Merkel diverge de Biden e defende parceria da UE com a China
Em sua última visita à Casa Branca na condição de primeira-ministra alemã, Angela Merkel foi recebida na quinta-feira pelo presidente norte-americano Joe Biden, encontro sintetizado, pelo portal estatal Deutsche Welle, como “marcado por afagos e incertezas”, acrescentando que a “relação afetiva” entre os dois chefes de governo “não esconde desavenças que teimam em permanecer entre os dois países”.
Em setembro, como anunciou, Merkel deixará o posto que ocupa há 16 anos, período durante o qual conviveu com quatro presidentes norte-americanos. O mais difícil, com o então presidente Donald Trump, como registrado em uma célebre foto de reunião do G7, com os dois se encarando quase ao estilo das prévias do UFC.
Merkel e Biden estavam muito à vontade, com o dirigente norte-americano garantindo que iria “sentir falta de vê-la em nossas conferências”, enquanto a alemã se referiu a ele várias vezes como “querido Joe”.
Afagos e declarações perfunctórias à parte, continuou o impasse entre Berlim e Washington, cujos signos mais notórios são o gasoduto russo-alemão Nord Stream 2, que fica pronto em agosto, e o Acordo bilateral de Investimento Europa-China (CAI).
Aliás, como se sabe, foi Merkel que fez questão de fechar o acordo com Pequim antes da proclamação do resultado da vitória de Biden nas eleições.
A propósito, a visita a Biden foi precedida por uma cúpula virtual entre Merkel (mais o presidente francês Macron) com o presidente chinês Xi Jinping, exatamente para marcar o interesse europeu no CAI e relativizar a votação contrária do Parlamento Europeu, sob pressão dos países mais próximos a Washington e usando “Xinjiang” como pretexto.
Em relação ao Nord Stream 2, que fornece o gás russo direto à indústria alemã e ao coração da Europa, pelo Mar Báltico, tudo que Biden pôde fazer foi exercer o direito de esperneio.
Como consolação, conforme a DW, ambos concordaram que “à Rússia não será permitido usar o fornecimento de energia como arma”.
Informa ainda a agência de notícias alemã que os dois líderes “discutiram suas diferenças em relação ao gasoduto, embora, aparentemente, nenhum dos lados tenha mudado de posição”.
Biden insistiu na carta da russofobia, asseverando que Washington e Berlim continuarão juntos para “defender nossos aliados da Otan nas frentes do leste contra as agressões russas” – embora seja a Otan que venha se aproximando há três décadas das fronteiras russas e não o contrário.
Além do que, há muito que se sabe que a Otan existe para manter os americanos “dentro” da Europa, os russos, “fora”, e os alemães, “por baixo”.
Supostamente, Washington estaria preocupado com a “segurança energética” da Europa e, no lugar dos russos ‘malvados’ e seu gás natural mais barato e de fornecimento mais seguro, tem pressionado para vender seu gás do fracking, de logística mais frágil, mais poluente e mais caro. Tudo no “melhor interesse dos europeus”.
Conhecedora do peculiar interesse de Biden pelos assuntos ucranianos, bastante documentado nos últimos anos, Merkel assegurou que a Ucrânia é, e continuará sendo, um “país de trânsito para o gás natural e, assim como qualquer outra nação, possui o direito de soberania sobre seu território”.
Mas, como nem tudo são flores entre “queridos amigos”, Merkel reiterou seu compromisso com os protocolos de Minsk, de que a Rússia participa e vê como único caminho para a pacificação do leste ucraniano. “É por isso que nos tornamos engajados e continuamos a estar engajados no Processo de Minsk”.
Já o esforço de Biden para enfiar Berlim em sua nau capitânea contra a China teve que se bastar com declarações sobre “defesa dos princípios democráticos e direitos universais”. Aliás, bastante apreciados no golpe CIA-nazis de 2014 na
Ucrânia. O presidente norte-americano também advertiu contra países “como a China” que “trabalham para minar sociedades livres e abertas”.
Como se sabe, nada é tão “livre e aberto” quanto Wall Street, Big Oil, CIA e Pentágono. Entendem muito da defesa dos valores.
Merkel defendeu que devem existir parcerias com Pequim em temas estratégicos, como no comércio e na luta contra as mudanças climáticas, enquanto Biden apontou os chineses como “adversários”.
Em sua interpretação do que foi a conversa com Biden, Merkel disse haver o “entendimento mútuo de que eles [os chineses], em muitas áreas, são competidores nossos” e defendeu “mesmas regras” no comércio com Pequim.
“Mas, lembro que a Alemanha é uma das maiores defensoras do acordo de investimentos entre a União Europeia e Pequim, que está travado há meses por disputas políticas no Parlamento Europeu”, destacou.
A questão das vacinas contra a pandemia, em que Biden se diz favorável a algum mecanismo de quebra temporária de patentes enquanto Merkel é terminantemente contra – mas os dois concordam em vacinar primeiros os seus, os demais depois se vê -, foi tratada pela líder alemã com o comentário oco de “trabalhar junto com a Covax”.
Além de saudar a volta dos EUA ao Acordo do Clima de Paris e o suposto empenho de Biden pelo “multilateralismo” – aquele das “regras” emanadas de Washington -, Merkel lembrou de passagem do fracasso da Otan no Afeganistão, país do qual os soldados alemães estão batendo em retirada na rabeira dos marines.
A primeira-ministra alemã afirmou que Berlim e Washington forjaram uma Parceria para a Energia e Clima, com o objetivo de criar tecnologias voltadas para o futuro, como hidrogênio verde, energia renovável e veículos elétricos. Também no desenvolvimento de chips.
Ela se comprometeu, ainda, com o “projeto global de infraestrutura” sugerido em termos vagos por Biden na cúpula do G7.
Merkel aproveitou a viagem para se queixar das restrições que impedem que a maioria dos europeus possam viajar para os EUA. Biden prometeu consultar sua força-tarefa contra a covid-19 sobre a questão.
A visita de Merkel coincidiu com chuvas torrenciais em seu país, que causaram mais de 60 mortes e deixaram dezenas de desaparecidos. “Lamento muito pelos que perderam suas vidas nessa catástrofe”, disse a primeira-ministra em Washington. “Nossos corações estão com as famílias que perderam entes queridos”, se solidarizou Biden.
Berlim-Pequim
A China tirou dos Estados Unidos em 2020 o posto de principal parceiro de comércio da União Europeia, com o comércio bilateral UE-China alcançando 586 bilhões de euros no período, contra 557 bilhões de euros das transações UE-EUA.
A União Europeia já era o maior parceiro comercial da China desde 2004, mas esta é a primeira vez que o inverso também é verdadeiro.
Na Europa, o principal parceiro comercial da China é a Alemanha. De acordo com o jornal francês Le Monde, essas transações, que representam cerca de um terço do volume total negociado entre a China e a União Europeia, são realizadas em indústrias vitais para o “made in Germany”: maquinário, automotivo, engenharia elétrica e química, cujas empresas se tornaram extremamente dependentes do mercado chinês.
Quase na virada de ano, o acordo bilateral de investimento União Europeia-China (CAI) foi confirmado – “um presente de Ano Novo para o mundo”, segundo o jornal chinês Global Times. Estava em discussão há sete anos e já passara por 35 rodadas de negociação.
Na época, o jornal francês Le Monde reivindicou para Merkel boa parte do mérito pelo acordo. “Pela primeira vez, foi ela [Merkel] quem empurrou seus parceiros europeus, para que o acordo fosse concluído a tempo”. Coincidentemente, nesse mesmo mês a Alemanha driblou a pressão de Trump para que fosse vetado o 5G da Huawei.