O vencedor do prêmio Nobel de Literatura de 2019, Peter Handke, em foto de novembro de 2018 durante uma premiação de teatro.

O escritor austríaco Peter Handke, que foi agraciado com o Nobel de Literatura de 2019, vem sendo alvo de uma campanha de ódio e difamação, não por sua obra artística, mas por sua veemente oposição ao esmagamento da Iugoslávia e à intervenção militar da Otan no país na década de 1990.

Considerado, ao longo de cinco décadas, como um dos principais autores e tradutores da língua alemã, Handke tem, entre seus principais trabalhos, a peça Ofendendo o Público (1966); A Ansiedade do Goleiro no Pênalti (romance de 1970, e roteiro para o filme de 1972 de Wim Wenders); a novela autobiográfica Tristeza Além dos Sonhos, baseada na vida de sua mãe (1972); a novela (1976) e filme (1978) A Mulher Canhota; e A Hora em Que Não Sabíamos Nada Um do Outro (peça de um ato, de 1992) .

Também é de Handke os corajosos “Justiça para a Sérvia” e “Suplemento”, em que ele denunciou a agressão da Otan à Iugoslávia e o papel central da Alemanha em provocar a guerra fratricida e a desintegração da nação multiétnica nascida do enfrentamento com a ocupação hitlerista.

Há duas semanas, em Die Zeit, Handke questionou, indignado: “Como a Alemanha poderia reconhecer a Croácia, a Eslovênia e a Bósnia-Herzegovina, quando mais de um terço da população era ortodoxa ou muçulmana sérvia? Foi assim que surgiu uma guerra fratricida.”

À Spiegel online, o membro do Comitê do Prêmio Nobel, Henrik Petersen, defendeu a decisão de conceder o prêmio a Handke, cujo trabalho, apontou “claramente fala pela paz e não pela guerra e representa um ponto de vista fundamentalmente antichauvinista”.

Foi contra a Iugoslávia – após a reunificação alemã em paralelo com a queda do socialismo no leste europeu – que a elite alemã exercitou sua versão pós-moderna do ‘lebensraum’ [espaço vital], interferindo para esquartejar a Iugoslávia, e servindo de mais denodado cúmplice de Washington.

Em seu libelo, Handke não mediu palavras: descreveu a OTAN como uma organização genocida, denunciou a hipocrisia do governo alemão e deixou claro seu desprezo por profissionais da mídia que repetiam como papagaios enredos previamente redigidos pelos serviços de inteligência ocidentais.

Certa elite ‘progressista’ alemã jamais perdoou a Handke por ter exposto sua decadência a entusiastas do imperialismo “humanitário” e da intervenção da Otan e por ter repudiado o criminoso bombardeio de Belgrado.

E, ainda, pela relação de respeito que o escritor manteve com o presidente Slobodan Milosevic, que morreu na prisão em 2006, após julgamento pela Tribunal da Otan em Haia. E, ainda menos, pela hombridade com que falou diante do túmulo de Milosevic denunciando os crimes imperiais contra o povo iugoslavo e homenageando o presidente que foi derrubado e sequestrado, mas não se dobrou.

Os escritos de Handke sobre a Iugoslávia são em defesa do estado multiétnico e claramente dirigidos contra uma guerra baseada em falsidade e histeria. Até mesmo suas descrições do campo são permeadas poeticamente por tais considerações: paisagens e montanhas estão livres de quaisquer linhas divisórias étnico-nacionais. A própria natureza incorpora a Iugoslávia e as pessoas que viviam lá juntas em paz.

Foi o reconhecimento imediato de Berlim à Eslovênia e à Croácia como estados independentes em 1991 que desencadeou os conflitos sangrentos que custaram  mais de 100 mil vidas, com a Iugoslávia destruída e substituída por sete miniestados hostis e economicamente inviáveis dominados pela pobreza, tensões étnicas e elites criminosas.

“As velhas hostilidades exploradas por potências estrangeiras na I Guerra Mundial e depois na II Guerra Mundial eclodiram mais uma vez após o reconhecimento”, acrescentou Handke ao Der Spiegel, e perguntou: “Alguém esqueceu que este Estado foi fundado em oposição a Hitler e ao seu Terceiro Reich?”