Lula diz que o Estado tem que ir aos mais pobres
O presidente eleito Luis Inácio Lula da Silva não poderia perder a oportunidade de sinalizar sua prioridade aos mais pobres, por isso, antes da posse quis participar do Natal dos Catadores, um tradição criada em seu governo. Há 19 anos, desde 2003, ele se encontrava com os trabalhadores da reciclagem de resíduos sólidos para uma confraternização de fim de ano, em que passava ao lado daqueles que eram o foco de seu governo. Em 2006, os representantes desses trabalhadores foram recebidos no Palácio do Planalto, após uma marcha a Brasília.
Depois de cinco anos sem realizar seus encontros, a Associação Nacional dos Catadores acabou se reunindo nesta ExpoCatadores para discutir suas demandas, que serão levadas ao governo Lula. Associações de Catadores até de outros países da América Latina vieram discutir sua experiência em São Paulo, no Armazém do Campo, do MST, como um meio de celebrar o novo governo.
“O povo pobre, o povo de rua, os catadores e tantos outros milhões de brasileiros não têm como chegar até o governo. Às vezes não chegam ao prefeito, ao governador e muitos menos ao presidente da República. E eu quero assumir o compromisso com vocês de que não serão vocês que terão que ir até o presidente da República. Sou eu, presidente da República, que tenho que vir até vocês para que a gente possa conversar e tentar encontrar uma solução definitiva para os moradores de rua e as pessoas mais humildes deste país”, afirmou Lula com a voz emocionada. Ele disse que não quer ver os mais pobres “mendigando” políticas públicas aos gestores públicos.
Lula também quis que o futuro ministro da Economia, Fernando Haddad, comparecesse para reafirmar suas prioridades. “A primeira vez que trabalhei com Lula, ele nos deu um tarefa: colocar o pobre na universidade. Conseguimos cumprir essa promessa de campanha de 2002 e permitir que as famílias mais humildes pudessem sonhar que seus filhos e netos chegassem aos mais altos escalões da educação nacional”, lembrou Haddad.
“Nessa campanha, o presidente Lula fez outra promessa, colocar o pobre no orçamento e o rico no imposto de renda”, observou Haddad. “Se tivermos o mesmo êxito de quando nos foi dada a tarefa da educação, teremos um país mais justo, que é o que nós precisamos”.
“Todo mundo precisa de uma oportunidade na vida. Com essa frase simples, Lula resumiu o que espera da área econômica no novo governo: justiça social, que começa atendendo vocês”, concluiu o futuro ministro.
Povo da rua e defensores do meio ambiente
O Natal dos Catadores sempre foi uma expressão do encontro do governo com esses trabalhadores, que têm enorme importância para a defesa do meio ambiente. Mas, muitas das lideranças presentes também já estiveram nas ruas, sem perspectiva, e foram acolhidas pelas cooperativas de reciclagem, como única oportunidade para sobrevivência. Suas histórias, muitas vezes, são marcadas pela tragédia do vício e da pobreza extrema. Por isso, Lula se dirigiu a essas duas realidades.
Lula fez seu discurso se dirigindo aos trabalhadores, mas também ao padre Júlio Lancellotti, que se firmou em São Paulo em defesa do “povo da rua”, sempre denunciando as expressões de ódio aos mais pobres.“Sei a falta de respeito que os catadores foram tratados nos últimos anos. A falta de compreensão de muitos gestores”, afirmou Lula. “Quando for presidente, vou cuidar do povo em situação de rua”, prometeu o petista. “Quero um encontro especificamente com o povo da rua aqui em São Paulo”, se comprometeu, enquanto se dirigia ao padre Julio.
“Vejo mulheres e crianças dormindo na rua, entre carros passando. E o Estado não aparece”, criticou, reafirmando a importância de quem trabalha com a reciclagem. “Quero ver catadores andando na rua de cabeça erguida. Porque é um trabalho digno, e muitas vezes estão catando o lixo de quem não tem respeito e joga na rua”.
Foi a partir de uma legislação de 2010, que Lula sancionou a Política Nacional de Resíduos Sólidos, que definiu a inclusão da categoria na cadeia produtiva da reciclagem. A lei que garantiu dignidade aos trabalhadores é considerada exemplar na América Latina.
“Não é possível que se juntar o prefeito, o governador e o presidente da República, a gente não tenha a capacidade de olhar esse povo não como números, mas como seres humanos que precisam ser tratados com o mesmo respeito que qualquer outra pessoa desse país. Vamos voltar a fazer aquilo que começamos a fazer, ir criando condições para que vocês sejam respeitados na função e na profissão. Tratados não como vagabundos, mas brasileiros que foram abandonados pelo estado brasileiro, pelas autoridades que acham que vocês são caso de polícia”, criticou Lula.
Intervenções hostis na arquitetura
O padre Júlio Lancellotti, coordenador da Pastoral do Povo da Rua de São Paulo, fez um discurso indignado contra a opressão de Bolsonaro e outros governantes contra as populações vulneráveis. “Estamos cansados de sermos tratados como lixo, apanhando da Guarda Civil Metropolitana, da limpeza urbana. São poucos os moradores de rua aqui dentro, muitos estão nas calçadas, nos viadutos. Ninguém quer saber dos mais pobres”, desabafou.
Ele fez referência ao recente veto de Bolsonaro ao projeto de lei 488/21 que proíbe as intervenções de arquitetura hostil. São obras promovidas por prefeituras para impedir que pessoas em situação de rua sejam acolhidos debaixo de viadutos ou outras áreas públicas. Ele defendeu a derrubada do veto ao projeto que recebeu o seu nome, e outras bandeiras do movimento.
“A aporofobia está matando nosso povo pela violência e desprezo. Estou esperando que o Congresso Nacional derrube o veto do Bolsonaro sobre as intervenções na arquitetura hostil. Será sancionada essa lei em Recife, em Alfenas (MG). Que haja uma Secretaria Nacional para a população de rua, que tenhamos mutirões e todos tenham um CadÚnico, que a população de rua receba renda”, reivindicou o padre. “Que não haja programas de tutela, mas de autonomia”.
Após Lula mencionar o número assustador de pessoas morando na rua, padre Júlio, afirmou que as 32 mil notificadas pela Prefeitura de São Paulo como vivendo na rua, é um dado subnotificado. Só ele e as organizações que conhece, teriam contado mais de 42 mil pessoas nas ruas. O presidente eleito também anunciou que fará uma pesquisa nacional sobre o perfil da população em situação de rua para levantar as causas desse drama social.
Retomada do orgulho
Roberto Laurenano, do Movimento Nacional dos Catadores de Material Reciclável (MNCR), apontou a importância da volta desse evento. Ele lembrou que, uma vez, Lula sumiu do Palácio do Planalto e foi encontrado na baixada do Glicério, no centro de São Paulo, conversando com os carroceiros catadores. “Esse é o momento da retomada dos catadores e catadoras de material reciclável, da população em situação de rua, para o centro das políticas públicas desse país”, festejou.
Ele foi um dos que solicitaram um “revogaço” de decretos, entre eles, o de nº 11.044/2022, o Recicla+. “Um decreto de morte para os catadores de materiais recicláveis”, comentou Lauriano. “Nesses quatro anos, nós fomos tirados desse cenário de uma forma bastante cruel.E a nossa esperança é muito grande, por estarmos de novo de volta para esse circuito e por entendermos que podemos contar com todo apoio do presidente eleito”, resumiu o trabalhador.
Laureano citou o modo como Bolsonaro optou por favorecer empresários, a articular o trabalho das cooperativas. Desde seu primeiro governo, Lula estabeleceu um espaço de diálogo permanente, que foi o Comitê Interministerial de Inclusão dos Catadores com a participação de 11 Ministérios, empresas públicas federais e o MNCR.
Laureano apresentou a proposta para que o novo governo crie uma secretaria especial para a reciclagem, dentro do Ministério do Meio Ambiente. Assim como outros discursos, durante a manhã, ele também solicitou a revogação de vários decretos que prejudicaram a categoria. Uma das principais bandeiras é o combate a politica de incineração de resíduos sólidos. Para os catadores, é como queimar dinheiro, pois o lixo reciclável é de onde retiram sua renda.
Já o coordenador do Movimento Nacional de Luta e Defesa da População de Rua, Anderson Miranda, salientou o desmonte das políticas de combate a pobreza. “Tivemos sete anos de desgoverno no país, um desmonte”, lamentou. Para ele, Lula não apenas acabou com a fome no país, como deu visibilidade para a população em situação de rua, lembrou. Enquanto isso, no atual governo sequer há espaço de diálogo, mas violência e prisão da população em situação de rua. “Agora, a população de rua não tem mais diálogo”, afirmou Miranda, destacando que a Guarda Municipal agride a população de rua. “É jato de água todo dia no Brasil,” criticou.
“A fome voltou, mas a partir de janeiro de 2023, o senhor irá extinguir a fome, voltaremos a ter quatro refeições “, festejou Miranda.
Atlas Brasileiro de Reciclagem
Lula recebeu ainda uma cópia do Atlas Brasileiro de Reciclagem, organizado pelo Observatório da Reciclagem Inclusiva e Solidária. Segundo a coordenadora do observatório, Jaqueline Rutkowski, trata-se do maior banco de dados sobre reciclagem do país.
“Resolveram registrar como ocorre a reciclagem no Brasil a partir de dados confiáveis”, disse ela, explicando que o livro é fruto dos esforços do Movimento Nacional dos Catadores. O documento abrange a produção de mais de 2 mil cooperativas, com dados econômicos como a geração de empregos na categoria. Ela diz que, frequentemente, dados irreais são usados para prejudicar o trabalho das cooperativas de reciclagem.
Na festa, o escritor Alex Cardoso, do Movimento Nacional dos Catadores, lançou seu segundo livro, O Eu Catador, cuja obra foi presenteada para Lula e para sua esposa Rosangela Silva, a Janja.