Manifestantes de Portland recebem a solidariedade de costa dos EUA

A solidariedade aos manifestantes de Portland e ao Black Lives Matter (Vidas de Negros Importam) se alastrou de costa a costa dos EUA, como visto no fim de semana, em Nova York, Los Angeles, Seattle, Oakland, Louisville, Omaha, Richmond, Albuquerque e Austin, aos brados de “Sem Justiça, Sem Paz” e “Feds go home”.
Assim, está saindo pela culatra a aposta do governo Trump de desencadear uma provocação contra as grandes cidades onde é maior o repúdio a ele – da qual sua investida, com forças federais, em Portland, no Oregon, é a principal cartada – na tentativa de reverter o desastre nas pesquisas de voto, a 100 dias da eleição de novembro.
Em Portland, não há sinal que a população irá se curvar a Trump. Ao contrário, os jovens manifestantes vêm recebendo novos apoios. O “Muro de Mães”, todas de amarelo, age como um cordão de isolamento para proteger os garotos da sanha da tropa secreta de Trump.
Sinal dos tempos. Aquele brado de “go home” (volte para casa), muito conhecido de tantos no mundo inteiro sob a opressão norte-americana, voltando para ecoar em casa.
Além do indisfarçável tom fascista, a repressão a manifestantes, à revelia de prefeitos e governadores, cometida por Trump e sua corriola, é também uma confissão do pavor que se espalha pela Casa Branca.
Biden, o candidato da oposição, não só vence nacionalmente, como também nos estados campos de batalha, que definem o resultado do colégio eleitoral, de acordo com pesquisas. Até mesmo da Fox News.
Na Flórida, o típico Estado campo de batalha e que iria abrigar a convenção republicana, Biden tem 14 pontos percentuais de vantagem; eram 4 pontos em abril.
Com exceção dos trumpistas mais ensandecidos, dificilmente há quem não perceba que são os Estados Unidos o país que pior deu conta da pandemia, e por isso mesmo é o recordista mundial em contágios e mortes. Um triste show de decadência perante o mundo.
O oposto da “grandeza de novo” de que tanto Trump se gabou. Para complicar, esta semana acaba o reforço temporário do seguro-desemprego e 30 milhões de desempregados vão ficar sem o depósito semanal de US$ 600 e mais perto da fome. O Congresso ainda não chegou a uma alternativa. Com o fim da moratória dos aluguéis, se não houver a prorrogação, outros 20 milhões podem ser despejados.
Os únicos que vão bem, obrigado, são os bilionários e os bancos, graças aos trilhões, cortesia do Federal Reserve.
Nesse quadro, e com a votação nos subúrbios brancos abastados minguando a cada dia, a esperança das hostes trumpistas é plasmar Trump como o “presidente da lei e ordem” para ver se traz de volta o eleitor a tempo.
Milhões de dólares foram gastos pelos republicanos em anúncios na última semana, voltados para assustar os incautos e reanimar xenófobos e racistas, proclamando Trump o único capaz de barrar que “a esquerda radical” se adone das “ruas da América” e “destrua o país” sob um governo Biden.
Na segunda-feira, os prefeitos de Portland, Seattle, Chicago, Kansas City, Albuquerque e Washington dirigiram uma carta conjunta aos líderes do Congresso pedindo a adoção de medidas que barrem o uso de força federal em cidades cujos prefeitos são contrários.
O prefeito de Portland, Ted Wheeler, quer uma reunião com o secretário interino da Segurança Interna, Chad Wolf, para imediata suspensão das operações dessas forças federais indesejadas e sua retirada da cidade.
O pretexto de Trump é a suposta “ameaça a prédios federais” – mas ficou extensamente documentado como a milícia dele capturou jovens muito longe de tais prédios, usando carros sem placa e agentes sem identificação.
Como denunciou a principal entidade norte-americana de defesa dos direitos democráticos, a ACLU, não há outro nome para um ato desses senão “sequestro”.
“Não se pode ter polícia secreta sequestrando gente em veículos sem placa. Não consigo acreditar que tenho que dizer isso ao presidente dos Estados Unidos”, reagiu a governadora democrata de Michigan, Kate Brown, Estado em que fica Detroit, alvo já declarado por Trump.
Sob o pretexto de “combate ao crime e à anarquia”, Trump ameaçou despachar seus esbirros para a nova modalidade de boca de urna em “Nova York, Chicago, Filadélfia, Detroit, Baltimore e Oakland”.
Pelo Twitter, Trump reiterou que Portland “está assolada por anarquistas violentos que atacam oficiais federais e edifícios federais”. “Esta não é uma multidão pacífica. Estes são delitos federais”.
Talvez Trump tenha saudade da Portland dos anos 1920, quando era um reduto da Ku Klux Klan e onde as leis locais proibiam a entrada de negros sob pena de serem açoitados, o que se repetiria a cada seis meses, caso insistissem em ficar. Agora, uma das mais brancas cidades dos EUA, Portland está na linha de frente contra o racismo e o arbítrio.
O senador do Oregon, Ron Wyden, respondeu com ironia à ameaça: gostaria que Trump “estivesse atacando o coronavírus da maneira como está atacando as liberdades civis”.
Em audiência no Congresso, Wyden alertou para uma questão ainda mais delicada: o precedente que está sendo estabelecido em Portland. “Se a linha não estiver traçada na areia agora, os EUA podem vir a encarar lei marcial no meio de uma eleição presidencial”.
Sobre isso, Trump não fez o menor esforço para debelar tal incômodo. “Ia ver”, respondeu em uma entrevista sobre se respeitaria o resultado das eleições de novembro, e repetiu o mantra de que “voto por correio é fraude”. Modalidade de voto que não só é legal, como existe há muito tempo nos EUA.
O primeiro secretário do Homeland, que foi criado por W. Bush depois do 11 de Setembro, o republicano e ex-governador da Pensilvânia, Tom Ridge, disse que o Departamento de Segurança Interna “não foi estabelecido para ser a milícia pessoal do presidente”. Ainda segundo Ridge, há que proteger a propriedade federal “sem recorrer a essas táticas flagrantes e sem tentar acender o fogo da divisão neste país”.
CUPIM
É exatamente o que se vê nos anúncios da campanha de Trump tentando fazer as pesquisas empinarem. “Turbas perigosas de grupos de extrema esquerda estão correndo pelas nossas ruas e causando um caos absoluto”, insufla um deles. “Eles estão destruindo nossas cidades e protestando.”
O que isso é capaz de provocar se viu, novamente, no sábado, em Austin, quando um carro se lançou contra uma manifestação antirracista, pondo em risco a vida das pessoas. Ao se aproximar, Garrett Foster – que é branco – foi morto a tiros desde o veículo. Foster costumava empurrar nas manifestações a cadeira de rodas da noiva Whitney Mitchell, uma negra tetraplégica. O assassino se apresentou à polícia e foi liberado.
Uma vigília foi organizada em Austin em homenagem a Garrett e por justiça. Outros crimes do tipo já ocorreram em várias partes do país, sob esse clima de ódio insuflado desde a Casa Branca.
Os federais de Trump, em Portland, mas não só lá, também fazem sua parte nesse jogo macabro. Um manifestante da maior cidade do estado do Oregon foi atingido com uma bala de borracha – de borracha por fora, mas aço por dentro – há dias e teve o crânio fraturado.
Mas talvez nada traduza melhor quem é quem nesse embate, do que o vídeo com 10 milhões de visualizações, do veterano da Marinha que encarou os bate-paus de Trump, foi espancado estoicamente e já virou uma lenda, como “Capitão Portland”.
Christopher David, de 53 anos, ex-integrante do Corpo de Engenheiros da Marinha, vestiu um moletom com o dístico da força estampado no peito e foi até uma manifestação se inteirar do que estava acontecendo.
Presenciou uma investida da tropa de Trump contra manifestantes, que considerou “inconstitucional”. Um agente apontou uma arma semiautomática no peito do veterano da Marinha e outro o empurrou por trás, enquanto ele tentava conversar.
Sereno, disse aos “federais” que deveriam cumprir com seu juramento “para com a Constituição”, não para com “um homem em especial”. Sem que tivesse praticado qualquer ato que pudesse ser mal interpretado, foi espancado acintosamente, se manteve ereto, e ainda foi atacado com gás de pimenta.
Ao jornal britânico The Independent, David assinalou que Trump “está tentando ver até onde pode empurrar em Portland e criar algum tipo de modelo para outras cidades para que ele possa provocar caos e descontentamento suficientes para tentar ganhar de novo a eleição”. Sobre a agressão que sofreu, disse que a milícia de Trump é feita de “bandidos e rufiões”. “Eu não podia reconhecer nada taticamente que eles estavam tentando fazer que mesmo remotamente fosse relacionado com o controle de multidões. Parecia um bando de bate-paus”. David precisará de cirurgia reconstrutiva com pinos e placas no dedo anelar que foi quebrado. Outro osso da mão também foi quebrado.