Legenda: Entidades de direitos civis, parlamentares e personalidades se manifestaram em apoio ao veredicto

A condenação do ex-policial branco racista Derek Chauvin pelo assassinato do negro George Floyd foi recebida nas ruas dos Estados Unidos com gritos de júbilo e lágrimas na noite de terça-feira, enquanto as pessoas se abraçavam, no país inteiro, em um misto de alívio e comemoração. Na quarta-feira (21), o Departamento de Justiça anunciou uma investigação abrangente sobre o Departamento de Polícia de Minneapolis.

À CNN, um morador de Minneapolis, BJ Wilder, que ouviu o veredicto ao lado de outros manifestantes na George Floyd Square – o local de seu covarde assassinato em 25 de maio passado -, disse esperar que a “responsabilização” do policial por um tribunal e sua condenação se torne “um ponto de virada”.

Em muitas outras cidades, manifestantes haviam se sentido de forma semelhante, enquanto aguardavam o veredicto. “Já estivemos aqui tantas vezes e, honestamente, a primeira coisa em que realmente pensei foi na situação de Rodney King”, disse Wilder, referindo-se à absolvição de quatro policiais de Los Angeles que haviam espancado King – um evento que levou aos motins de 1992 em Los Angeles.

“Isso é algo diferente. Isso é novo”, ele acrescentou, tão logo se confirmou a condenação do algoz de Floyd.

“Eu cheguei a pensar que poderia ter sido algo semelhante a isso [o caso Rodney], só porque todos nós vimos isso também. Esperançosamente, é um novo dia na América.”

Não era só nas ruas que havia o temor de que, se a indignação pública contra um assassinato abjeto de um homem negro desarmado e asfixiado com o joelho, fosse afrontada de novo por um tribunal, a cólera voltasse a explodir no país inteiro. O próprio presidente Joe Biden disse que estava “orando” por um “veredicto certo”.

Banco dos réus

No início do julgamento, o líder dos direitos civis reverendo Al Sharpton havia dito que era Chauvin que estava sendo julgado, mas quem estava no banco dos réus era a Justiça norte-americana.

Como observou a chefe da ONU para Direitos Humanos, Michelle Bachelet, saudando na quarta-feira (21) a condenação por assassinato no caso George Floyd, “qualquer outro resultado seria uma farsa de justiça”.

“Como testemunhamos dolorosamente nos últimos dias e semanas, as reformas nos departamentos de policiamento dos Estados Unidos continuam sendo insuficientes para impedir que pessoas afrodescendentes sejam mortas”, disse em comunicado.

Como registrou The Nation. “Bastou para obter essa condenação: quase 10 minutos ininterruptos de vídeo documentando o assassinato em plena luz do dia; uma vítima que já estava algemada e deitada no momento de seu assassinato; meses de protestos em todo o país; anos de organização por ativistas negros; uma narrativa que se elevou acima do barulho de uma pandemia; um procurador-geral do estado democrata; um promotor disposto a indiciar; um julgamento transmitido pela televisão nacional que durou três semanas; vários policiais testemunhando contra um dos seus; e testemunhos amplamente incontestáveis de especialistas médicos”.

Darnella

E a “coragem pura” de Darnella Frazier, a estudante negra do ensino médio, que gravou tudo pelo celular. “O triste é que se não fosse por aquela garota de 17 anos, Darnella, teria sido outro homem negro que foi morto pela polícia … e eles teriam dito, ‘oh, foram drogas, oh, foi isso’”, disse Angela Harrellson, tia de George Floyd.

O vídeo “entrará para a história”, afirmou a Associação Americana para o Progresso das Pessoas de Cor (NAACP, na sigla em inglês) da Carolina do Norte, estado onde Floyd nasceu.

“Como o filme de Abraham Zapruder sobre o assassinato do presidente John Kennedy, o encobrimento policial tradicional tornou-se impossível”, disse a entidade anti-racismo em um comunicado. “Ninguém, nem mesmo muitos dos colegas policiais de Chauvin, poderia argumentar contra o filme da Srta. Frazier.”

 “Uma longa jornada, diz Philonise”

“Hoje, nós somos capazes de respirar de novo”, disse o irmão de Floyd, Philonise. “Justiça para George significa liberdade para todos”.

“Foi uma longa jornada. E já faz menos de um ano”, acrescentou Philonise. “E a pessoa que me vem à mente é 1955. E para mim, ele foi o primeiro George Floyd. E esse era Emmett Till.” A diferença, disse ele, é que “hoje, você tem câmeras em todo o mundo para ver e mostrar o que aconteceu com meu irmão … O mundo viu sua vida se extinguir”.

“Quando digo que hoje é um momento crucial, é a chance de os Estados Unidos tomarem a direção certa”, disse o sobrinho de Floyd, Brandon Williams.

Na capital americana, Washington, manifestantes se reuniram em frente ao monumento de Martin Luther King Jr. e ao Congresso dos EUA após a condenação. A presidente da Câmara dos Deputados, Nancy Pelosi, participou de uma homenagem a George Floyd, acompanhada dos membros da bancada de deputados negros.

Em Nova York, manifestantes saudaram a condenação de Chauvin em frente ao Barclays Center, costumeiro local de concentração das marchas do movimento “Black Lives Matter” (Vidas Negras Importam) na cidade.

“Este pode ser o início da restauração da crença de que um sistema de justiça pode funcionar”, concordou o filho do reverendo Martin Luther King, Luther King III. Ele convocou os manifestantes a se manterem no campo de batalha “de uma forma pacífica e não violenta e fazer exigências”. “Isso vem acontecendo há anos e um caso, um veredicto, não mudam a forma como o racismo sistemático tem funcionado em nosso sistema.”

O movimento Black Lives Matter divulgou comunicado assinalando esperar que o veredicto de culpado “comece a mostrar que o supremacismo branco não tem lugar na democracia”.

Entidades de direitos civis, parlamentares e personalidades se manifestaram em apoio ao veredicto e de alerta sobre a luta que está pela frente.

“Sinto-me aliviado por termos obtido um veredicto de culpado, porque sinto e sei no meu coração que isso era o que [Chauvin] merecia”, disse Toshria Garraway, fundadora do programa Famílias Apoiando Famílias Contra a Violência Policial em Minnesota . O noivo de Garraway, Justin Teigen, e pai de seu filho, foi espancado até a morte pela polícia de St. Paul em 2009, e seu corpo foi jogado em uma lixeira.

“Acho que foi uma vitória muito importante que as pessoas precisavam ver aquele cara ir embora algemado”, disse Michelle Gross, das Comunidades Unidas Contra a Brutalidade Policial (CUAPB).

“O veredicto de culpado é um motivo de celebração para a comunidade negra e todas as pessoas que procuram viver em um mundo melhor”, afirmou em comunicado a Rede de Justiça Racial local (RJN).

Keith Ellison, o primeiro procurador-geral negro de Minnesota, lembrou que mais meio século atrás as comissões Kerner e McComb já haviam alertado sobre o problema, sendo ignoradas. “Aqui estamos, em 2021, ainda tratando do mesmo problema”, enfatizou. “Isso tem que acabar. Precisamos de verdadeira justiça. Essa é uma transformação social que diz que ninguém está abaixo da lei e ninguém está acima dela.”

O Centro de Direitos Constitucionais alertou que a caracterização dos atos de Chauvin contra Floyd como “excepcionais” não captam a essência do problema, “um sistema de policiamento irreformável”. O assassinato, acrescentou a entidade, “é o resultado previsível da origem do policiamento em patrulhas de escravos e a ameaça contínua e constante aos negros de prisão, encarceramento, violência, e morte.”

A União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU) destacou que foi a primeira vez que um policial foi condenado pela morte de um afroamericano no estado de Minnesota.

Kristina Roth, da Anistia Internacional, EUA, disse que Chauvin “não apenas negou a George Floyd seus direitos humanos, mas também mostrou total desrespeito pela humanidade de George Floyd”.

Ela convocou a “trazer segurança pública significativa para aqueles que foram historicamente perseguidos”. “Isso deve incluir a redução do tamanho e do escopo da aplicação da lei na vida diária, eliminando a imunidade qualificada, desmilitarizar a aplicação da lei e decretar limites estritos ao uso da força como um todo”, destacou.

“A verdadeira justiça para George Floyd e muitos outros só pode acontecer quando construirmos uma nação que respeite fundamentalmente a dignidade humana de cada pessoa”, afirmou o senador Bernie Sanders, ex-pré-candidato a presidente dos EUA. “Devemos ousadamente erradicar o câncer do racismo sistêmico e da violência policial contra pessoas de cor.”

Para o Liberation News, o crédito pela vitória na condenação de Chauvin “vai para o movimento histórico que exigiu justiça para George Floyd e tantas outras vítimas do terror policial racista”.

“Sem justiça, sem paz”

“Não podemos parar por aqui”, disse o presidente Biden na Casa Branca, chamando o veredicto de terça-feira “um passo raro demais” para os afroamericanos. Por sua vez, a vice-presidente Kamala Harris, que é negra, enfatizou que “todos nós fazemos parte do legado de George Floyd e nosso trabalho agora é honrá-lo.”

Em telefonema à família Floyd, Biden se disse “aliviado” com a conclusão do julgamento. “Ao menos agora, houve justiça”, sublinhou.

Mais tarde, em pronunciamento na Casa Branca, Biden disse que o veredicto é um avanço rumo a uma melhoria nos direitos civis no país. “É preciso confrontar diretamente o racismo sistêmico e as desigualdades”, afirmou, prometendo mais ações por parte do governo federal. “Este pode ser um momento de mudanças significativas.”

A mudança das leis que permitem a violência e a impunidade ainda está por ocorrer. A Câmara de deputados, controlada pelos democratas, já aprovou a ‘Lei de Justiça no Policiamento George Floyd’, mas a tramitação no Senado segue emperrada.

Segundo os democratas, a lei coibiria o “perfil racial” – negros e hispânicos como alvo preferencial -, proibiria uso de “golpes de estrangulamento”, eliminaria aqueles “mandatos de prisão preventivos” que já resultaram em mortes após arrombamentos em plena noite de casas sem a polícia sequer se identificar.

Também tornaria mais fácil processar policiais infratores, criaria um cadastro nacional de policiais infratores e revisaria o treinamento da polícia para gerar confiança nas comunidades em que os policiais atuam.

Entre os pontos mais contestados pela bancada republicana estão o estabelecimento de padrões federais para as polícias e as restrições à imunidade qualificada, mecanismo legal pelo qual o policial que mata simplesmente tem que dizer que se sentiu ‘ameaçado’.

Como assinalou The Nation, a questão da violência policial e da impunidade não é “intratável”. “Isso pode ser resolvido constitucionalmente – revogando casos que permitem que os policiais ignorem a Quarta Emenda”. Pode ser abordado legislativamente “aprovando leis que mudam as diretrizes do uso da força pela polícia e estabelecendo terceiros independentes para investigar e processar os policiais problemáticos, talvez antes que a polícia brutal se transforme em polícia homicida”.

Pode, ainda, ser tratado politicamente “votando em prefeitos que não estão no bolso dos sindicatos da polícia e comparecendo para votar em procuradores distritais locais que prometem tratar a brutalidade policial como qualquer outro crime”. Isso pode ser resolvido com financiamento – “retirando fundos e desmilitarizando a polícia e financiando pessoal não-policial para lidar com crises de saúde mental e serviços de trânsito”.

Também a mídia pode ajudar: “exigindo cobertura que não apenas repita relatórios policiais e narrativas que distorcem e prejudicam vidas reais. Isso pode ser abordado no coração das pessoas – pelo simples ato de acreditar nos negros quando contamos a você o que está acontecendo conosco”.

Em dois meses, se saberá a sentença que o assassino Chauvin terá de cumprir. Há ainda seus três cúmplices a julgar.

Em paralelo ao julgamento de Chauvin, não cessaram os sintomas de quão grave é a doença que aflige os EUA. No início deste mês, a veterana policial branca Kim Potter atirou e matou Daunte Wright, de 20 anos, durante uma blitz de trânsito no Brooklyn Center, um subúrbio de Minneapolis. Ela disse ter confundido sua arma com o Taser, que dá choque.

Em seguida, veio a público o vídeo da câmera corporal que mostra um garoto hispânico, Adam Toledo, de 13 anos, sendo morto pelo policial Eric Stillman em Chicago. Em março, ele dissera que a criança estava armada e era uma ameaça. Mas, revelou o vídeo, Adam havia parado de correr e se virado de mãos erguidas quando foi mortalmente baleado no peito.

No momento em que o veredicto de Chauvin estava sendo anunciado, a polícia de Columbus, em Ohio, matou Ma’Khia Bryant, uma garota negra de 15 anos, que morava em um lar adotivo. A polícia foi chamada por causa de

uma altercação entre as jovens e em minutos a garota tombava morta. Hazel Bryant, tia de Ma’Khia Bryant, disse que sua sobrinha já largara a faca que segurava para se proteger quando levou vários tiros de um policial. “Essa coisa nunca acaba”, desabafou um vizinho, segundo o Washington Post.