A alienação do trabalhador e no indivíduo, com base no processo de produção onde há o que Marx chamou de “trabalho alienado”, tem resultados contraditórios que influem no desenvolvimento histórico.

Por José Carlos Ruy*

Este processo, alienante por sua natureza, que afeta o trabalhador direto no processo de trabalho, cria dialeticamente as condições para o surgimento de seu contrário, o trabalho consciente – o trabalhador consciente. O crescimento da grande indústria contém em si próprio, em germe, ensina Marx, o potencial para o desenvolvimento da personalidade humana, apesar da forma capitalista de organização do processo industrial ser responsável pelo fato de todas estas forças exercerem uma influência unilateral que retarda o desenvolvimento pessoal.

Nesse sentido, Marx escreveu nos “Manuscritos Econômicos e Filosóficos de 1844” que, para se tornar uma ciência relevante, a psicologia terá que aprender a ler o livro da história da indústria material que congrega “os poderes essenciais de homem”, sendo uma encarnação concreta da psicologia humana (Marx: 1967; Marx: 1972).

Sob o capitalismo, apesar de baseado na aparência de liberdade, no processo de trabalho o trabalhador, como nos demais modos de produção baseados em classes antagônicas, opõe o trabalhador direto e os que mandam; no capitalismo, o trabalhador é posto sob as ordens de um proprietário que decide privadamente o que será produzido, como se dará a produção, e como será privada a apropriação do resultado do esforço coletivo. O trabalhador é levado a encarar as potências intelectuais do processo material de produção (de trabalho) como se fossem propriedade de outro, alheia a ele, e como uma força externa que se opõe a ele e o domina. Esta é a alienação do trabalho, diz Marx. Esse processo tem início na cooperação simples, na qual aquele que controla o processo de produção, aquele que manda, encarna, perante o trabalhador direto, a unidade e a vontade do trabalho social. Isto mutila o trabalhador e o transforma em um trabalhador especializado, dedicado a apenas a uma atividade produtiva. Isso se aprofunda na indústria de larga escala, onde a ciência, como um potencial produtivo do trabalho, é isolada e posta a serviço do capital (Engels: 2015). No processo de produção capitalista o trabalhador é transformado em extensão viva da máquina, e o trabalho, para ele, surge como uma espécie de tormento, escreveu Marx. É um processo em que o trabalhador existe para o processo de produção, e não o processo de produção para o trabalhador, escreveu em “O Capital”.

Depois deste breve interregno marxista, é preciso prosseguir com na apresentação da análise feita por Freud – e convém ter em mente que, em Freud, a palavra “cultura” aparece como sinônimo de “sociedade”: “Enquanto às restrições que afetam a determinadas classes da sociedade, topamos com umas constelações muito visíveis, que por outra parte nunca foram desconhecidas. Cabe esperar que estas classes relegadas invejem aos privilegiados suas prerrogativas e façam de tudo para livrar-se de seu ‘plus’ de privações. Onde isto não é possível, se consolidará certo grau permanente de descontentamento dentro dessa cultura que pode levar a perigosas rebeliões. Mas se essa cultura não pode evitar que a satisfação de certo número de seus membros tenha por premissa a opressão de outros, acaso a maioria (e é o que ocorre em todas as culturas do presente), é compreensível que os oprimidos desenvolvam uma intensa hostilidade contra essa cultura que eles possibilitam mediante seu trabalho, mas de cujos bens participam em medida sumamente escassa. Por isso não cabe esperar deles uma interiorização das proibições culturais; ao contrário: não estão dispostos a reconhecê-las, se esforçam por destruir a própria cultura e eventualmente até por cancelar suas premissas”. “Folga dizer que uma cultura que deixa insatisfeitos a um número tão grande de seus membros e os empurra para a revolta não tem perspectivas de se conservar de maneira tão duradoura nem o merece” (Freud: 1989).

É preciso prestar atenção à expressão final: “nem o merece”. Ela aponta para uma tomada de posição democrática do pai da psicanálise em relação aos privilégios da classe dominante.

Há uma contradição no pensamento de Freud e ela gera questões epistemológicas. Se, de um lado, ele viu um inconsciente inato e imutável, que coloca o indivíduo em oposição visceral à sociedade, ele admite também o condicionamento do indivíduo pelas vicissitudes de seu desenvolvimento, pessoal e social. Isto é, ele viu o ser humano também como resultado do desenvolvimento histórico e social. Rejeitou assim a redução do comportamento humano (e social) à de um animal, e menos ainda ao da formiga, num argumento que antecipa a crítica à sociobiologia que surgiria décadas mais tarde.

Freud compreende “cultura” de forma ampla, antropológica, pode-se dizer, e nela o ser humano resiste contra a opressão e a injustiça. Freud escreveu: “O esforço libertário se dirige então contra determinadas formas e exigências da cultura ou contra ela em geral. Não parece possível impulsionar a todos os seres humanos, mediante algum tipo de influxo, a transmudar sua natureza na de uma térmita [uma formiga – JCR]: defenderá sempre sua demanda de liberdade individual contra a vontade da massa” (Freud: 1989).

Ele reconhece a importância da cooperação entre os homens, que leva ao esforço coletivo da produção material e está na base da formação das sociedades. “Depois que o homem primordial descobriu que estava em sua mão – entendendo-o literalmente – melhorar sua sorte sobre a Terra mediante o trabalho, não pode ser-lhe indiferente que outro trabalhasse com ele ou contra ele. Assim o outro adquiriu o valor do colaborador, com quem era útil viver em comum” (Freud: 1989).

Estas contradições do pensamento de Freud o revelam como um tributário da ideologia burguesa que, sobrevalorizando o indivíduo (o individualismo, não a individualidade, que é coisa diferente), o vê em conflito com a sociedade e a coletividade.

Esta fórmula – a oposição entre indivíduo e sociedade – foi apresentada de maneira vulgar pela ex-primeira ministra inglesa, a conservadora e neoliberal Margareth Thatcher com um sentido ideológico rebaixado ao dizer que “não há e nunca houve essa coisa chamada sociedade; o que há e sempre haverá são indivíduos” (cit in Sevcenko: 2001).

Referências

  • Engels, Friedrich. Anti-Dühring. São Paulo, Boitempo, 2015
  • Freud, Sigmund. Moisés y laReligión Monoteísta. Buenos Aires, Amorrortu Editores, 1989
  • Freud, Sigmund. O futuro de uma ilusão. Rio de Janeiro, Imago Editora, 1974.
  • Freud, Sigmund. O mal estar na civilização. Rio de Janeiro, Imago Editora, 1974.
  • Marx, Karl. Manuscritos econômicos e filosóficos de 1844. In Fromm, Erich. Conceito Marxista do Homem. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1967.
  • Marx, Karl. Manuscritos: economia y filosofia. Madrid, Alianza Editorial, 1972.
  • Sevcenko, Nicolau. A Corrida Para o Século XXI – No loop da montanha-russa. São Paulo, Companhia das Letras, 2001

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José Carlos Ruy* é jornalista, escritor, estudioso de história e do pensamento marxista.

 

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