Marx, Engels e o Partido Comunista (2ª Parte)
Marx e Engels foram homens de Partido. Sempre o valorizaram como instrumento privilegiado na luta pela conquista do socialismo e nunca se prenderam, dogmaticamente, a uma forma rigida de organização. Esta deveria servir à política transformadora e não o contrário. Tinham a consciência de que as formas poderiam variar de país para país, tendo em vista as particularidades nacionais e da luta de classes. Contudo, acreditavam que este partido socialista deveria ter como princípios norteadores: ser um partido da classe operária e, ao mesmo tempo, de vanguarda desta mesma classe; um partido de ruptura com o capitalismo; um partido internacionalista; e, por fim, ser uma organização regida por normas centralistas que fossem profundamente democráticas.
Por Augusto Buonicore*
A Associação Internacional dos Trabalhadores
Após a dramática crise e o fechamento da Liga dos Comunistas, houve um momentâneo desânimo de Marx e Engels em relação às possibilidades da constituição de um partido operário revolucionário independente. Foram desse curto período as frases mais desconcertantes expressas em cartas por esses dois personagens. Marx, por exemplo, escreveu ao poeta Freiligrath: “nunca voltarei a pertencer a nenhuma sociedade, secreta ou pública.”. Mas logo sentiriam a necessidade de “recrutar nosso partido”. A Liga dos Comunistas, para eles, havia sido apenas “um episódio na história do Partido, que em toda parte cresce espontaneamente do solo da sociedade moderna.”.
No final da década de 1850, o movimento operário da Europa e dos Estados Unidos começou a recobrar fôlego. Organizaram-se novos sindicatos e realizaram-se grandes greves por aumento de salários, redução de jornada e por direitos sociais. A própria composição da classe operária começou a se modificar: aumentou o número daqueles que trabalhavam em grandes indústrias.
Fruto desse processo, em 28 de setembro de 1864, formou-se a Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT). Escreveu Johnstone: “A formação da 1ª Internacional em 1864 deu a Marx (e mais tarde Engels) a oportunidade de romper com seu relativo isolamento e integrar-se ao movimento operário da Europa Ocidental, que então renascia numa escala muito mais ampla que seu predecessor da década de 1840.”
Como ocorreu em 1847, Marx e Engels foram chamados a ajudar na elaboração do programa e dos estatutos da nova organização operária internacional. A tarefa seria muito mais difícil, pois desta participavam os trade-unionistas (sindicalistas) britânicos, os proudhonianos franceses, os lassalianos alemães, os bakuninistas (anarquistas) e outras correntes não-marxistas. Ainda podiam a ela se filiar sindicatos, cooperativas de consumo e produção, associações políticas (secretas ou públicas) e personalidades avulsas. Portanto, ao contrário da Liga dos Comunistas, seria difícil pensá-la como um partido unificado, política e ideologicamente.
Marx elaborou os documentos fundacionais, como o Preâmbulo aos estatutos e a Mensagem Inaugural. Ele teve que ter grande habilidade para contentar a todas as correntes participantes, sem cair no ecletismo ou retroceder significativamente sobre o terreno teórico conquistado com o Manifesto do Partido Comunista, de 1848. Nestes textos, estava presente uma ideia-chave: “conquistar o poder político tornou-se o grande dever das classes operárias.”. E no Preâmbulo estamparia a famosa frase: “A emancipação da classe operária tem que ser conquistada pela própria classe operária.”.
Os estatutos, seguindo o modelo da Liga, previam congressos anuais como instâncias máximas de deliberação que deveriam eleger um Conselho Central. Criou-se também um pequeno órgão executivo chamado Comitê Dirigente, com cerca de dez pessoas. Marx, mesmo impossibilitado de estar no Congresso, foi indicado para esse comitê por ser secretário da seção alemã. Como afirmou Lênin, a partir de então ele seria a alma da Internacional. Muitas das reuniões da direção central eram realizadas em sua casa. A história da Liga e da I Internacional comprova quão falsas são as teses que afirmam que Marx jamais se envolveu em trabalhos de direção concreta de uma organização partidária.
Na Conferência de Londres (1865) Marx e Engels derrotaram os proudhonianos franceses. Estes queriam acabar com o princípio da representação, defendendo que todos os operários presentes aos congressos deveriam votar e que a Internacional não tratasse da luta de libertação travada pelos poloneses, pois era um assunto estritamente político e nada tinha a ver com um congresso estritamente operário. Para contribuir com o debate, Engels escreveu uma série de artigos intitulados O que tem a classe operária a ver com a Polônia? O internacionalismo proletário deveria ser um dos princípios irrevogáveis do programa comunista.
A grande batalha dentro da Internacional ainda estaria por vir. Em 1868 o anarquista russo Bakunin fundou a Aliança Internacional da Democracia Socialista e solicitou o seu ingresso na AIT. Marx e Engels propuseram que a direção não aceitasse tal proposta por tratar-se de outra organização internacional, com outros princípios políticos e organizativos. Bakunin manobrou, dissolveu formalmente a Aliança e solicitou às suas seções regionais que se filiassem à AIT. Na prática, a Aliança bakuninista passou a funcionar clandestinamente dentro da Internacional comprometendo a sua unidade política e da ação.
Sentindo-se mais à vontade e ganhando a confiança da maioria dos membros da AIT, Marx e Engels deram novos passos à frente. Na Conferência de Londres (1871) aprovaram uma resolução “sobre a atividade política da classe operária”, na qual se afirmava: “contra o poder coletivo das classes proprietárias, o proletariado só pode atuar como classe constituindo-se em partido político distinto, oposto a todos os antigos partidos formados pelas classes proprietárias” e que “esta aglutinação do proletariado em partido político é indispensável para assegurar o triunfo da revolução social e de seu objetivo supremo: a abolição das classes.” Engels, resumindo a resolução, escreveu: “ela meramente demanda a formação, em todos os países, um partido independente da classe operária, oposto a todos os partidos da classe média.”
As organizações regionais, sob direção bakuninista, se recusaram a aceitar as decisões desta conferência. Em 1872, o Conselho Geral denunciou as manobras anarquistas contra a Internacional. Marx, Engels e Paul Lafargue escreveram o folheto As pretensas divergências na Internacional e se prepararam para o combate que se daria no próximo congresso da AIT, em Haya. Pela primeira vez os dois amigos participariam juntos de um evento como esse. Marx escreveria: “neste congresso tratar-se-á da vida ou da morte da Internacional.”
Este seria o encontro internacional mais representativo do movimento operário socialista até então. Ali estavam presentes setenta e cinco delegados, representando quinze países. Em Haya, como esperado, os anarquistas pediram a dissolução do Conselho Geral e de toda autoridade no interior da Internacional. Mas o congresso ratificou todas as decisões de Londres. A resolução final destacou: “A constituição da classe operária em partido político é indispensável para assegurar o trunfo da revolução social e do seu fim supremo: a abolição das classes (…). A conquista do poder político torna-se o grande dever do proletariado.”. Diante dos sucessivos atos divisionistas promovidos pelos anarquistas, fartamente documentados, decidiu-se pela expulsão de Bakunin e de seus camaradas.
O massacre da heroica experiência da Comuna de Paris (1871) representou um duro golpe contra a Associação Internacional dos Trabalhadores, apesar de ela ter tido um papel relativamente pequeno na sua eclosão e direção. São dela, entretanto, os principais documentos analisando aquele episódio. Escritos por Marx, eles foram organizados e publicados sob o título de Guerra Civil na França – fato que aumentou ainda mais o ódio dos conservadores. Como ocorreu após as derrotas das revoluções de 1848, o mundo entrou numa fase marcada pelo avanço das forças reacionárias e pela repressão aos movimentos operário e socialista. Os nomes da Comuna e da Internacional foram satanizados na imprensa e no parlamento.
Visando a proteger a Internacional da contrarrevolução que avançava e das influências blanquistas (anarquistas) que cresciam, Marx e Engels propuseram a transferência da sede da organização para Nova Iorque. Na Conferência de Filadélfia (1876) decidiu-se pela sua dissolução. A conjuntura era bastante desfavorável à existência de uma organização socialista internacional daquele tipo.
Em setembro de 1873, Marx escreveu: “Segundo minha visão das condições europeias, é inteiramente útil fazer agora passar a organização formal da Internacional para um segundo plano.”. Dois anos depois repetiria a mesma ideia: “A atividade internacional da classe operária não depende de maneira alguma da existência da Associação Internacional dos Trabalhadores. Esta foi apenas a primeira tentativa de criar um órgão central para aquela atividade; uma tentativa que, pelo impulso que deu, teve consequências duradouras, mas que, na sua primeira forma histórica, não era prolongável mais tempo após a queda da Comuna de Paris.”
Marx e Engels chegaram à conclusão de que a existência da Internacional poderia se constituir num obstáculo à formação de poderosos partidos operários nos marcos dos principais países capitalistas. Isso contradiz uma tese muito difundida que afirma ser a Internacional uma forma de organização necessária em toda e qualquer conjuntura, sendo quase uma questão de princípio para os marxistas. Isso não é verdadeiro. Em algumas fases do movimento socialista, de instrumento impulsionador da luta e da organização proletária ela pode se transformar num entrave. Princípio irremovível para os marxistas revolucionários é o internacionalismo proletário e não as internacionais.
O Partido Socialdemocrata Alemão
Durante os primeiros anos de funcionamento da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), a influência de Marx era muito pequena em sua terra natal. Por isso, ele se dizia um “general sem exército”. A Associação Geral dos Trabalhadores da Alemanha, fundada em 1863, era fortemente influenciada pelas ideias de Ferdinand Lassale. Este apregoava uma aliança com os junkers (aristocracia rural prussiana) no poder contra a oposição liberal-burguesa, em troca de alguns benefícios aos operários. Uma tática oposta à defendida por Marx e Engels.
Em 1869, um grupo de socialistas de esquerda rompeu com a associação lassaliana e realizou um congresso em Eisenach no qual se decidiu pela criação do Partido Operário Socialdemocrata. Este foi o primeiro partido proletário, sob inspiração do marxismo, em âmbito nacional. Entre os seus fundadores estavam Wilhelm Liebknecht e Augusto Bebel, recém-eleitos para o parlamento imperial.
A nova organização, quando nasceu, possuía cerca de 10 mil membros. Não podendo legalmente se filiar à AIT, se disse “solidária” com suas aspirações. Desde então, a I Internacional passou a ter uma base sólida em território alemão. Bons auspícios se anunciavam para os socialistas europeus, porém a guerra franco-prussiana (1870) e depois a derrota da Comuna de Paris (1871) iriam fazer estancar e retroceder esses avanços.
Neste período, merece destaque especial a atuação dos dois únicos deputados marxistas do parlamento alemão. Eles, primeiramente, denunciaram a agressão militar perpetrada por Napoleão III contra a Alemanha e, quando o conflito mudou de curso e transformou-se numa guerra de conquista prussiana, eles não temeram acusar os objetivos de rapina de seu próprio governo e defender uma paz sem anexações com a França. Por seu ato corajoso, Liebknecht e Bebel foram presos e acusados de alta-traição. Marx e Engels escreveram uma carta na qual diziam: “Nós todos ficamos muito satisfeitos com a manifestação corajosa dos dois no Parlamento Imperial, em circunstâncias em que, de fato, não era fácil mostrar franca e determinantemente as nossas opiniões.”. Nascia, assim, um novo tipo de parlamentar, que colocava os interesses do proletariado mundial acima dos interesses de sua pátria capitalista e com aspirações imperialistas.
No Congresso de Gotha (1875), o Partido Operário Socialdemocrata (marxista) se unificou com a Associação Geral Operária (lassaliana), fundando um único partido socialista: o Partido Socialdemocrata Alemão (PSDA). Embora a unificação tenha sido um acontecimento de grande importância para a classe operária, o programa nascido com a fusão não agradou a Marx e Engels. O documento, segundo eles, fazia demasiada concessão às concepções do velho Lassale, morto em 1864.
Contra esse texto programático, considerado eclético, Marx escreveu Crítica ao Programa de Gotha, que não foi divulgada na época. Duas coisas o descontentaram: a ausência no programa da exigência da proclamação de uma República Democrática e a utilização do termo impreciso “Estado Livre” – para definir o Estado no socialismo. Segundo os marxistas, o Estado era essencialmente uma máquina de dominação de uma classe sobre a outra. O próprio Estado socialista não estaria a serviço da “liberdade em geral”, ele seria um instrumento nas mãos do proletariado revolucionário em sua luta contra a burguesia agora apeada do poder.
Devido a essas diferenças conceituais, Marx e Engels chegaram mesmo a considerar que a fusão não tinha valido o preço. A vida demonstraria que, neste caso, eles estavam errados. Os resultados da unificação foram mais positivos do que negativos. Em pouco tempo, por serem mais consequentes, as ideias marxistas triunfaram no interior do PSDA. Em 1877, o Partido conseguiu cerca de 500 mil votos – quase 10% do eleitorado – e elegeu 12 deputados. Isso representava 36% de votos a mais do que haviam recebido os dois partidos socialistas somados na eleição anterior. O número de seus militantes chegava a 32 mil. A maioria deles era formada de operários fabris.
Em 1878, diante do assustador crescimento eleitoral do Partido Socialdemocrata, e aproveitando-se de dois atentados ocorridos contra o imperador, o primeiro-ministro Otto Von Bismarck editou as leis antissocialistas. O Partido, recém-organizado, passou a viver numa situação de semiclandestinidade. Suas sedes e jornais foram fechados. Vários dirigentes acabaram sendo presos e exilados.
Surpreendentemente, mesmo sob as leis discricionárias, o PSDA continuou crescendo. Em 1884 obteve 550 mil votos e, pela primeira vez, o número de parlamentares permitiu aos socialistas apresentarem projetos de lei no parlamento. Três anos depois, os socialistas alcançaram 774 mil votos.
Surge um fenômeno novo e negativo. A fração parlamentar, por sua expressão política e pelos meios materiais que possuía, acabou gradualmente assumindo um maior poder na definição dos rumos da política partidária. Esta passaria a ser uma das características marcantes da socialdemocracia europeia.
Um grande salto eleitoral aconteceria em 1890. O Partido conseguiu quase 1,5 milhões de votos, elegendo 35 deputados. Como resultado desta vitória estupenda, caiu o poderoso Bismarck e, com ele, todas as leis antissocialistas. Em 1893 os socialistas obtiveram 1,8 milhões de votos (mais de 25% do eleitorado) e elegeram 44 deputados. As leis autoritárias mostraram-se impotentes para conter o avanço da esquerda alemã. Os agrários e a grande burguesia precisavam agora encontrar outros meios para barrar a ameaça vermelha.
Diante de uma situação tão incomum, escreveu Engels na sua famosa Introdução ao livro de Marx, As Lutas de Classes na França: “A ironia da história universal põe tudo de cabeça para baixo. Nós, os ‘revolucionários’, os ‘subversivos’, prosperamos muito melhor com os meios legais do que com os ilegais e a subversão. Os ‘partidos da ordem’, como eles se intitulam, afundam-se com a legalidade que eles próprios criaram. Exclamam desesperados com Odilon Barrot: a legalidade nos mata, enquanto nós, com essa legalidade, revigoramos os nossos músculos e ganhamos cores nas faces e parecemos ter vida eterna. E se nós não formos loucos a ponto de lhes fazermos o favor de nos deixarmos arrastar para a luta de rua, não lhes restará outra saída senão serem eles próprios a romper com esta legalidade tão fatal para eles.”. Neste caso a violência seria defensiva, uma resposta operária e socialista à violação da legalidade por parte da burguesia.
Fruto dessas estrondosas vitórias eleitorais nasceu a ilusão que nas próximas eleições o PSDA conseguiria a maioria dos votos e com isso poderia iniciar a transição socialista, sem maiores traumas. O próprio Engels, nesta mesma Introdução, escreveu otimista: “O seu crescimento (do PSDA) dá-se tão espontaneamente, tão constantemente, tão irresistivelmente e, ao mesmo tempo, tão tranquilamente como um processo da natureza. Todas as intervenções do governo provaram nada conseguir contra ela. Já podemos contar com 2 ¼ milhões de eleitores. Se isso continuar assim conquistaremos até o fim do século a maior parte das camadas médias da sociedade (…) e nos transformaremos na força decisiva do país perante a qual todas as outras, quer queiram ou não, terão que se inclinar.”. As coisas, no entanto, seriam muito mais complicadas do que pensavam os socialistas alemães naquele momento.
O Congresso de Erfurt (1891) aprovou um novo programa partidário. No processo de elaboração deste documento, Engels escreveu o artigo intitulado Para a crítica do projeto de programa socialdemocrata. A grande parte de suas propostas foi incorporada ao texto final. O Partido, finalmente, passava a ter um programa efetivamente marxista. Assim, o PSDA acabou se constituindo num modelo que seria seguido por uma grande parte das organizações políticas socialistas que foram sendo criadas na Europa e na América. Surgiram partidos deste tipo na França, Áustria, Espanha, Itália, Inglaterra, Rússia e nos Estados Unidos. Estes nasciam sob o signo da teoria mais avançada produzida até então: o marxismo.
Alguns estudiosos, como Umberto Cerroni, chegaram mesmo a afirmar que o PSDA não foi apenas o primeiro partido socialista (marxista) de base nacional, mas o primeiro partido político moderno. Segundo eles, a burguesia, acossada pelo avanço políticos dos partidos operários, começou a copiar alguns aspectos de sua organização, fundando os seus próprios partidos eleitorais e de massas.
Engels e a II Internacional
Desde o início da década de 1880 foi surgindo a necessidade de reunir estes novos partidos socialistas e agrupá-los numa organização de caráter internacional. Marx e Engels resistiram muito à ideia de reconstruir uma nova Internacional nos moldes das antigas. Observou Annie Kriegel: “Entre 1876 e 1888, congressos e conferências internacionais se sucedem (1881 em Coire, Suíça, 1883 em Paris etc.). Os socialistas da Bélgica e Suíça eram os que animavam estas iniciativas com o objetivo de reconstruir a AIT. Porém seus esforços resultaram inúteis pela oposição da socialdemocracia alemã, especialmente de Marx e Engels, para os quais o problema não era voltar a um estado de coisas considerado superado, mas criar partidos poderosos e coerentes nos três países decisivos da Europa: Inglaterra, Alemanha e França.”.
Depois de vários contatos e reuniões, os socialistas franceses resolveram convocar para o ano de 1889 um novo congresso internacional. Este deveria se realizar, por proposta de Engels, no dia 14 de julho – quando se comemoraria o centenário da grande revolução francesa.
O congresso contou com a participação de 300 delegados, representando 23 países. Engels resistira até o último momento à “nostalgia de se reconstituir a Internacional de uma ou outra forma.”. Não foi por acaso que ali não se proclamou oficialmente a formação de nenhuma organização socialista internacional. Apenas no congresso de Bruxelas (1891) isso seria feito.
Os socialistas alemães relutaram muito em dar à Internacional uma estrutura muito centralizada. Como afirmou Kriegel, a II Internacional era uma “federação de partidos ou grupos nacionais autônomos, que assegurava as relações internacionais entre os movimentos dos diversos países na forma de congressos internacionais (…). Porém, os congressos internacionais evitavam escrupulosamente intervir nos assuntos internos das seções nacionais que conservavam sua competência exclusiva em matéria de tática.”. As resoluções congressuais tinham apenas um caráter indicativo. Somente em 1900 foi constituído o Bureau Socialista Internacional – espécie de direção central – composto por dois delegados de cada país membro, com sede em Bruxelas.
Engels e seus camaradas consideraram, num primeiro momento, inconveniente excluir as minorias anarquistas da organização. Os marxistas esperavam ainda atrair setores vacilantes para posições mais consequentes, isolando os anarquistas. Como ocorreu na I Internacional, a tática era continuar aprovando resoluções que exigissem dos seus aderentes uma posição cada vez mais clara diante da luta política, inclusive parlamentar.
Em Zurique (1893), por exemplo, foi aprovada uma moção que afirmava: “são admitidos no Congresso todos os sindicatos profissionais operários assim como aqueles partidos e associação socialistas que reconhecem a necessidade da organização operária e a ação política.”. Apenas três anos depois, em Londres, os anarquistas foram expulsos das fileiras da II Internacional. Engels exclamou: “Com isso a velha internacional chegou ao seu fim e começamos uma nova internacional.”.
Por outro lado, Engels estava muito preocupado com a democracia no interior dos novos partidos socialistas, considerava que esta era uma das condições para se manter a unidade de ação política. “O partido operário”, afirmou ele, “se baseia na crítica mais aguda da sociedade existente. A crítica é um elemento vital. Como pode, então, evitar ele mesmo as críticas, proibir a controvérsia no seu interior? É possível que demandemos mais liberdade de palavra somente para logo depois eliminá-la dentro de nossas próprias fileiras?”. Numa carta, se referindo ao PSDA, esclareceu: “O partido é tão grande que a absoluta liberdade interna de debate resulta numa necessidade (…). O maior partido do país não pode existir sem que todos os matizes de opinião dos que o integram se façam ouvir plenamente.”.
A II Internacional não estabeleceu o princípio do partido único do proletariado em cada país. Ela reconhecia o direito de existência de vários partidos e mesmo de várias tendências num mesmo Partido. O que não impediu que viesse advogar a necessidade política de unificação das diversas organizações nacionais num único e poderoso partido socialista, pois facilitaria a luta dos operários pelo poder político em cada país. Assim, no final do século XIX, o marxismo se consolidou como a principal força no interior do movimento operário e socialista europeu. Desde então, as grandes batalhas teóricas e políticas passariam a se dar no seu próprio interior.
Engels morreu em 1895 deixando de pé um poderoso movimento socialista internacional. Mas, logo após, a Internacional se viu mergulhada num grande debate em torno das ideias reformistas capitaneadas por Bernstein. Este privilegiava a luta parlamentar e sindical corporativa em detrimento da luta política revolucionária pelo socialismo. Para ele, seria através do voto que o trabalhador se elevaria “da condição social de proletário para àquela de cidadão.”. As reformas políticas e sociais já seria a própria realização molecular da nova sociedade socialista. Uma de suas consignas favoritas era “O movimento é tudo e o objetivo final nada.”.
A corrente de Bernstein, denominada revisionista, foi derrotada no Congresso da Socialdemocracia alemã de 1903. Uma das resoluções aprovadas ali afirmava: “O Congresso condena energicamente as tendências revisionistas que visam a mudar nossa tática vitoriosa baseada na luta de classes.”. Embora batida nas plenárias, as ideias de Bernstein continuaram influenciando a socialdemocracia até se tornarem hegemônicas nas décadas seguintes.
Conclusão
Como foi possível observar durante toda nossa exposição, Marx e Engels foram decididamente homens de Partido. Sempre o valorizaram como instrumento privilegiado na luta pela superação revolucionária do capitalismo e a conquista do socialismo. Mas nunca se prenderam, dogmaticamente, a uma única forma de organização. Esta deveria servir, em última instância, à política transformadora e não o contrário. Cada vez que uma forma de organização era superada pela vida, eles não temiam em abandoná-la e procurar outros caminhos, mais adequados.
Sumariamente, podemos ver as formas adotadas pelos partidos operários ao longo do século 19: 1º) A pequena organização internacional de quadros comunistas (A Liga dos Comunistas: 1847-1852); 2º) a ampla federação internacional de organizações operárias (A Primeira Internacional: 1864-1872); 3º) os partidos socialistas nacionais e de massas (exemplo: a Socialdemocracia Alemã – 1870 a1914); 4º) Federação de Partidos Socialistas – marxistas (II Internacional: 1889-1914). Além desses, tivemos os partidos de massas operários nãomarxistas (cartistas e trabalhistas).
Marx e Engels tinham a consciência de que as formas partidárias deveriam variar de país para país, tendo em vista o nível da luta de classes e as particularidades nacionais. Johnstone escreveu: “A Alemanha em 1860 e, em menor medida, a França em 1880 haviam alcançado a etapa em que os partidos se arraigavam na classe trabalhadora sobre a base de programas socialistas mais ou menos desenvolvidos e para Marx e Engels qualquer tentativa de fundir com outras organizações ou de ganhar mais votos em troca da adulteração ou da deterioração desse programa representava um ‘decisivo retrocesso’. Porém na Grã-Bretanha e Estados Unidos, onde os trabalhadores haviam estado politicamente ligados a partidos burgueses, qualquer movimento até um amplo partido unido e próprio dos trabalhadores, por mais retrógradas que fossem suas bases teóricas, era um avanço.”.
É claro que, para eles, todos esses movimentos deveriam convergir para a constituição de um partido socialista de novo tipo, que tivesse os seguintes princípios norteadores: ser um partido da classe operária e, ao mesmo tempo, um partido de vanguarda desta mesma classe; ser um partido para a ruptura com o capitalismo; ser um partido internacionalista; e, por fim, ser um partido regido por normas centralistas que fossem profundamente democráticas. Esses princípios seriam desenvolvidos e adaptados por Lênin à situação aberta no início do século 20 com a consolidação do imperialismo e os avanços das revoluções populares e socialistas. Isso, no entanto, veremos num dos próximos artigos.
* Este texto é um dos capítulos do livro Linhas Vermelhas: marxismo e dilemas da revolução.
** Augusto César Buonicore é historiador, presidente do Conselho Curador da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e revolução brasileira: encontros e desencontros; Meu verbo é lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas; e Linhas Vermelhas: marxismo e dilemas da revolução. Todos publicados pela Fundação Maurício Grabois e a Editora Anita Garibaldi.
Bibliografia
BOTTOMORE, Tom. Dicionário do Pensamento Marxista.Verbete Partido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
CERRONI, Umberto. Teoria do partido político. São Paulo: Ciências Humanas, 1982.
COLE, G.D.H. Historia del pensamiento socialista. Vol.II. México: Fondo de Cultura Económica, 1975.
ENGELS, F. Contribuição à história da Liga dos Comunistas. In:Obras Escolhidas. Vol.3. São Paulo: Alfa-Ômega.
______. Introdução. As lutas de classes na França. In:Obras Escolhidas. Vol. 1. São Paulo: Alfa-Ômega.
GEMKOW, Heinrich. Marx & Engels – vida e obra. São Paulo: Alfa-Ômega, 1984.
ILITCHEV, L. F. e outros. Friedrich Engels – Biografia. Lisboa/Moscou: Progresso/Avante, 1986.
JOHNSTONE, Monty. Marx y Engels y el concepto de Partido. In: CERRONI, U.; JOHNSTONE, M. e outros. Teoria marxista del Partido Político. Cuadernos de Pasado y Presente 7, Córdoba, 1971.
KRIEGEL, Annie. Las internacionales obreras. Barcelona: Martinez Roca, 1975.
MARX, K. Manifesto de lançamento da Associação Internacional dos Trabalhadores. In:Obras Escolhidas.Vol. 1. São Paulo: Alfa-Ômega.
______. Estatutos da Associação Internacional dos Trabalhadores. In:Obras Escolhidas. Vol. 1.São Paulo: Alfa-Ômega.
______. A Miséria da Filosofia. São Paulo: Global, 1985.
______. Crítica do Programa de Gotha. In:Obras Escolhidas.Vol.2. São Paulo: Alfa-Ômega.
MARX, K.; ENGELS, F. O Manifesto do Partido Comunista. In:Obras Escolhidas. Vol. 1. São Paulo: Alfa-Ômega.
______. O anarquismo. São Paulo: Acadêmica, 1987.
______. Mensagem do Comitê Central à Liga Comunista. In: Obras Escolhidas.Vol. 1. São Paulo: Alfa-Ômega.
MILIBAND, Ralph. Classe e Partido. In: MILIBAND, R. Marxismo e Política. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
ROSSANDA, Rossana. De Marx a Marx: Clase e Partido. In: ROSSANDA, R. e outros. Teoria Marxista del Partido Político. Vol.3. Buenos Aires: Cuadernos Pasado y Presente, 1973.
* Augusto César Buonicore é historiador, presidente do Conselho Curador da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e revolução brasileira: encontros e desencontros; Meu verbo é lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas; e Linhas Vermelhas: marxismo e dilemas da revolução. Todos publicados pela Fundação Maurício Grabois e a Editora Anita Garibaldi.