Com Luther King à frente, faixa em inglês e vietnamita: "Os homens não são nossos inimigos se matamos os homens, com quem viveremos?”

Recém transcorrido, o feriado nos EUA em homenagem ao reverendo Martin Luther King, mais associado na lembrança de muitos ao seu célebre discurso “Eu Tenho Um Sonho” como expressão maior da luta que derrubou na década de 1960 o apartheid institucionalizado no sul dos EUA e que se desdobra hoje nas grandes lutas contra racismo e desigualdade que persistem, teve como foco a defesa do direito ao voto e, de uma forma mais ampla, da própria democracia, sob ameaça dos trumpistas, negacionistas, xenófobos, supremacistas brancos, fascistas e seus acólitos.

Mas na primeira comemoração após a retirada dos EUA do Afeganistão, com duas décadas de “guerras sem fim” e diante dos recentes arroubos do Pentágono sobre a “volta do confronto de grandes potências”, um orçamento militar que é maior do que o dos dez seguintes países há quase 30 anos e desmantelamento da arquitetura coletiva de segurança no mundo, trazendo de volta a ameaça de hecatombe nuclear, é outro discurso do Dr. King que merece um especial destaque, a pregação “Além do Vietnã: tempo para quebrar o silêncio”.

Foi a primeira vez que Luther King se pronunciou em público contra a Guerra do Vietnã, a que chamou de “sintoma de uma doença muita mais profunda dentro do espírito da América”.

A manifestação de Luther King foi feita apesar da discordância de boa parte da liderança do movimento pelo fim do apartheid, que de forma atrasada supunha que, se “misturasse” os temas, iria romper a aliança com o governo de Lyndon Johnson e dificultar a luta contra o racismo.

Atitude corajosa que lhe custou o isolamento de parte do próprio movimento antirracismo e a hostilização por jornais ditos liberais, como o New York Times.

A pregação foi feita no dia 4 de abril de 1967 na igreja Riverside, em Nova York. Exatamente um ano depois, o Dr. King foi assassinado a tiros em um atentado em Memphis, Tennessee, quando se solidarizava com trabalhadores em greve.

No dia 15 de abril de 1967, ele havia marchado ao lado de dezenas de milhares em Nova York, do Central Park à sede da ONU, pelo fim dos bombardeios dos EUA ao Vietnã, trégua imediata e negociação de paz.

De uma forma didática, o Dr. King explicou como se decidiu a dar esse passo. “Há alguns anos, houve um momento brilhante nessa luta. Parecia que havia uma promessa real de esperança para os pobres, tanto negros quanto brancos, por meio do programa de pobreza. Houve experiências, esperanças, novos começos”.

Então – continuou – veio a escalada no Vietnã, “e eu assisti a esse programa ser interrompido e estripado como se fosse algum brinquedo político ocioso para uma sociedade enlouquecida pela guerra”.

“E eu sabia que a América nunca investiria os fundos ou energias necessários na reabilitação de seus pobres, enquanto aventuras como o Vietnã continuassem a atrair homens, habilidades e dinheiro como um tubo de sucção destrutivo e demoníaco. Portanto, sentia-me cada vez mais compelido a ver a guerra como inimiga dos pobres e a atacá-la como tal”.

Ele denunciou, ainda, como “temos sido repetidamente confrontados com a ironia cruel de assistir meninos negros e brancos nas telas de TV enquanto eles matam e morrem juntos por uma nação que não tem sido capaz de colocá-los juntos nas mesmas escolas. Então, nós os assistimos em solidariedade brutal queimando as cabanas de uma vila pobre, mas percebemos que eles dificilmente viveriam no mesmo quarteirão em Chicago”.

Quando ouvia nas comunidades segregadas questionamentos dos jovens sobre a ação não violenta, diante do que era visto no Vietnã, o Dr. King compreendeu que nunca poderia levantar sua voz contra a violência dos oprimidos nos guetos “sem antes ter falado claramente para o maior provedor de violência do mundo hoje: meu próprio governo”.

“Essa loucura deve cessar. Falo como filho de Deus e irmão dos pobres sofredores do Vietnã. Falo por aqueles cujas terras estão sendo devastadas, cujas casas estão sendo destruídas, cuja cultura está sendo subvertida. Falo pelos pobres na América que estão pagando o preço duplo de esperanças destruídas em casa e lidaram com a morte e corrupção no Vietnã. Falo como cidadão do mundo, pelo mundo, que fica horrorizado com o caminho que tomamos”.

O Dr. King conclamou, ainda, à mudança, de uma sociedade orientada para as coisas para uma sociedade orientada para as pessoas. “Quando máquinas e computadores, motivos de lucro e direitos de propriedade são considerados mais importantes do que as pessoas, os trigêmeos gigantes do racismo, materialismo extremo e militarismo são incapazes de ser conquistados”, advertiu.

“Uma nação que continua ano após ano gastando mais dinheiro em defesa militar do que em programas de elevação social está se aproximando da morte espiritual” [aplausos sustentados]. Ele chamou a “recapturar o espírito revolucionário” e declarar “hostilidade eterna à pobreza, racismo e militarismo”.

E concluiu dizendo que, se for feita a escolha certa, “seremos capazes de apressar o dia, em toda a América e em todo o mundo, quando a justiça rolará como as águas, e a retidão como um riacho poderoso”.