Manuela d'Ávila é a pré-candidata pelo PCdoB a prefeitura de Porto Alegre

“Nossa desigualdade tem raça, tem gênero. Por isso, fazer valer a voz das mulheres na próxima eleição e em toda a luta política é o único caminho para reconstruirmos o Estado, garantirmos seu olhar atento aos mais vulneráveis”, avalia Manuela D’Ávila, jornalista e pré-candidata pelo PCdoB à Prefeitura de Porto Alegre.

Ela concedeu entrevista às repórteres Fabiana Reinholz e Katia Marko do Jornal Brasil de Fato no Rio Grande do Sul. Um dos temas principais é o papel das mulheres na política. O material foi publicado nesta quarta-feira (25), e republicamos a íntegra.

Manuela cresceu em uma pequena cidade gaúcha, Pedro Osório. Através de um professor de História e das caminhadas com seu pai, que era militante, pelos assentamentos de sem terra, começou a compreender que a miséria não era natural. “Percebi que muitas das coisas que eu tinha como verdadeiras não eram e passei a estudar mais.”

Começou sua militância no movimento estudantil e há 15 anos, com 23 anos, foi eleita a mais jovem vereadora da história de Porto Alegre, sendo a mais votada. “O machismo, o preconceito eram violentos e não tínhamos um movimento de mulheres tão forte para nos acolher. Talvez eu seja uma das poucas que podem testemunhar a diferença entre hoje e 15 anos atrás. Fiquei oito anos sendo chamada de musa em Brasília. Era a ‘musa com cérebro’”, lembra.

Em 1999, filiou-se à União da Juventude Socialista (UJS). Também foi vice-presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE). Em 2001 ingressou no PCdoB, e, em 2013, foi eleita presidenta estadual do partido.

Manuela é jornalista e mestre em Políticas Públicas pela Ufrgs. Além de vereadora, foi deputada federal e deputada estadual. Em 2018, foi pré-candidata à presidência e concorreu, de fato, à vice-presidência da República, na chapa com Fernando Haddad. Atualmente, é presidente e fundadora do Instituto E Se Fosse Você?, ONG voltada para criação de conteúdo de combate à fake news e ódio nas redes.

Em 2019, lançou seu primeiro livro, “Revolução Laura”, que fala sobre como foi ter aceito o desafio de concorrer à Presidência do Brasil, chegando ao segundo turno como candidata a vice-presidente sem abrir mão da maternidade. Depois lançou o “Por que lutamos?”, um livro sobre amor e liberdade, sobre feminismo e suas muitas vertentes.

Como deputada federal, cumpriu dois mandatos, sendo líder do PCdoB na Câmara dos Deputados. Por três vezes, foi indicada pelo DIAP como uma das 100 “Cabeças” do Congresso e concorreu cinco vezes ao Prêmio Congresso em Foco, que premia os melhores parlamentares do Brasil.

É de sua autoria a Lei do Estágio e foi relatora do Vale-Cultura e do Estatuto da Juventude. Presidiu a Comissão de Direitos Humanos e foi coordenadora da bancada gaúcha. Como deputada estadual (RS), esteve à frente da Procuradoria da Mulher, onde apresentou projetos importantes em defesa do direito das mulheres, LGBTs, trabalhadores e primeira infância.

Confira a íntegra da entrevista com Manuela D’Ávila para a Série Mulheres na Política.

Brasil de Fato RS – Primeiramente, como temos feito, gostaria que tu nos falasse um pouco de ti,tua trajetória e como se deu o encontro com a política?

Manuela D’Ávila – Quando era criança vivia numa cidade pequena no interior do estado do Rio Grande do Sul, Pedro Osório, Eu não compreendia porque existia apenas uma criança de rua e por qual razão quando nós fechávamos a porta de casa, Fabio, esse menino negro em situação de rua, ficava do lado de fora e eu do lado de dentro. Nessa mesma cidade eu tive um professor chamado Waldon. Em uma aula de história, na quarta série, ele falou que o Brasil não tinha sido descoberto e, assim, naquele momento, percebi que muitas das coisas que eu tinha como verdadeiras não eram e passei a estudar mais. Eu sempre tive proximidade com a militância porque meu pai foi militante e desde muito pequena me levava aos assentamentos do MST, para acompanhá-lo em alguns trabalhos que desempenha. Depois disso, quando ingressei na Universidade em 1999, me organizei politicamente no movimento estudantil e, desde então, passei a militar de forma coletiva e organizada.

Quando falamos da participação das mulheres na política, historicamente vemos que a conquista de voto e participação delas nesse espectro foi árdua. Hoje, apesar da lei de cotas essa participação, mesmo tendo sofrido uma mudança ainda é muito pequena. Por que, na tua avaliação, não conseguimos avançar?

É preciso fazer uma reflexão multilateral pra responder por quais razões as mulheres estão fora dos espaços públicos e dos espaços de poder. Por mais que ainda tenhamos poucas parlamentares pudemos comprovar que a política de cotas associada ao financiamento traz resultados. Saltamos de 42 para 77 deputadas federais, Não é pouca coisa. Mas ainda somos poucas. Quando falo em olhar multilateral quero dizer o que podemos ver como estruturante de mudanças para além da alternativa da política de cotas associada ao financiamento. Para mim é preciso entender que em primeiríssimo lugar a jornada múltipla de trabalho das mulheres as afasta dos espaços públicos. Dos espaços políticos, dos espaços de poder. Pra mim a reinvenção de um poder político ocupado por mulheres passa pelo enfrentamento ao machismo que nos ocupa do trabalho reprodutivo e do conjunto das responsabilidades dos cuidados. Por que eu consegui ser candidata a vice-presidente com uma filha sendo amamentada? Porque divido responsabilidades. É preciso falar sobre isso.

Ainda na mesma perspectiva, o teu primeiro mandato político foi há 15 anos, como vereadora em Porto Alegre, que mudanças tu observaste de lá para cá?

Uau! Desde a perspectiva de gênero as mudanças são tremendas. Fui eleita a mais votada sendo a mais jovem vereadora da história da cidade e mulher! O machismo, preconceito eram violentos e não tínhamos um movimento de mulheres tão forte para nos acolher. Talvez eu seja uma das poucas que podem testemunhar a diferença entre hoje e 15 anos atrás. Fiquei oito anos sendo chamada de musa em Brasília. Era a “musa com cérebro”.

Quando fui reeleita, dobrei minha votação, alcançando 8% do total de votos do estado e não tinha espaço nenhum para falar sobre trabalho, sobre meu uso de redes há mais de uma década para fazer política, sobre minhas pautas. Um colunista disse que eu “estava na praça” porque era uma mulher solteira. Usaram uma foto minha com decote e a legenda “de peito aberto para enfrentar o capitalismo”. Quando reclamava disso, ouvia: “Deixa de ser chata, quem que não quer ser musa? Pare de reclamar”. Na época o sofrimento era muito solitário. Hoje o machismo segue? Claro. Mas a denúncia das mulheres é muito potente.

Como atrair as mulheres para esse campo e qual o papel dos partidos políticos nesse contexto?

O papel dos partidos é, inicialmente, fazer com que a participação das mulheres seja efetiva e não apenas de “laranjas”. O PCdoB é um bom exemplo, metade de sua bancada é de mulheres, mulheres ocupam cargos de poder.

Inicialmente, nossa legislação de cotas não obrigava os partidos a preencherem os 30%. Depois, passou a obrigar que fossem preenchidos, mas não havia punição. Mais recentemente passamos a ter, por pressão das mulheres, fiscalização e punição. Com isso, o número de candidaturas “laranjas” aumentou. É preciso cobrar do TSE mecanismos para fiscalizar e punir os partidos também nesses casos.

Também é preciso deixar claro para meninas e meninos que a política deveria ser um espaço de que ambos possam tomar parte. Além das cotas eleitorais seria importante que todos os partidos tivessem cotas nos cargos de direção.

Outra coisa muito importante é que não basta pensar em mulheres abstratamente. Se o acesso à política for aberto apenas a mulheres mais próximas do perfil de classe e racial majoritário nos espaços decisórios, continuaremos a ter injustiças e exclusões fundamentais. As demandas das mulheres negras e indígenas no Brasil hoje são as que enfrentam mais barreiras para ganhar espaço no debate público. Por quê? Porque elas estão no poder em bem menor número.

O Brasil tem 40 milhões de trabalhadores e 12 milhões de desempregados. Historicamente, a esquerda sempre soube chegar aos trabalhadores através dos sindicatos. Hoje, quando os sindicatos estão fragilizados e a mão-de-obra distante deles, de que modo seria possível se reaproximar das massas que já foram grande parte de seus eleitores?

É preciso buscar entender as profundas transformações do mundo do trabalho. Como falar com o “precariado”? É preciso colocar as pessoas comuns dentro da política. Pra mim as bandeiras precisam ser ajustadas às necessidades reais dessas pessoas reais e precisamos, urgentemnete, enquanto campo politico, compreender que a linguagem também nos afasta, a forma também nos afasta. se nossas causas são cada vez mais atuais, se sabemos que as pessoas sentem a mesma angústia que nós sentimos com o drama da crise porque nossas palavras não as tocam?

Quando se contar a história da eleição de 2018, as fake news terão um capítulo especial. O que você, como candidata, e as esquerdas, aprenderam com o que aconteceu?

Terão um capítulo especial dedicado ao ódio que eles sentem das mulheres, né? Porque as fake news são majoritamente construídas em cima da misoginia.

Bem, acho que as esquerdas ainda não aprenderam muito e eu aprendi na marra e na dor antes de 2018. Se você pegar meus discursos na Assembleia Legislativa em 2015, 2016 já ouvirá eu falando sobre como o ódio das redes saia para as ruas, sobre como Laura apanhou aos 40 dias em função da invenção do enxoval em Miami, sobre o suicídio do Plínio, coordenador de campanha do Melo justamente em função da perseguição virtual. Ali que comecei a fazer os vídeos comentando os comentários das redes.

O problema é que a turma de nosso campo achava (e ainda acha um pouco) que nós, eu, Jean, Maria do Rosário, que nós escolhemos ser vítimas dessas milícias em função dos temas que tratamos. E agia, nosso campo, buscando nos esconder. Ao invés de enfrentar. Quando tentava enfrentar não entendia tecnicamente de redes, porque não as usava. Não compreende que redes não são espaço de assessoria de imprensa, de soltar press release. Não entende que as redes são uma assembleia popular permanente. Temos um presidente que busca fazer das fake news uma espécie de política de Estado.

Então, espero que a gente tenha claro que o tema das fake news não é algo periférico. Elas estruturam as opiniões sobre todos os temas na sociedade. Durante as eleições, apenas 70 postagens que me envolviam foram compartilhadas por 300 mil pessoas, alcançando 13 milhões de brasileiros, em apenas dois dias, para se ter uma ideia.

Ainda assim, qualquer iniciativa de combate à desinformação não pode representar um retrocesso em relação ao Marco Civil da Internet, que se baseia nos princípios de liberdade e neutralidade da rede.

Outra questão é que as polícias e o Poder Judiciário não estão aptos a responder às demandas de combate a crimes virtuais. Não temos capacidade instalada para lidar com a demanda e a impunidade é crucial para a proliferação de mentiras. As pessoas acham que não existe lei porque o processo investigativo praticamente inexiste nesses casos.

Não aconteceu nada que impeça as fake news de existirem nas eleições municipais, por exemplo, inclusive com amplitude maior que nas eleições presidenciais. O pânico gerado por elas nos municípios é muito grande, as pessoas se conhecem e o compartilhamento por WhatsApp tende a ser maior e mais crível. Nós não mudamos nenhuma das legislações periféricas, seguimos tendo tarifas que prendem usuários só no WhatsApp e no Facebook. Até proliferaram as agências de checagem, mas as pessoas não conseguem, por causa do desemprego e do plano de dados delas, sair do WhatsApp e ir conferir a veracidade das notícias. Então, não aconteceu nenhuma mudança significativa. Não é falta de maturidade individual. É uma construção muito bem feita. Eu decidi dedicar a minha vida à isso, porque talvez eu seja uma das pessoas que mais sofre com fake news. Um dos maiores alvos da canalhice, da sem-vergonhice dessa milícia virtual.

Nas últimas eleições além das fake news, vimos escancarado o machismo e a misoginia, tu fostes um alvo constante, seja pelos grupos de WhatsApp seja pela imprensa, como o episódio no Roda Viva em que fostes constantemente interrompida, e mais recentemente vimos que fostes novamente atacada com montagens mal feitas. A que atribui a origem desse comportamento?

A resposta está na tua pergunta: atribuo à cultura arraigada do machismo e a misoginia. Em nossa sociedade, é mais fácil encontrar plateia naquilo que desconstrói a uma mulher, né? Mas eu sempre gosto de ver o lado positivo das coisas. O episódio do Roda Viva já tinha acontecido mil vezes comigo: os jornalistas sempre me interromperam, sempre tentaram me ensinar sobre aquilo que eu faço. Foi a primeira vez que as pessoas perceberam que o problema não estava em mim, mas neles.

Que papel as mulheres poderão ter nas futuras eleições?

Só acredito em uma realidade melhor se a gente enfrentar a desigualdade. Nossa desigualdade tem raça, tem gênero. Por isso, fazer valer a voz das mulheres na próxima eleição e em toda a luta política é o único caminho para reconstruirmos o Estado, garantirmos seu olhar atento aos mais vulneráveis. Não haverá mudança sem as mulheres na linha de frente.

Como o coronavírus irá impactar as eleições municipais desse ano? Como tu analisas um possível adiamento das eleições por conta da pandemia?

Não acho que ninguém está com o pensamento na eleição porque estamos vivendo um drama bastante grande e todos tentamos focar nas questões ligadas à saúde e salvar vidas. Eu acredito que pode haver um adiamento: ser em novembro, começo de dezembro. Mas sou contra a qualquer ampliação no mandato dos atuais, porque eles foram eleitos por quatro anos. A democracia é um bem muito valioso, foi duro conquistar ela no Brasil, e o pós-pandemia deve ter mais democracia, não menos. Não podemos correr o risco, como da ditadura, de demorar 25 anos para votar.

Como é o fazer político durante esses tempos de pandemia e isolamento social?

Sempre usei minhas redes como forma de prestar contas de meus mandatos, como forma de me comunicar com as pessoas. Isso não é novo para mim. Mas tenho buscado novas e permanentes formas: arrecadamos 34 toneladas de alimentos virtualmente, nos conectamos com as entidades que recebem, fiz entrevistas com pessoas que creio interessantes para nos ajudar na reflexão sobre o presente, organizamos um seminário sobre a saúde e a assistência na cidade, dois cursos de formação, com mais de 13 mil inscritos em cada… Enfim, conjugando a luta política com a realidade do tempo presente.

Interessante observar que nesse contexto aparece nitidamente dois tipos de práticas políticas. Uma que se aproveita do momento para semear o ódio e a desinformação, despreocupada com a consequência trágica disso. E a outra, preocupada em estender a mão pras pessoas, em ajudar seja por atos, seja por palavras que reconfortam, em proteger vidas. É isso que estamos fazendo.

Como pré-candidata do PCdoB à capital gaúcha, que cidade temos hoje e que cidade pretendes construir?

Podíamos fazer uma entrevista inteira somente sobre isso. Quando passar a Pandemia, não queremos voltar à cidade que existia imediatamente antes dela. Vamos propor um projeto que resgate uma cidade que seja exemplo pro Brasil, em várias dimensões.

A palavra que sintetiza a Porto Alegre nos últimos três anos é abandono. Uma cidade com serviços públicos destruídos, com bairros inteiros esquecidos. Uma legião de trabalhadoras e trabalhadores sem proteção social alguma. Temos uma cidade, onde as mães têm dificuldades para conseguir vagas em creches, para ter acesso à Saúde de qualidade.

A Porto Alegre que queremos é a do cuidado, da solidariedade. Todos cuidam de todos, a Prefeitura olha para todos, e todos participam das decisões da Prefeitura. Eu quero fazer de Porto Alegre a capital nacional do meio ambiente, da democracia e da igualdade. Uma cidade que transpire inovação e inclusão, colocando as pessoas, todas elas, criancas, LGBTS, jovens negros, mulheres no centro do projeto de cidade. Para mim, pensar as cidades pós-covid-19 é pensar a construção de um Estado de proteção social. Represento um projeto que procura renovar a importância econômica da cidade, e com isto combater as desigualdades. Quero uma cidade em que a gente viva em paz: sem medo da fome, da violência, do abandono da Prefeitura.

Como tem sido o teu isolamento social?

Difícil, como para muitos. Mas sem vulnerabilidade econômica fica bem menos difícil que para a maioria da população do país. Estou com minha família em casa, eu, Duca, Gui e Laura e nossa gatinha Lala. Nos dividimos nas tarefas domésticas, como sempre. Porém temos muito mais volume delas porque não saímos de casa há mais de 50 dias. Ou seja, não é comum estarmos os quatro em casa como agora, eu e Duca viajamos muito, as crianças têm escola. Além disso, Laura é pequena, então me demanda muita interação. Gui faz aulas e aprendeu a tocar baixo. Não tenho conseguido ler tanto quanto sempre leio porque a ansiedade está grande em função do drama que nosso país vive. Mas minhas plantas estão adorando, felizes da vida com tanto papo que bato com elas.

Que democracia temos hoje, e usando o título do teu último livro, por que lutamos?

Nós estamos diante de um governo que é uma ameaça à vida e à democracia. E por isso nós temos que ter responsabilidade e nos aliarmos com todos aqueles que defendem a democracia e são antifascistas. Não dá para ter do nosso lado na defesa da democracia só quem sempre soube que era golpe, por exemplo. As pessoas vão tomando consciência ao longo do processo. Se a pessoa não sabia que era golpe, mas agora se deu conta que tem a democracia ameaçada, meu amigo, seja bem-vindo. Não é fácil, mas é necessário construir pontes.

Por que lutamos? Lutamos por liberdade, por pão e comida para todas e todos, pelo belo e pelo justo. Lutamos para que todos tenham trabalho e que ninguém seja explorado. Lutamos para que a humanidade repense sua relação com o planeta e se comprometa com outros caminhos. Lutamos pela dignidade de todas as pessoas.