Aglomeração na plataforma da CPTM na Estação da Luz, no Centro de São Paulo em 15 de março.

O Lagom Data, um estúdio de inteligência de dados, produziu um levantamento, encomendado pelo jornal El País, comparando os óbitos incidentes em categorias de trabalhadores que não puderam, pela sua essencialidade, interromper suas atividades durante a pandemia da Covid-19.

Por Marco Campanella*

O levantamento comparou os dados apurados em janeiro e fevereiro de 2020, portanto, dois meses antes do início da crise sanitária, com os dois primeiros meses de 2021, quando a pandemia agravou-se exponencialmente, a partir de informações do Ministério da Economia.

Alguns segmentos de trabalhadores chamam a atenção pela sua dramaticidade.

Frentistas de postos de gasolina, por exemplo, tiveram um salto de 68% na comparação das mortes entre janeiro e fevereiro de 2020, pré-pandemia, e dois dos piores meses da crise sanitária, no início de 2021.

Operadores de caixa de supermercado perderam 67% mais colegas no mesmo período.

Motoristas de ônibus tiveram 62% mais mortes.

Entre os vigilantes, que incluem os profissionais terceirizados que monitoram a temperatura de quem entra em shoppings centers, houve 59% de mortes a mais.

As conclusões vêm de uma análise do Novo Cadastro Geral de Empregados e Desempregados, o Novo Caged, ligado ao Ministério da Economia. O sistema coleta, mês a mês, informações sobre contratos formais de emprego, inclusive o motivo de encerramentos.

Morte é um deles, embora não seja informada a causa. Por isso, não é possível saber se todo o contingente de óbitos se deve apenas à covid-19, mas é possível adaptar o conceito de “excesso de mortes” com base neste banco de dados.

Em tempos de pandemias, os epidemiologistas costumam usar o conceito de “excesso de mortes” para tentar avaliar o impacto da doença sobre a vida da população. Mesmo que uma pessoa não morra diretamente da enfermidade da vez, ela pode morrer por outras complicações decorrentes de sua existência, como a falta de vagas no hospital num caso de urgência.

O procedimento normalmente usado é calcular a média de mortes esperada para um dado período e comparar esse dado ao total de mortes registradas por quaisquer causas na pandemia.

De acordo com o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), o Brasil teve mais de 275.500 mortes por causas naturais a mais que o esperado para o país em 2020, um excesso de óbitos de 22%.

O que a análise dos dados do Caged sinaliza ―de maneira inédita― é o custo da Covid-19 para os trabalhadores de atividades consideradas essenciais. O levantamento mostra taxas de excesso de mortes bem superiores à média da população.

São números impactantes, principalmente considerando que o cadastro do Ministério do Trabalho só capta dados do mercado formal. Ou seja, não estão contabilizadas aqui as mortes de autônomos e microempresários individuais, o que certamente agravaria o quadro que já é trágico.

O Sivep-Gripe, sistema do Ministério da Saúde que organiza informações sobre cada paciente que esteve internado para tratar a covid-19, até tem um campo para informar a ocupação do paciente, mas na maior parte dos casos ele não é preenchido. Caso fosse, seria possível avaliar até mesmo as ocupações de pacientes sem emprego formal. A exposição profissional ao risco de infecção é um ponto cego na maioria dos sistemas de saúde do mundo.

Entre os dois primeiros meses de 2020, quando a pandemia ainda não havia causado nenhuma morte no país, e os dois primeiros de 2021, quando grande parte das UTIs brasileiras já não dava conta de tratar de todos os pacientes que chegavam em estado grave, um terço a mais de mortes foi registrado considerando a soma de todas as atividades profissionais.

O salto é de 8.633 em 2020 para 11.424 em 2021. A análise mostra que a mortalidade foi mais alta nas atividades mais claramente essenciais, como comércio de víveres e transportes. Olhando os aumentos de maneira proporcional, as ocupações com os maiores aumentos de mortes são as que dependem de contato direto com o público e não pararam durante a pandemia.

Os riscos e os impactos nas categorias

O pesquisador Yuri Lima, do Laboratório do Futuro da Coppe/Universidade Federal do Rio de Janeiro, divulgou no início da pandemia um estudo mapeando o risco das variadas atividades profissionais.

Segundo a primeira avaliação, trabalhadores do comércio tinham 53% a mais de risco de contágio, os da saúde 50% e os professores até 70%, caso nenhuma medida fosse tomada, com portas abertas e aulas presenciais.

“O caso do pessoal do comércio é muito interessante”, diz Lima. “Se ele continua aberto porque é essencial, vai continuar um risco alto.” O problema, diz, é que várias alterações foram feitas na definição do que é uma atividade essencial, logo nos primeiros meses da pandemia.

Por iniciativa do governo Bolsonaro, tentou-se incluir academias de ginástica e salões de beleza entre as atividades que não poderiam fechar. O lobby das igrejas, especialmente das neopentecostais, foi e continua sendo forte junto ao governo, tanto é assim que o Supremo Tribunal Federal teve que ser chamado a opinar sobre o assunto, quando, por maioria absoluta, decidiu manter a eficácia de decreto do governo de São Paulo que suspendeu os cultos religiosos por conta do agravamento da pandemia no estado, indicando que tal decisão nada tem a ver com a apregoada “liberdade religiosa” pregada por alguns segmentos mais fundamentalistas da igreja evangélica, os “terrivelmente evangélicos”, alguns do quais bem alojados no governo federal.

Profissionais da saúde também aparecem na lista do Caged, e os maiores números de mortes foram registrados entre os profissionais de enfermagem, especialmente os técnicos. Nos primeiros meses da pandemia, havia escassez de equipamentos de proteção individual, os EPIs. De fevereiro a abril, o número de mortes de técnicos de enfermagem captadas pelo Caged chegou a saltar 100% em um mês. Os profissionais da saúde são os mais expostos ao contágio, pois tratam diretamente os pacientes.

Outra categoria analisada foi a dos professores. Em todo o Brasil, houve pressão de pais e diretores de escolas particulares para a volta das aulas presenciais. No primeiro semestre, o ensino remoto com todas as suas dificuldades foi a praxe. Depois de julho, muitas escolas voltaram a abrir. Entre professores contratados para lecionar no ensino fundamental, houve um aumento de cerca de 40% de mortes no segundo semestre de 2020 comparado ao primeiro.

Desde janeiro de 2020, o Caged usa uma metodologia que economistas consideram não ser perfeitamente comparável com a de anos anteriores, pois camufla a realidade do emprego no país, acrescentando entre os trabalhadores empregados inclusive aqueles que firmaram contratos precários, como os intermitentes, mesmo não tendo trabalhado um único dia no mês e auferido qualquer renda.

Fazendo essa ressalva, também é seguro dizer que houve excesso de mortes na comparação entre 2019 e 2020 nas categorias analisadas. No retrato do ano inteiro, é possível dizer que, no segundo semestre do ano passado, com a melhora dos indicadores da crise em algumas regiões e depois que o pagamento do auxílio emergencial se tornou regular, o excesso de mortes chegou a cair, embora se mantivesse acima do observado em 2019. Por subsetor da economia, os maiores aumentos proporcionais estiveram na vigilância, transporte e hospitais.

O setor de transporte, que concentra o maior número absoluto de mortes, inclui entre seus trabalhadores não apenas motoristas como também quem trabalha nos depósitos e na administração das empresas do setor. Caminhoneiros autônomos não aparecem no Caged.

A construção civil aparece com destaque quantitativo, em grande parte devido ao imenso contingente de trabalhadores que emprega. No Caged, o aumento registrado no país de mortes por todas as causas foi de 36%. O ano de 2020 foi considerado aquecido no setor. Em maio, governo decretou que a construção era um serviço essencial, e por isso as atividades continuaram.

Já nos supermercados, que permaneceram abertos durante todas as fases da pandemia, o aumento das mortes foi de 21% entre um ano e outro, mesmo com as metodologias diferentes.

Nos últimos meses, diante da necessidade dos estados aplicarem medidas mais rigorosas para reduzir a atividade econômica e, consequentemente, a circulação de pessoas ainda como ferramenta de combate à propagação do vírus, os “bordões” bolsonaristas ocuparam as redes sociais para pregar que “todo emprego que sustenta uma família é essencial”.

O dilema: passar fome ou contrair o vírus

No entanto, com a renda reduzida, sem auxílio emergencial (apenas retomado, agora, em valores pífios, comparados aos de 2020) e sem a renovação do programa de preservação do emprego e renda, milhões de trabalhadores acabam ficando emparedados no dilema de passar dificuldades sem trabalhar e a possibilidade cada vez mais real de contrair se contaminar e vir a óbito.

Um dilema provocado deliberadamente pelo governo que apostou, desde o início da crise, em uma estratégia deliberada de propagação do vírus, conforme denunciou estudo publicado recentemente pelo Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário (CEPEDISA) da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da Universidade de São Paulo (USP) e a Conectas Direitos Humanos, reconhecida organização de justiça da América Latina.

Não por outro motivo, o Brasil, sob Bolsonaro, tornou-se pária no concerto das nações. Como prova disso, basta dizer que somente agora, o quarto ministro da Saúde durante a pandemia, quando marchamos, infelizmente, para contabilizar, em breve, 400 mil mortes, o governo federal resolveu fazer uma campanha institucional pelo uso de máscaras.

Nesta semana, o Brasil superou o Peru e se tornou o país da América Latina com mais mortes per capita por Covid-19.

Até quando continuaremos colecionando recordes na pandemia e permitindo que o governo insano de Bolsonaro prossiga, impune, em sua estratégia institucional – e sem limites, de propagação do vírus?

O levantamento da Lagom Data é apenas mais um entre tantos indicadores que reforçam essa convicção, tratando-se, no caso, de trabalhadores que não puderam interromper suas atividades na crise e tiveram suas vidas tragadas por ela.

Com a palavra, agora, a CPI da pandemia sob o comando dos senadores – uma luz que se acendeu em um túnel que parecia não ter fim.

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Marco Campanella é jornalista, foi editor-chefe do Jornal Hora do Povo e é membro do Comitê Central do PCdoB

 

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