A expansão para o leste da Otan e exercícios militares de larga escala perto das fronteiras russas podem levar a consequências imprevisíveis e é hora da Europa mudar de rumo, afirmou o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, na Conferência de Segurança de Munique, que é uma espécie de ‘Davos da Defesa’ e se realiza desde 1963.

“Desistam de promover o fantasma da ‘ameaça russa’ ou de qualquer outra ameaça – antes que seja tarde demais – e lembrem-se do que nos une a todos”, sublinhou o chanceler russo. Em maio, serão comemorados os 75 anos da vitória aliada sobre a barbárie nazista.

Ele convocou a Europa “a se concentrar na cooperação na segurança e a ajudar a defender tratados internacionais, em vez de seguir uma política de confronto”.

Em seu discurso, Lavrov também reiterou a proposta de Moscou de que os membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU (China, França, Rússia, Reino Unido e EUA) realizem uma cúpula o quanto antes, a fim de ter “uma troca franca e honesta de opiniões sobre como preservar a paz para as gerações futuras”.

Como assinalou o presidente Vladimir Putin ao enunciar a proposta, “a cúpula dos estados que deram a principal contribuição à derrota do agressor, a criação de um sistema de ordem mundial do pós-guerra, teria um papel enorme na busca de respostas coletivas aos desafios e ameaças modernos e, é claro, demonstraria nossa fidelidade comum ao espírito de aliança, memória histórica, esses altos ideais e valores pelos quais nossos antepassados, nossos avós, nossos pais lutaram ombro a ombro ”.

A Europa é onde a “crise de confiança” nas relações internacionais é mais sentida, disse Lavrov, alertando que “a estrutura da rivalidade da Guerra Fria está sendo recriada” no continente.

Já estão a caminho da Europa mais 20 mil soldados dos EUA e milhares de equipamentos de guerra para as provocativas manobras que terão como cenário a Alemanha, Polônia, Noruega e países bálticos e que irão de abril até maio – este, o mês de comemoração da vitória sobre Hitler.

A conferência, que começou na sexta-feira e se encerrou no sábado, tem como pano de fundo o declínio dos EUA e sua ‘ordem global unipolar’, com seus desdobramentos: Trump, retirada unilateral de acordos-chave como o INF, Clima e Irã +6; ameaça ao Novo Start que limita as armas nucleares; nova tropa espacial; bombas nucleares mais ‘usáveis’; guerras sem fim; violações aberrantes da Carta da ONU; uso desvairado de sanções e leis extraterritoriais; além do desmonte da estrutura de regulação do comércio internacional, com a paralisação do tribunal da OMC.

O chefe da diplomacia russa advertiu que “o aumento das tensões, a infraestrutura militar da OTAN avançando para o leste, exercícios de alcance sem precedentes perto das fronteiras russas, o bombeamento além da medida dos orçamentos de defesa – tudo isso gera imprevisibilidade”. Ele também enfatizou a importância dos esforços destinados a “impedir uma corrida armamentista no espaço e não permitir a militarização do ciberespaço”.

O presidente francês Emmanuel Macron defendeu como inadiável a retomada, pela Europa, do “diálogo estratégico com a Rússia”, destacando o fracasso da política de sanções em vigor há seis anos.

Macron sublinhou que a opção que existe [para os europeus] é “reiniciar um diálogo estratégico, porque hoje falamos cada vez menos, os conflitos se multiplicam e não conseguimos resolvê-los”. Ele acrescentou que “ser desafiador e fraco… não é uma política, é um sistema completamente ineficiente”.

Ele ressaltou esse diálogo como “o caminho crível” possível, após fazer um balanço das sanções econômicas e políticas anti-russas, que se seguiram ao golpe de Kiev e consequentes revoltas no Donbass e plebiscito da Crimeia pela reunificação com a Rússia.

“Acumulamos conflitos congelados, sistemas de desconfiança, sanções que não mudaram absolutamente nada na Rússia. […] Nossas sanções e contra sanções nos custam caro, para nós, europeus, se não mais, do que para os russos”, admitiu.

Nos últimos meses, o líder francês vem se mostrando disposto à reconstrução das normas de segurança dentro do espaço europeu. Foi nesse sentido que na semana passada Macron propôs que a Europa não seja mero espectador na discussão das armas estratégicas nucleares, lembrando que, com o fim do Tratado de Proibição de Mísseis Nucleares Intermediários INF, é sobre a Europa que os maiores riscos vão recair.

Em seu discurso, Macron também afirmou que “nossa geografia, cultura e ideias sobre igualdade são diferentes das norte-americanas, queremos proteger a identidade da Europa”, para a qual reivindicou “liberdade de ação, independência, nossa própria estratégia”.

O jornal espanhol El País descreveu a conferência de Segurança de Munique deste ano como “o Ocidente no divã” – e imersa em um “tom sombrio”. Na abertura, o embaixador alemão Wolfang Ischinger deu a tônica das apreensões dos países europeus diante do declínio dos EUA e das truculentas tentativas de Trump de detê-lo, afirmando que “o mundo se tornou menos ocidental”.

Constatação ecoada pelo ministro das Relações Exteriores alemão, Heiko Maas, ao dizer que “o futuro do Oriente Médio já não se decide em Genebra ou em Nova Iorque. É decidido em Sochi [Rússia] ou em Astana [Casaquistão]”.

Após o que, meio que se lamentou de que os EUA estejam perdendo sua condição de “polícia global”, o que explicaria mais o atual quadro, segundo ele, que alusões ao “auge chinês”. Lamentação um tanto estranha já que a Alemanha, 75 anos após o fim da II Guerra, segue sob ocupação de tropas e bases norte-americanas.

Mas, para desagrado de Washington, o presidente alemão Frank-Walter Steinmeier afirmou que “nosso principal aliado, os Estados Unidos, rejeita, sob o governo atual, a própria ideia de uma comunidade internacional”.

“Grande de novo, mesmo que às custas dos vizinhos e parceiros” – apontou o líder alemão, numa referência óbvia ao lema de campanha do presidente Trump.

Dando uma no cravo e outra na ferradura, Steinmeier disse que “as grandes potências já não atuam como garantidoras da lei e da ordem”.

Como se Washington se autonomear “nação excepcional” e acima da Carta das Nações Unidas nos anos da ascensão neoliberal, invadir à revelia da ONU o Iraque, destruir a Líbia, manter sob ocupação o Afeganistão, torturar presos em Guantánamo e Abu Graib, além de insuflar o terror jihadista contra a Síria, tivesse algo a ver com “lei e ordem”. Com certeza não, pelo menos do ponto  de vista consagrado no Tribunal de Nuremberg.

Já o secretário de Estado, Mike Pompeo, disse que as análises [leia-se Macron] sobre a “morte cerebral da Otan” eram “grosseiramente superexageradas” e asseverou que EUA, União Europeia, Canadá e Japão estão “unidos” contra “a ameaça” da Rússia e da China apesar das “diferenças táticas”.

Tipo gasoduto Nord Stream 2, sobretaxa de 25% sobre carros alemães importados, imposto europeu sobre o Facebook, Google e Amazon, OMC paralisada, frango clorinado, 5G da Huawei, volta dos mísseis nucleares ao teatro europeu etc.

Como se não tivesse sido Trump quem rasgou um tratado atrás do outro desde que tomou posse – assinados por antecessores e respaldados pelo Conselho de Segurança da ONU –, o ex-diretor da CIA acusou Rússia e China de desejarem “impérios” e de desestabilizarem o sistema internacional “baseado em regras” [as dos EUA, claro].

Pompeo asseverou ainda que “o Ocidente está vencendo, e estamos vencendo juntos”. Quanto à acusação de que os EUA só querem saber de seus próprios interesses, garantiu que sob Trump os EUA apreciam muito os aliados – como visto na “coalizão” que teria derrotado o Estado Islâmico e no “reforço na fronteira com a Rússia”.

Talvez para não melindrar ninguém, Pompeo haja deixado de lado aqueles US$ 400 bilhões a mais em três anos que Trump disse no Discurso do Estado da União ter cobrado dos aliados como taxa de ocupação.

Também presente, a presidente da Câmara dos Deputados dos EUA, a democrata Nancy Pelosi, depois de tantos dias de tóxica divergência com Trump, fez frente em Munique com a Casa Branca para acusar a China de “exportar sua autocracia digital através da Huawei”. “Ter um 5G dominado por uma autocracia é a forma mais insidiosa de agressão”, apontou Pelosi.

Isso na mesma semana em que o Washington Post revelou que durante cinco décadas a CIA (em sociedade com o serviço secreto alemão) foi a verdadeira proprietária de uma empresa suíça de máquinas de criptografia, permitindo que a CIA espionasse direto e reto aos “aliados”.

O ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi, chamou de “mentiras” as declarações de Pompeo, em seu discurso em Munique, de que a China desejava ser um “império”.

“Todas essas acusações contra a China são mentiras, não baseadas em fatos”, disse Wang. “Mas se substituirmos o assunto da mentira de China para América, talvez essas mentiras se tornem fatos”, acrescentou.

Em entrevista à Reuters, Wang também ressaltou que são os EUA que ameaçam a China, e não vice-versa. Ele condenou a pressão cada vez mais frequente de Washington contra a China, e as acusações e difamações.

Também repeliu a brutal interferência dos EUA nos assuntos internos da China, à medida que o Congresso dos EUA revisa e aprova uma lei após a outra se intrometendo nas questões domésticas da China.

Wang acrescentou que Washington também ameaça constantemente a China enviando navios e aeronaves militares, flexionando seus músculos às portas da China e impondo sanções unilaterais e leis extraterritoriais às empresas chinesas, restringindo os direitos de desenvolvimento da China. “Está à vista de todos que lado está ameaçando o outro”, disse Wang.

Na conferência, Macron disse ainda que “não podemos ser o parceiro júnior dos Estados Unidos”, acrescentando que a Europa precisava ser capaz de enfrentar as ameaças em sua vizinhança e, às vezes, “agir independentemente” de Washington.

IMPACIÊNCIA

“Estou impaciente por soluções europeias”, reiterou. Macron questionou o alargamento da União Europeia em curso: “você acha que funcionará se houver 30, 31, 32?” (…) É uma fatia de pão cada vez maior com a mesma quantidade de manteiga. A estratégia implícita por trás disso é que pensamos na Europa não como um poder político, mas como um alargamento contínuo”, destacou.

Foi do presidente francês a observação de que “o DNA da União Europeia” não permite que seja liderada “por ninguém”. Quanto a isso, Macron disse “não querer liderar Merkel nem ser liderado por Merkel, porque isso seria contrário à ideia europeia”.

Segundo El País, a China foi o grande elefante na sala em Munique – o que apenas sublinhou a “mudança dos tempos” e que ali fora “há uma modernidade alternativa”. O que – registrou – não escapou ao chanceler austríaco conservador, Sebastian Kurz. “O que mudou é que vemos que há outros sistemas que podem ser exitosos economicamente. A China construiu um hospital em dez dias”, assinalou.