“Mundo precisa de multilateralismo e paz”, afirma presidente da China
Pela primeira vez na história realizada por videoconferência, em razão da pandemia de coronavírus, a Assembleia Geral da Nações Unidas, que comemora os 75 anos de fundação da ONU, teve início na terça-feira (22), marcada pela proclamação da China de que “o unilateralismo é um beco sem saída”; pelo palanque eleitoral de Donald Trump com seu xingamento de “chinavírus” no dia em que os EUA empilharam 200 mil mortos da Covid; e pela advertência do secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, contra a ameaça de uma “Grande Fratura” no mundo, com cada lado das duas maiores economias do planeta “com suas próprias regras financeiras e de negócios, inteligência artificial e recursos de internet”.
O presidente russo Vladimir Putin, por sua vez, saudou a conquista da vacina Sputnik V e conclamou por uma conferência mundial que assegure vacinas gratuitas para todos. Ele também pediu “o fim das sanções ilegítimas” para revitalizar o crescimento global severamente atingido pela pandemia.
Guterres enfatizou que os ideais pelos quais a ONU foi fundada “permanecem como faróis para um mundo melhor”. Ele também repudiou o egoísmo de certos países no tocante às vacinas contra a Covid – o que chamou de “vacinacionalismo”, com os países ricos fazendo acordos em paralelo para garantir a imunização das respectivas populações e ignorando os esforços para distribuição igualitária das vacinas.
Como ele destacou, isso “não é apenas injusto, é contraproducente. Nenhum de nós está seguro até que todos nós estejamos seguros.” No grande salão da Assembleia Geral da ONU, em Nova York, no plenário apenas um representante de cada um dos 193 países membros, devidamente aparamentados com máscara facial, como a ciência recomenda. Guterres discursou de lá.
Como é costume desde 1947, o discurso de abertura foi proferido pelo presidente brasileiro, com Jair Messias Bolsonaro expondo o país a novo vexame internacional, reclamando da carestia da hidroxicloroquina e causando um rebuliço nas redes sociais, com gente querendo receber os ‘1.000 dólares’ que ele anunciou ao mundo ter dado a cada brasileiro.
Em seu discurso, o secretário-geral da ONU lembrou que o coronavírus “colocou o mundo de joelhos” em uma crise de saúde de importância “histórica”, que é acompanhada pela maior calamidade econômica e perda de empregos desde a Grande Depressão, ao que se somam o temor de uma nova Guerra Fria, agora entre os EUA e a China, e as ameaças aos direitos humanos.
Guterres conclamou à unidade para combater a pandemia e insistiu em um esforço internacional de 100 dias para que sua proposta, de um cessar-fogo mundial, se torne realidade antes do final do ano.
Em meio à guerra tecnológica e financeira movida por Washington contra Pequim, e incursões de navios de guerra dos EUA nas costas da China, Guterres advertiu que “estamos avançando em uma direção muito perigosa”.
“Nosso mundo não pode permitir um futuro no qual as duas maiores economias dividam o mundo em uma Grande Fratura, cada uma com suas próprias regras financeiras e de negócios, inteligência artificial e recursos de internet”, disse Guterres.
“Uma divisão tecnológica e econômica corre o risco de se tornar inevitavelmente uma divisão geoestratégica e militar. Devemos evitar isso a todo custo”, acrescentou.
PALANQUE
Ao invés de se dirigir ao mundo e seus líderes, Trump preferiu um comercial pré-gravado de baixo calão, voltado para seus eleitores, regado a “chinavírus” e sem sequer buscar disfarçar a xenofobia e o racismo.
“Nós travamos uma batalha feroz contra o inimigo invisível: o vírus da China”, disse Trump. “Devemos responsabilizar a nação que desencadeou esta praga no mundo: a China”, acrescentou. O presidente bilionário também acusou a OMS de ser “virtualmente controlada” por Pequim.
Há poucos dias, tornou-se público através do livro de um dos jornalistas do escândalo Watergate, Bob Woodward, que reúne as entrevistas feitas com Trump no início do ano, que o presidente mentiu sobre a Covid, que já sabia que era mortal, supostamente para “evitar pânico”.
Sua inépcia e o desmanche da economia fizeram com que Trump esteja atrás de Joe Biden nas pesquisas nacionais de intenção de voto e também nos Estados campo de batalha, que definem o resultado no colégio eleitoral.
O comercial de campanha de Trump também tentou jogar sobra a China a culpa dele mesmo ter rasgado o tratado do Clima de Paris, dizendo que é ela que polui os ares e mares e emporcalha tudo, enquanto os ambientalistas só fazem ficar no pé dos EUA.
Após o vídeo de Trump, o embaixador da China na ONU, Zhang Jun, disse que “o alarido americano é incompatível com a atmosfera geral da Assembleia Geral”. Ele acrescentou que “enquanto a comunidade internacional está lutando duro contra a Covid-19, os EUA estão espalhando um vírus político na Assembleia Geral”.
PALESTINA
O orador seguinte, o presidente turco Recep Tayyip Erdogan condenou o acordo entre o regime de Netanyahu e os feudais do Golfo, chamando a Palestina de “ferida da humanidade que sangra” e condenando a ocupação israelense. Ele também chamou o ilegal reconhecimento de Jerusalém por parte dos EUA e de alguns dos seus mais dóceis vassalos como uma afronta “à cidade das três maiores, religiões”, Cristianismo, Islamismo e Judaísmo. “O conflito só pode ser resolvido com o estabelecimento de um Estado da Palestina independente, soberano e contíguo”, enfatizou Erdogan, com base nas fronteiras de 1967. Outras soluções são “vãs, unilaterais e injustas”, concluiu Erdogan.
XI JINPING: COOPERAÇÃO
Em seu discurso à ONU, o presidente chinês Xi Jinping, sem nomear os EUA, pediu cooperação entre os países e enfatizou que “o unilateralismo é um beco sem saída”. “Nenhum país tem o direito de dominar os assuntos globais, controlar o destino de outros ou manter as vantagens do desenvolvimento só para si”, afirmou Xi, acrescentando que nenhuma nação deve ser “o agressor ou o chefe do mundo”. Ele também repeliu a “politização” do coronavírus.
Xi reafirmou o compromisso da China com “os propósitos e princípios da Carta da ONU com base na experiência histórica e nas lições da Guerra Mundial Anti-Fascista”. “Devemos permanecer fiéis ao multilateralismo e salvaguardar o sistema internacional com a ONU em seu núcleo”, assinalou. A governança global deve ser baseada “no princípio de ampla consulta, cooperação conjunta e benefícios compartilhados”. A China jamais buscará “hegemonia, expansão ou esfera de influência. Não temos a intenção de travar uma Guerra Fria ou uma guerra quente com qualquer país”, sublinhou Xi.
Sobre a batalha contra a Covid-19, Xi assinalou que os povos de diferentes países se uniram e a humanidade vencerá”. Como apontou, ao enfrentar o vírus, “nós pusemos as pessoas e as vidas em primeiro lugar e mobilizamos todos os recursos para dar uma resposta direcionada e baseada na ciência”.
Nenhum caso devia ser esquecido e nenhum paciente, deixado sem tratamento, enfatizou. “A propagação do vírus tinha de ser contida. Era preciso fortalecer a solidariedade e o papel de liderança da OMS e lançar uma resposta internacional conjunta”.
Ele também se referiu às vacinas chinesas contra a Covid-19 em fase final de testes clínicos e ao compromisso, assumido com a OMS, de prover US$ 2 bilhões em dois anos, assumido quando Trump cortou os recursos dos EUA para a organização.
Xi também pediu a rejeição das tentativas de construir blocos para manter os outros fora e se opôs à abordagem de soma zero. “Devemos buscar a cooperação ganha-ganha, superar as disputas ideológicas e não cair na armadilha do ‘choque de civilizações’”.
“Mais importante ainda, devemos respeitar a escolha independente de um país quanto ao caminho e modelo de desenvolvimento. Devemos transformar essa diversidade em uma fonte constante de inspiração para o avanço humano. Isso irá garantir que as civilizações humanas permaneçam com cores próprias e diversificadas”, destacou.
POR VACINA GRATUITA
O presidente Putin disse à 75ª Assembleia Geral que a Organização Mundial da Saúde deve ser fortalecida para coordenar a resposta global à pandemia do coronavírus e propôs uma conferência de alto nível online sobre cooperação em vacinas, que permita torná-las acessíveis gratuitamente a todos.
A Rússia foi a primeira no mundo a registrar uma vacina – Sputnik V, que se provou “confiável, segura e eficaz” – e está pronta para fornecer toda a assistência necessária, enfatizou Putin
O presidente russo também pediu o “fim das sanções ilegítimas” como um grande passo para “revitalizar o crescimento global e reduzir o desemprego”. Ele propôs, ainda, que as grandes potências espaciais assinem um acordo vinculante que proibiria “a colocação de armas no espaço sideral, a ameaça ou o uso de força contra objetos do espaço sideral.”
Putin observou, ainda, que no combate à pandemia a solidariedade de médicos, voluntários e cidadãos de diferentes países, em sua maioria, não conheceu fronteiras e que muitos Estados também “ajudaram-se abertamente e de forma desinteressada”. No entanto, destacou, “também houve casos em que houve um déficit de humanidade e, se quiserem, de gentileza nas relações a nível oficial”. Ele exortou a ONU a “aumentar o papel do componente humanitário e humano nas relações multilaterais e bilaterais”.
REFORMA DO CS DA ONU, PEDE MODI
Narendra Modi, primeiro-ministro da Índia, segundo país de maior população do mundo, disse que reformas urgentes são necessárias para consertar as “estruturas desatualizadas” da ONU, para garantir que reflitam melhor as realidades do mundo moderno e dar voz a “todas as partes interessadas”.
A Índia vem pleiteando a ampliação dos membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, com seu ingresso e de representantes de outras regiões do planeta. “Para o mundo interconectado de hoje, precisamos de um multilateralismo reformado que reflita as realidades de hoje”, disse Modi.
CUBA
O presidente cubano Miguel Días-Canel afirmou que a situação desencadeada pela pandemia de COVID-19 revela “o desastre ao qual o mundo foi conduzido pelo sistema irracional e insustentável de produção e consumo do capitalismo”. Ele também condenou a “ordem internacional injusta” em meio à implementação de um “neoliberalismo implacável e galopante, que ampliou as desigualdades e sacrificou o direito dos povos ao desenvolvimento”.
Dias-Canel repudiou as novas ações do regime Trump. “Estamos nos referindo a um regime marcadamente agressivo e moralmente corrupto, que despreza e ataca o multilateralismo, usa chantagens financeiras em suas relações com as agências do sistema da ONU e que, em uma demonstração de arrogância sem precedentes, deixou a Organização Mundial da Saúde (OMS), a UNESCO e o Conselho de Direitos Humanos”, afirmou.
Dias-Canel também rechaçou a expansão da presença da Otan nas fronteiras russas e as sanções unilaterais contra a Rússia, assim como a interferência estrangeira nos assuntos internos da república da Bielorrússia. Ele também manifestou solidariedade ao Irã, sob escalada de sanções de Washington.
O presidente do Irã, Hassan Rohani, repudiou, em seu discurso à 75ª Assembleia Geral da ONU, a escalada do regime Trump contra o Irã, depois de rasgar um acordo assinado por seu antecessor e endossado pelo Conselho de Segurança da ONU. Além das sanções unilaterais que tentam matar de fome o povo iraniano, proibindo até mesmo a exportação de petróleo, a escalada incluiu o assassinato, com drone, em outro país, o Iraque, do mais alto líder militar iraniano, Qassem Suleimani.
Comparando o sofrimento afligido ao povo iraniano com aquele que causou a morte de um cidadão negro nos EUA, George Floyd, por um policial racista, Rouhani disse que “nós instantaneamente reconhecemos os pés sobre o pescoço como os pés da arrogância sobre os pescoços das nações independentes”.
O presidente iraniano se referiu a Suleimani como “herói assassinado” e “líder da luta contra o extremismo violento no Oriente Médio que lutou para proteger os cidadãos da região contra reacionários medievais”.
O presidente iraniano acrescentou que os EUA “não podem impor nem negociações nem guerras a nós. A vida é dura com as sanções, mas é mais dura ainda sem independência”. Ele afirmou que qualquer que seja o governo dos EUA depois das próximas eleições, “não terá outra escolha senão se render à resiliência da nação iraniana”.
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