Rumsfeld merece “um lugar especial no inferno”, afirmou Scott Ritter, ex-inspetor de armas da ONU no Iraque

Morreu aos 88 anos o criminoso de guerra Donald Rumsfeld, secretário do Pentágono de George W. Bush e principal arquiteto, ao lado de Dick Cheney, das invasões do Iraque e do Afeganistão, notório entusiasta da tortura em Guantánamo, Abu Graib e Bagram, e responsável direto pela morte de centenas de milhares de civis e deslocamento forçado de milhões.

O fato de que tenha morrido “cercado pela família” em um rancho de Nevada na quarta-feira (30) e não em um cárcere sob a jurisprudência de Nuremberg – de que a guerra de agressão é o crime internacional supremo – é um sintoma do quanto o direito internacional foi vilipendiado sob a ‘ordem global unilateral’ de Washington após o fim da Guerra Fria e o desaparecimento do socialismo no leste europeu.

‘Ordem’, aliás, sob a qual os Estados Unidos – em um efeito colateral das suas guerras sem fim pelo petróleo, somadas à desindustrialização e à ilimitada especulação de Wall Street – viram seu declínio acelerar até o ponto atual.

Pelos cálculos do Watson Institute da Universidade de Brown (EUA), o custo das guerras de duas décadas pelo petróleo e opressão – em que Rumsfeld tanto se empenhou – chega a quase US$ 6 trilhões e a conta vai continuar crescendo por causa dos milhões de veteranos a amparar.

A morte de Rumsfeld praticamente coincidiu com a retirada dos EUA de Bagram e a derrota para os mujahedins maltrapilhos armados de Kalashnikovs estará completada até o 11 de Setembro – nova data escolhida por Biden.

O coronel da reserva Andrew Bacevich, cujo filho foi morto no Iraque e que atualmente preside a entidade anti-guerra Quincy Institute for Responsible Statecraft, sugeriu que “o Iraque” deveria ser “o item mais importante inscrito na lápide de Rumsfeld”.

“Foi um desastre prolongado e feio”, ao invés da “vitória rápida e decisiva” que Rumsfeld prognosticara, crente na “tecnologia americana superior” e incapaz de avaliar “os elementos históricos, culturais, sociológicos e religiosos” em jogo, acrescentou.

Sobre o final do carniceiro, o jornalista Spencer Ackerman, no portal norte-americano Daily Beast, disse que “a única coisa trágica sobre a morte de Donald Rumsfeld é que não ocorreu em uma prisão iraquiana”.

“Donald Rumsfeld foi um monstro absoluto. Minhas profundas condolências às suas vítimas no Iraque e no Afeganistão, porque eles não tiveram a oportunidade de vê-lo levado à justiça por seus crimes horríveis”, afirmou Ali Abunimah, co-fundador do portal Intifada Eletrônica.

“Donald Rumsfeld foi um criminoso de guerra impiedoso que presidiu torturas sistêmicas, massacres de civis, guerras ilegais. Esse é o seu legado e como ele deve ser lembrado para sempre”, tuitou Jeremy Scahill, co-fundador do Intercept.

Para Scott Ritter, ex-inspetor de armas da ONU no Iraque e, antes, do Tratado INF EUA-URSS, Rumsfeld merece “um lugar especial no inferno”, lembrando que como duas vezes chefe do Pentágono só fez “fabricar e manipular ‘inteligência’ para iniciar guerras”. Pelo conhecimento que tem de Rumsfeld, observou que “o diabo precisará cuidar de suas costas”.

Em 2012, um tribunal internacional organizado pelo ex-primeiro-ministro Mahathir Mohamad e no qual participaram juristas ocidentais e um ex-chefe do programa humanitário da ONU no Iraque, proclamou Rumsfeld criminoso de guerra e por tortura, assim como os cúmplices W. Bush, Tony Blair e Dick Cheney, depois de ouvir testemunhos e examinar provas.

Peixe no rio

Deu tudo errado no assalto ao petróleo do Iraque, a invasão não durou só “cinco semanas”, os marines não foram recebidos “com flores” e em 2006 Rumsfeld acabou afastado, como bode expiratório do desgaste da guerra no Iraque, que levaram à perda, pelos republicanos, do controle do Congresso.

A “teoria” de que o poderio aéreo avassalador dos EUA e as “armas inteligentes” permitiriam uma ocupação fácil foi literalmente pelos ares, com a guerrilha dominando a arte de fabricar as ‘bombas improvisadas’, cujo impacto pode ser visto ainda hoje na multidão de veteranos mutilados que vagam pelas ruas da América, enquanto a resistência iraquiana praticava o postulado de ser ‘como o peixe no rio’.

Em 2018, 1,7 milhão de veteranos da ‘Guerra ao Terror’ relataram deficiências decorrentes da intervenção em terra alheia.

Situação que ficou gravada na história no célebre diálogo em que um soldado perguntou a Rumsfeld porque a blindagem para veículos ainda estava em falta, três anos depois da invasão. “Como você sabe, você vai para a guerra com o exército que possui, não com o exército que deseja ter”.

São da gestão Rumsfeld os principais fatos da normalização da tortura pelo Estado norte-americano e ele também supervisionou diretamente na implantação do campo de concentração de Guantánamo, que chamou de “operação de classe mundial”.

Também é dele um memorando de 2002 que estabelece que a guerra contra o terror “torna obsoletas as estritas limitações de Genebra no questionamento de prisioneiros inimigos”.

O que se somou ao famoso memorando da Tortura do Departamento de Justiça e a oficialização das “técnicas aprimoradas de interrogatório”. O que se seguiu em Abu Graib, Bagram e Guantánamo é amplamente conhecido.

Jameel Jaffer, diretor do Instituto Knight Primeira Emenda da Universidade de Columbia e ex- vice-diretor da ACLU, registrou que “no alto de cada obituário de Rumsfeld” deveria constar que foi ele quem deu as ordens “que resultaram no abuso e tortura de centenas de prisioneiros sob custódia dos EUA no Afeganistão, Iraque e Baía de Guantánamo. Mais de cem prisioneiros morreram durante os interrogatórios”.

O ex-inspetor de armas Scott Ritter, que atualmente escreve no portal RT, relatou ainda uma canalhice em que certamente Rumsfeld esteve metido.

Um oficial iraquiano a quem já interrogara anteriormente lhe relatou que o OSP – uma unidade especial criada por Rumsfeld antes da invasão para inventar pretextos e que, após, assumiu a caça às ‘armas de destruição em massa de Sadam’, propôs a ele a resolver um “problema do presidente [W. Bush]”, a inexistência delas.

“A equipe queria que ele os ajudasse a bolar um esquema pelo qual material nuclear seria trazido para o Iraque e escondido de uma maneira a sugerir que existia na época de Saddam”.

O oficial iraquiano “os ajudaria a fabricar documentos atestando a autenticidade desse material, construindo uma falsa cadeia de evidências que o ligaria ao regime de Saddam. Seria então ‘descoberto’ pela equipe da CIA que supervisionava a busca por armas de destruição em massa no Iraque na época.”

O oficial iraquiano contou a Ritter que se safara, apontando que, por causa do trabalho prévio dos inspetores de armas no Iraque, a trama não ia funcionar. “Vocês sabem” , disse ele, “que existem especialistas em descobrir armas de destruição em massa no Iraque, como Scott Ritter, que desmascararia tal esforço como uma fraude em pouco tempo. Você nunca sairia impune disso.”

A equipe OSP retrucou que o oficial iraquiano conhecia Ritter e como ele operava. “Você pode nos ajudar a construir uma caixa à prova de balas que nem mesmo ele conseguiria abrir.”

O oficial iraquiano riu. “Passamos quase uma década tentando construir mentiras para esconder nossas armas do Sr. Ritter”, disse ele. “Ele descobriu todas elas. Por que você acha que teríamos melhor sorte agora?” A OSP recuou.

É também do ex-inspetor de armas a denúncia de que foi Rumsfeld, quando era o secretário do Pentágono do governo-tampão de Gerald Ford, que fabricou junto com Paul Wolfowitz os números exagerados de ‘mísseis soviéticos’ que depois Reagan usaria para desencadear a corrida armamentista nuclear que colocou a humanidade à beira do abismo termonuclear.

Ao contrário de Robert McNamara, que no documentário “Fog of War” esboçou a admissão de “erros” no Vietnã depois da derrota, Rumsfeld jamais fez autocrítica, por menor que fosse. Em 2011, quando estava promovendo suas memórias ‘Conhecidos e Desconhecidos’, ele afirmou que “apesar de todas as críticas ao presidente Bush e às pessoas que trabalham ao seu redor pelas coisas que ele implementou – o Ato Patriota, Guantánamo e várias coisas, comissões militares. … o fato é que elas ainda estão lá. Por que elas ainda estão lá? Elas estão lá porque fazem sentido no século 21. São necessárias. E a nova administração não foi capaz de descobrir uma maneira melhor de fazer isso.”

Não estavam lá por que eram “necessárias”, mas por causa da crescente fascistização interna da América e exacerbação do intervencionismo externo.

Em sua entrevista ao programa Democracy Now sobre o ‘legado’ de Rumsfeld, o coronel Basevich advertiu sobre a “responsabilidade coletiva” dos norte-americanos, “cada um de nós”, na Guerra do Iraque. Nesse momento a entrevistadora, Nermeen Shaikh, depois de lembrar que Bush foi “reeleito” em 2004, apesar de tudo já descrito, destacou que Biden acaba de se tornar “o sexto presidente consecutivo dos Estados Unidos a bombardear o Iraque”.

“A decisão de Biden, que apoio totalmente, de retirar as forças militares dos EUA do Afeganistão, nossa guerra mais longa de todos os tempos, levou alguns observadores a dizer: ‘Bem, acho que as guerras eternas estão chegando ao fim. Estamos abrindo a cortina.’ Esse não é o caso”, observou Basevich.

“As inclinações militares deste governo não são terrivelmente diferentes das cinco administrações anteriores que bombardearam o Iraque”, advertiu.

“Este governo não dá sinais de recuar da tendência ao uso da força, que realmente é um dos temas centrais da política dos Estados Unidos desde o fim da Guerra Fria. Durante a Guerra Fria, havia alguma relutância em usar a força devido a preocupações de que ia começar a Guerra Mundial III. Desde o fim da Guerra Fria, começando com W. Bush, existe essa tendência promíscua de usar a força”.

Segundo o obituário da Associated Press, Rumsfeld foi um “visionário” que teve sua “reputação” maculada pelo desastre no Iraque. Pelo visto, mais obituários sobre “visionários” nos aguardam.