Segundo o MPF, a indicação cria ameaça de genocídio e etnocídio contra os povos indígenas isolados
O Ministério Público Federal (MPF) pediu que a Justiça suspenda a nomeação de Ricardo Lopes Dias para o cargo de Coordenador Geral de Índios Isolados e de Recente Contato da Fundação Nacional do Índio (Funai).
A ação civil pública foi ajuizada na terça-feira (11) e pede a suspensão da nomeação por evidente conflito de interesses, incompatibilidade técnica e risco de retrocesso na política de não contato adotada pelo Brasil desde a década de 1980.
“Considerando que o Brasil é o país onde se registra o maior número de povos indígenas isolados na América do Sul – e o Estado Brasileiro reconhece a existência de 114 registros, sendo 28 desses com presença confirmada -, os riscos de informações e dados sensíveis e confidenciais armazenados na coordenação serem acessados por missões de fé com propósitos declaradamente evangelizantes é patente”, afirma a ação do MPF.
Na semana passada, o presidente da Funai Marcelo Xavier nomeou Dias para a coordenação, uma das mais importantes e sensíveis da entidade. Desde então, ele é o responsável pela proteção de índios isolados e de recente contato, considerados os grupos mais vulneráveis do país.
Dias foi ligado por dez anos à Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB), organização com origem nos EUA para evangelização de populações indígenas, cuja atuação é considerada controversa por antropólogos e indigenistas.
Para nomear o missionário, Marcelo Xavier fez antes uma alteração no regimento interno do órgão, retirando a exigência de que o coordenador da área de isolados seja um servidor de carreira. Para o MPF, não existe qualquer dúvida da ilegalidade da nomeação de Ricardo Lopes Dias ao cargo, porque a medida enfraquece a capacidade institucional da Funai em proteger a autodeterminação e a vida dos povos indígenas, mandamentos constitucionais que regem a atuação da fundação.
“A vontade da Assembleia Nacional Constituinte de 1987-88 consagrou a virada paradigmática da postura indigenista brasileira: do fim das práticas de integracionismo e assimilacionismo para o respeito à alteridade dos povos. É papel das instituições do sistema de justiça garantir que o pacto constitucional seja resguardado, em respeito à vontade dos povos que o constituíram”, diz a ação ao pedir a suspensão da nomeação e da portaria que alterou o regimento.
Caso a Justiça concorde com o pleito, a portaria nº 167/2020 da Funai será anulada, o que assegura que apenas servidores efetivos da fundação possam coordenar a área que protege povos em isolamento voluntário e de recente contato. Consequentemente, a portaria nº 151/2020, que nomeou Ricardo Lopes Dias, também será anulada.
CONVERSÃO FORÇADA
De acordo com o MPF, que teve acesso a documentos assinados por movimentos missionários internacionais aos quais Ricardo Lopes Dias é ligado, comprovam o envolvimento da Missão Novas Tribos do Brasil, a que ele pertenceu por dez anos, em um movimento de fazer contatos forçados e evangelizar povos isolados. Nos documentos, utiliza-se o termo “finalizar a missão” para designar o que os missionários dizem ser uma “missão” dada por Jesus Cristo em trecho da Bíblia, e que “obriga evangélicos a promoverem a conversão de povos indígenas em todo o planeta”.
Os documentos do movimento missionário permitem verificar o esforço em obter dados que auxiliem “na tentativa de identificar as necessidades e oportunidades entre aqueles que pouco ou nada ouviram de Cristo”, ou seja, em obter dados sobre identificação e localização dos povos em isolamento voluntário e de recente contato. Para o MPF, esses dados são extremamente sensíveis e o acesso de missionários a eles pode colocar os povos em risco de genocídio e etnocídio.
O Ricardo Lopes Dias atuou como agente da MNTB junto ao povo Matsés, no Vale do Javari, com o objetivo, declarado por ele mesmo em uma dissertação de mestrado, de “desenvolver um programa de evangelização dos Matsés no Brasil, o que resultaria de um trabalho demorado, meticuloso e sofrível que envolveria jornadas de estudos para aquisição do idioma Matsés, coleta de material cultural para análise, e progressivamente, uma elaboração de material linguístico, didático, informativo e religioso”.
A nomeação de Ricardo Lopes Dias para o cargo na Funai foi alvo de repúdio de todas as organizações de defesa dos direitos de indígenas brasileiras, da Associação Brasileira da Antropologia e da Confederação Nacional de Igrejas Cristãs.
Em carta, lideranças Matsés que conheceram a atuação de Ricardo em seu território também repudiaram a escolha: “Ele manipulou parte da população Matsés para que fosse fundada uma nova aldeia, chamada de Cruzeirinho. As lideranças tentaram ir até essa nova aldeia, em busca de um diálogo, mas foram expulsas com violência. O senhor Ricardo tirou proveito dos Matsés, se apropriou de nossa cultura e vendeu sua casa na aldeia para a igreja”.
A ação do MPF se apoia também em parecer da antropóloga Aparecida Vilaça, do Museu Nacional: “A pregação intensa dos missionários, que explicitamente criticam as práticas culturais indígenas, somada à posição de controle de bens manufaturados exercida por eles enquanto habitantes das aldeias, produz nos indígenas um sentimento de humilhação, que leva à rejeição de sua cultura tradicional. Abandonam os seus rituais, festas e narrativas de mitos, o que constitui severa perda cultural. Trata-se assim de atuação que viola diretamente o parágrafo 1 do artigo 231 da Constituição do Brasil”.