Líbia: sobrevivente da Otan, filho de Kadhafi volta à liberdade
O terceiro filho do líder líbio Muammar Kadhafi, Al Saadi, foi libertado na segunda-feira (6) por decisão de um tribunal, medida aplaudida pelo chefe do governo de transição, Abdul Hamid Dbeibah, que assinalou que a medida sinaliza o desejo de “construir um novo país assente na reconciliação”. Al Saadi estava preso desde 2014.
Em comunicado através das redes sociais, Dbeibah – designado em março passado para a chefia do Governo Nacional de Unidade transitório líbio (GNU) no Fórum para o Diálogo Político na Líbia, um organismo não eleito patrocinado pela ONU -, insistiu que a Líbia “não pode avançar sem conseguir a reconciliação, nem estabelecer um Estado sem uma justiça ou uma aplicação das leis que respeite a separação de poderes e os procedimentos judiciais”.
O GNU substituiu o governo baseado em Trípoli (GNA) e o governo do parlamento de Tobruk, na região oriental, após esgotadas as tentativas para resolver o impasse e a divisão por via militar. O cessar-fogo foi assinado pelas partes em outubro do ano passado.
“Sobre esta base, o cidadão Al Saadi Kadhafi foi hoje libertado, numa aplicação da ordem de liberdade solicitada pela procuradoria do Estado”, afirmou Dbeibah. Segundo o porta-voz do Governo de transição Mohamed Hamouda, a ordem judicial para a libertação tinha já dois anos.
No próximo dia 20 de outubro, vão se completar 10 anos do assassinato do líder Kadhafi. Outro filho de Kadhafi, Saif Al Islam, foi libertado em 2017, depois de ficar preso por seis anos, como parte de uma anistia decretada pelo governo do parlamento de Tobruk. Tanto Saif quanto Saadi foram torturados, após serem capturados.
As condições para um acordo político na Líbia foram estabelecidas na chamada Declaração do Cairo, de junho do ano passado, apoiada pela Liga Árabe: representação igualitária das três regiões – Tripolitânia, Cirenaica e Fezzan – no conselho presidencial, unificação das instituições do Estado líbio e a aprovação de uma declaração constitucional. O GNU vem se dedicando a criar as condições para a realização de eleições livres e justas no final de 2021.
Ao ser assinado o acordo de cessar-fogo, as duas partes expressaram sua satisfação com que a Líbia estivesse sendo reafirmada como “uma só nação”. O acordo também evitou a internacionalização do conflito. O governo de Tobruk recebera apoio do Egito, França, Rússia, Emirados Árabes e Arábia Saudita, enquanto o GNA era respaldado por Washington e Ancara.
Al Saadi, conhecido como o “filho futebolista de Kadhafi”, chegou a se exilar no Níger, após a derrubada do governo legítimo líbio pela Otan e entrega do poder às milícias extremistas, mas, sob pressão de Washington, o governo do país africano acabou o entregando três anos depois, para ser jogado em um cárcere em Trípoli.
Em 2018, um tribunal o absolveu da acusação de ser o mandante da morte do treinador Bashir Al Rayani, mas continuou preso sob a alegação de ter resistido ao ataque da Otan/jihadistas no comando das forças especiais líbias.
Mais presos políticos estão sendo agora libertados, entre eles o ex-diretor de gabinete de Kadhafi, Ahmada Ramadan Al Assebei, que estava cativo desde setembro de 2011.
Caos que a Otan impôs
Desde 2011, quando a Otan interveio no país para derrubar o governo do líder Muammar Kadhafi em favorecimento de bandos jihadistas armados, a Líbia, que detinha o maior índice de desenvolvimento humano da África, segundo a própria ONU, mergulhou no caos, divisão e miséria, o que agora se tenta reverter.
Tal foi o retrocesso trazido pelos ilegais bombardeios da Otan que até mercados de escravos foram recriados no país em pleno século 21, e a Líbia se tornou cabeça de praia da qual botes apinhados de refugiados cruzam o Mediterrâneo rumo à Europa, com centenas todos os anos morrendo afogados. A produção de petróleo, principal riqueza do país, foi praticamente paralisada.
Desde que a Otan violou a resolução da ONU que apenas autorizava ‘proteger manifestantes’ e passou a bombardear a Líbia por meses até a deposição do governo e o assassinato, depois de seviciado, de Kadhafi, o país caiu nas garras de milícias rivais, com prisões em massa, tortura e mais de um milhão de refugiados. A unidade nacional ficou ameaçada.
A derrubada de Kadhafi também possibilitou o assalto aos arsenais líbios, que foram pilhados para armar na Síria as gangues extremistas que atacavam o governo legítimo de Bashar Al Assad, episódio que teve como dano colateral o assassinato do embaixador norte-americano em Benghazi.
Armas que também serviram para fortalecer extremistas ao sul da Líbia, o que redundou no atual conflito no Sahel, a região que fica entre o deserto do Saara e a África negra.
Ao saber do assassinato de Kadhafi, a então secretária de Estado Hillary Clinton, festejou em um programa de televisão às gargalhadas: “nós viemos, nós vimos e ele morreu”.
O ex-porta-voz do líder Muammar Kadhafi, Moussa Ibrahim, em entrevista no ano passado à RT, denunciou o que estava por trás dos bombardeios indiscriminados realizados pela Otan/EUA.
A Líbia de Kadafi – revelou – teve várias iniciativas que eram vistas pelas potências ocidentais na África como altamente prejudiciais aos seus objetivos, incluindo a criação de uma nova moeda africana lastreada em ouro [usando as reservas líbias], um banco central africano e uma força militar pan-africana. Então, o governo líbio precisou ser destituído e o país destruído, como muitos outros que quiseram trilhar um caminho soberano, sublinhou.
Para Moussa, foram os meses de bombardeios indiscriminados da Otan que deram sustentação para que as forças mercenárias ganhassem terreno, o que acabou levando à prisão, tortura e execução sumária de Kadhafi. Uma campanha criminosa que levou à morte de milhares de inocentes, denunciou, justificada por “notícias” que se comprovaram posteriormente falsas, pois visavam tão somente desconstruir a imagem do líder líbio junto ao seu povo e à comunidade internacional.
“Olhe para a Líbia agora. Assassinatos, conflitos civis, guerra tribal, terrorismo, roubo de riqueza nacional. O que isso lembra a você? Iraque, Síria, Afeganistão, Iêmen. É a mesma história acontecendo toda vez”, condenou. Moussa ressaltou que incentivar as divisões locais para enfraquecer uma nação-alvo é uma tática que vem sendo aperfeiçoada ao longo de décadas de colonialismo e pós-colonialismo. “É o gerenciamento de crises. O que você faz é chegar ao cotidiano de um país e introduzir o caos através da guerra, conflito interno, divisão religiosa, ocupação – qualquer que seja o meio que você tenha à disposição. E então continue o caos, você gerencia a crise”, sublinhou
Por sua vez, o ex-dirigente líbio e primo de Kadhafi, Gaddaf Al Dam, salientou que a Líbia “não era uma ameaça à paz mundial para merecer uma intervenção do Conselho de Segurança dessa natureza”. Ele lembrou ainda que a Resolução do Conselho de Segurança de 2011 determinava um cessar-fogo imediato e uma zona de exclusão aérea sobre o país.
“Mesmo assim, o Conselho de Segurança não estipulou um ataque à Líbia com este grande número de aviões de guerra – 40 mil ataques aéreos e dezenas de milhares de mísseis terrestres e marítimos”, frisou Gaddaf Al Dam. Por uma questão de justiça, “deveria haver uma investigação sobre o que aconteceu na Líbia”, acrescentou.
Caracterizando o assassinato brutal de Kadhafi em 20 de outubro de 2011 como “um crime de guerra”, Gaddaf Al Dam disse que uma investigação tem de ser realizada para determinar quem é o responsável por seu assassinato. “Queremos saber a verdade”, concluiu.