Em Kant, que escreveu no século 18 (viveu entre 1724 e 1804), há uma mescla entre a visão providencialista e a ideia de progresso. Ele ecoou a concepção providencialista e viu a história como desdobramento de um plano pré-estabelecido rumo a um objetivo final pré-determinado. “Os homens, enquanto indivíduos, e mesmo povos inteiros, mal se dão conta de que, enquanto perseguem propósitos particulares, cada qual buscando seu próprio proveito e frequentemente uns contra os outros, seguem inadvertidamente, como a um fio condutor, o propósito da natureza, que lhes é desconhecido, e trabalham para sua realização”. Isto é, a história segue “um determinado plano da natureza para criaturas que procedem sem um plano próprio” (Kant: 2003).

Este argumento é semelhante ao da mão invisível do mercado que Adam Smith formulou na mesma época – cada um,ao cuidar de si, acaba cuidando de todos os demais (Smith: 1983) – e se filia à tradição iniciada por Santo Agostinho: o desenrolar dos acontecimentos segue um plano pré-estabelecido. Com a diferença de que, agora, o autor desse plano não é Deus mas a natureza – mas dotado do mesmo misticismo que supõe uma história que transcorre à margem e fora da experiência humana concreta.

Para Kant o progresso é um caminho rumo à liberdade do indivíduo, e isso fazia sentido na luta contra o feudalismo e sua ideologia, a religião, fonte de preconceitos e legitimadora de uma ordem social fortemente hierarquizada onde não havia a liberdade que torna o indivíduo capaz de firmar contratos para vender sua força de trabalho. Liberdade pessoal compatível com as necessidades do modo de produção capitalista que se firmava, que preconizava a liberdade que permite ao trabalhador vender sua força de trabalho.

É nesse contexto que faz sentido a resposta de Kant à pergunta “O que é o esclarecimento?” (1783): “o esclarecimento é a saída do homem de sua menoridade”. Isto é, saída “da incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo” (Kant: 1974).

Esta ideia refletia as mudanças sociais e políticas de seu tempo, que culminaram na Revolução Francesa de 1789. Em “Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita” (1784), Kant diz que o objetivo da espécie humana é alcançar “uma sociedade civil que administre universalmente o direito” (Kant: 2003), ultrapassando o arbítrio da monarquia absoluta feudal.

Este ponto de vista otimista foi reafirmado em 1798 quando Kant associou a ideia de progresso à da Constituição Republicana e se declarou, partindo dos sinais precursores de sua época, “capaz de predizer ao gênero humano (…) que ele atingirá este fim e, ao mesmo tempo, que não haverá mais regressão no seu progresso para o que é melhor” (cit. in Lebrun: 2003).

Este problema era, escreveu Kant, “ao mesmo tempo, o mais difícil e o que será resolvido por último pela espécie humana”. E também paradoxal pois a liberdade envolve o enquadramento dos homens em uma determinada ordem social. A história, disse Kant, é o “lugar das coerções”, onde “se evidencia a possibilidade de disciplinar os homens”, disciplina – “a dura lei da formação” – que “eleva progressivamente os homens da animalidade até a cultura, da civilização (o requinte dos costumes, o luxo, o ‘espírito’), que nos sobrecarrega, até a autonomia responsável” (Kant: 2003).

Ele antecipou, nesta passagem, a tese freudiana da existência do conflito entre o indivíduo e a sociedade, fonte da repressão que estaria na base da socialização dos seres humanos, como o mestre de Viena escreveu um século depois, tese que influenciou largamente as concepções imobilistas da história ao longo do século 20. Entre elas as teses da chamada Escola de Frankfurt, que tentou unir os pensamentos de Marx e Freud. Nesse sentido, há um kantismo remoto na tese de Horkheimer de que a história é a crônica da subordinação do indivíduo (Horkheimer: 1976).

No século 18 a ênfase na liberdade pessoal como critério para aferir se houve progresso decorria do contratualismo que se firmava e era uma imposição, uma necessidade, do modo de produção capitalista que se tornava hegemônico. Para poder vender sua força de trabalho, o trabalhador precisa ser juridicamente livre, condição essencial para a livre troca no mercado de trabalho capitalista – trabalhador livre em dois sentidos, ensinou Marx: não submetido a nenhum senhor e destituído da posse dos meios de produção (Marx: 1983).

O sujeito formalmente livre ocupava o centro do raciocínio, e seu desenvolvimento e autonomia passam a ser medidos pela capacidade de cada pessoa cuidar de seus próprios interesses. Este é o sentido da expressão “fim da minoridade” usada por Kant na resposta à pergunta “O que é o esclarecimento?” Ideia que reafirmou no prefácio à “Crítica da Razão Pura” (1787) onde baseou seu raciocínio na defesa da liberdade do sujeito e defendeu a tese de que a moral pressupõe a liberdade pessoal pois está baseada em princípios práticos que de outra forma “seriam absolutamente impossíveis” (Kant: 1994).

Referências

  • Horkheimer, Max. “Eclipse da razão”. Rio de Janeiro, Editorial Labor, 1976
  • Kant, Immanuel. “O que é o esclarecimento?”. In Kant, Immanuel. “Textos seletos”. Petrópolis, Vozes, 1974
  • Kant, Immanuel. “Crítica da razão pura”. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1994.
  • Kant, Immanuel. “Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita”. São Paulo, Martins Fontes, 2003
  • Lebrun, Gerard. “Uma escatologia para a moral”. In Kant: 2003.
  • Marx, Karl. “O Capital”, Livro I. São Paulo, Abril Cultural, 1983
  • Smith, Adam. “Inquérito sobre a natureza e as causas da riqueza das nações”. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1983

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José Carlos Ruy* é jornalista, escritor, estudioso de história e do pensamento marxista.

 

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