O inspetor-chefe da equipe da Organização para a Proibição de Armas Químicas (OPAQ) que esteve em Douma em 2018, Ian Henderson, afirmou na ONU que o relatório final contradiz o que foi verificado por sua equipe in loco e devidamente informado à organização

Em depoimento ao Conselho de Segurança da ONU, a convite da China e da Rússia, o chefe da equipe de inspetores de armas químicas da Organização para a Proibição de Armas Químicas (OPAQ) que esteve em Douma em 2018, Ian Henderson, afirmou que o relatório final divulgado contradiz o que foi verificado por sua equipe in loco e devidamente informado à organização.

O relatório que veio a público era “uma completa reviravolta na situação do que havia sido entendido pela equipe inteira de Douma e pela maioria da equipe [no país ‘X]”, enfatizou.

O depoimento foi na segunda-feira (20), e foi complementado por outras evidências sobre a fraude, que serviu de pretexto para o regime Trump bombardear a Síria com uma saraivada de mísseis, à revelia do Conselho de Segurança, e, portanto, cometendo crime de guerra.

Conforme Henderson, inspetor de armas químicas por 12 anos, a direção da Opaq ignorou e suprimiu as descobertas da equipe de investigação que foi enviada para Douma, e que ele comandava. Segundo tal relatório final, teria ocorrido um “ataque químico” com cloro, conclusão contrária à da investigação.

Para sustentar a alegação de que o culpado seria o governo Assad, o relatório final, divulgado em março do ano passado, assumia como fontes do gás cloro dois cilindros encontrados em dos locais separados em Douma, que teriam sido despejados de uma aeronave, portanto, de responsabilidade do exército de Assad.

 

AJEITADOS À MÃO

 

Alegação que simplesmente ignorava e virava pelo avesso a principal conclusão do exame no local e testes posteriores realizados por Handerson: de que os cilindros teriam sido colocados manualmente nos locais em que foram encontrados e não lançados de aeronave.

Em suma, embora por razões óbvias não fosse assim registrado, o que a equipe presenciara fora uma operação de bandeira trocada, para culpar a Síria e seu legítimo governo.

Por “razões imprevistas” de concessão de visto, Handerson não pôde comparecer pessoalmente ao Conselho de Segurança, mas enviou uma declaração por escrito, acompanhada por um vídeo.

Ele fez questão de se apresentar como um profissional não-político, preocupado com a integridade da Opaq, e se descreveu como “ex-líder da equipe de inspeção da Opaq que serviu por cerca de 12 anos”.

“Eu mantenho a Opaq na mais alta consideração, além do profissionalismo dos funcionários que trabalham lá, a organização não está quebrada”, reiterou Handerson.

“A preocupação que tenho refere-se a algumas práticas de gerenciamento específicas em certas missões sensíveis. A preocupação, é claro, está relacionada à investigação da FFM [Missão de Descoberta de Fatos, na sigla em inglês] sobre o suposto ataque químico de 7 de abril em Douma, na Síria.”

“Ataque” que, segundo a organização “Capacetes Brancos” – que se apresenta como uma espécie de ‘defesa civil’ dos jihadistas e cortadores de cabeças – teria morto “40 pessoas” no dia 7 de abril de 2018.

Henderson explicou que havia duas equipes destacadas para investigar o suposto ataque: “Uma equipe na qual eu entrei logo após o início das implantações em campo foi a Douma, na Síria, a outra equipe implantada no país X”.

O WikiLeaks – que desde novembro tem postado vazamentos sobre essa operação – e outros analistas especularam que o “país X” seria a Turquia, já que os investigadores da Opaq foram destacados para interrogar supostas testemunhas.

 

PELO AVESSO

 

“As conclusões do relatório FFM eram contraditórias, eram uma reviravolta completa com o que a equipe havia entendido coletivamente, durante e após as implantações de Douma”, afirmou Henderson.

A Opaq publicou em julho de 2018 o ‘relatório intermediário’, cuja versão original, mostrada pelo WikiLeaks no mês passado, tirava uma conclusão muito diferente daquela que a Opaq decidiu publicar.

“Na época do lançamento do relatório intermediário em julho de 2018, tínhamos sérias dúvidas de que um ataque químico tivesse ocorrido”, relatou o ex-chefe dos inspetores químicos de Douma.

Como Henderson assinalou, “o relatório final não esclareceu quais novas descobertas, fatos, informações, dados ou análises em campo, depoimentos de testemunhas, estudos de toxicologia, análises químicas, engenharia e/ou estudos balísticos resultaram em uma reviravolta completa em relação ao que foi entendido pela maioria da equipe e por toda a equipe da Douma em julho de 2018.”

“No meu caso, eu havia seguido mais seis meses de estudos de engenharia e balística nos cilindros. Os resultados forneceram um apoio adicional à opinião de que não houve um ataque químico. Isso precisa ser resolvido adequadamente pelo rigor da ciência e da engenharia, não é um debate político.”

Apesar de também convidado por China e Rússia, o diretor-geral da Opaq se recusou a participar da discussão sobre Douma no Conselho de Segurança. Uma série de personalidades, entre elas o ex-diretor-geral da Opaq, o brasileiro José Bustani, haviam pedido que a organização, em sua última cúpula, ouvisse o depoimento de Henderson, mas a questão foi ignorada.

 

“REMOVA TUDO”

 

Além desse depoimento de Henderson, outro inspetor que se identificou pelo codinome ‘Alex’ disse ao jornalista inglês Jonathan Steele que o relatório também tinha furos sobre o teor de cloro encontrado.

Há também o e-mail vazado pelo WikiLeaks, em que um alto funcionário da Opaq – o chefe de gabinete Sebastien Braha – ordena a remoção de documento do Arquivo de Registro de Documentos do órgão e orienta a que se remova “todos os vestígios, se houver, de seu recebimento/ armazenamento/o que for”. O documento em questão é a análise técnica de autoria de Henderson, sobre Douma.

Outro documento vazado pelo WikiLeaks descreve uma reunião com vários especialistas em toxicologia e suas opiniões sobre se os sintomas mostrados e relatados nas supostas vítimas do ataque eram consistentes com um envenenamento por gás de cloro. “Os especialistas foram conclusivos em suas declarações de que não havia correlação entre sintomas e exposição ao cloro”, disse o documento, acrescentando que o especialista chefe sugeriu que o evento poderia ter sido “um exercício de propaganda”.

 

O MUNDO DO ‘ALTAMENTE PROVÁVEL’

 

Na reunião do CS, os EUA acusaram a Rússia de tentar “desacreditar a Opaq”, mas Moscou retrucou que o objetivo é “restaurar a confiança” na organização. “Porque o incidente químico em Douma é tão importante?”, questionou o embaixador permanente russo na ONU, Vassily Nebenzia, que chamou Washington de “lobo chorão”.

“Porque foi uma justificativa para ataques de mísseis pelos EUA, França e Reino Unido em abril de 2018, que imediatamente declararam o governo sírio culpado”, ressaltou. “Não faz tanto tempo atrás, alguns de nossos colegas inventaram um novo paradigma, o mundo do ‘altamente provável’”, ironizou o representante russo.

Os novos questionamentos técnicos reforçam o que já em 2018 havia sido mostrado pela Rússia, ao apresentar em entrevista na sede da Opaq em Haia crianças mostradas nos vídeos dos ‘Capacetes Brancos’ de Douma, e que desmentiam o ‘ataque químico’.