, EUA) estimou que, mesmo se os tribunais bloquearem a questão da cidadania, o fracasso desses métodos, ao lado dos efeitos da repressão policial de longa data contra os imigrantes, provavelmente levará a uma baixa de 0,84%.

Esse número pode parecer pequeno, mas são milhões de pessoas. Se formasse um estado separado, teria aproximadamente o mesmo peso eleitoral que o Kansas. A subcontagem será mais alta entre os negros (3,24%), latinos (2,84%) e indígenas (1,39%). Este é o censo que temos mesmo com a recente decisão do Supremo contra o governo Trump.

Os conservadores de hoje dependem de instituições políticas que descaradamente derrubam o governo da maioria. O Senado, os tribunais, o Colégio Eleitoral (que sacramenta a eleição do presidente da República) – todos dão aos conservadores vantagens estruturais em detrimento da maioria. Mas a direita não se contenta em se sentar e vencer num campo de jogo viciado. Trabalha ativamente para restringir o direito de voto, distorcer o censo, usar o gerrymanders para fraudar distritos eleitorais e aumentar a influência das instituições mais antimajoritárias do país. Quando confrontados com críticas, recorrem ao argumento absurdo de que “somos uma república, não uma democracia”.

O majoritarismo não é a mesma coisa que democracia. Direitos de liberdade de expressão, direitos civis e outras proteções são essenciais para uma democracia florescente. Mas o desprezo dos conservadores pelo governo da maioria não provém de uma preocupação sobre uma minoria sitiada (a menos que se pense que a grande empresa forme um grupo oprimido). A verdade é que a direita não espera que a maioria dos estadunidenses apoie suas políticas, nem se importam particularmente com isso.

No entanto, apesar de toda a riqueza e o poder, com o tempo as ideias da direita estão se tornando mais impopulares. Quando as políticas progressistas aparecem nas urnas em um referendo, mesmo sem o apoio daqueles que, no Partido Democrata, são indiferentes e amigos das empresas, os conservadores perdem, repetidas vezes – na lei de direito ao trabalho, aumento do salário mínimo ou expansão do Medicaid, mesmo em fortalezas republicanas.

A direita tem medo do povo – porque sabe que um movimento democrático de massas pode vencer.

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(*) Miles Culpepper é doutorando em história na Universidade da Califórnia em Berkeley, onde se especializou em relações EUA – América Latina e Guerra Fria.

 

Tradução, seleção de trechos e adaptação: José Carlos Ruy