Ordem de desembarque partiu do promotor da região, que após visita ao navio Opens Arms, considerou a situação de “extrema urgência”. (AFP)

Por determinação da Justiça italiana, afinal desembarcaram em Lampedusa na noite de terça-feira (20) para quarta-feira os migrantes resgatados do mar Mediterrâneo a bordo do navio humanitário espanhol Open Arms (Braços Abertos), depois de 19 dias de agonia à deriva, sem direito a porto seguro, sob a intransigência do ministro do Interior italiano, o xenófobo Matteo Salvini.

A ordem de desembarque partiu do promotor Luigi Patronaggio, de Agrigento, que visitou na terça-feira o navio e considerou a situação “explosiva” e de “extrema urgência”, como parte da investigação se uma autoridade pública não nomeada estaria cometendo abuso de poder ou omissão de socorro.

“Finalmente, o pesadelo acabou”, anunciou o líder da ONG que opera o navio humanitário, Oscar Camps. O promotor decretou também a apreensão do navio, medida que a ONG espanhola entende como provisória, mas necessária nas circunstâncias. Imagens de tevê mostraram os migrantes comemorando no Open Arms e depois sendo monitorados pelas equipes de saúde e apoio.

Na data da chegada a Lampedusa, o navio humanitário tinha a bordo 147 refugiados, número que sucessivamente foi sendo reduzido, pela evacuação de doentes e de menores, até chegar aos 83 desta terça-feira.

Na véspera, o desespero fizera 15 migrantes se jogarem na água tentando alcançar a costa, quando o Open Arms estava ancorado a apenas algumas centenas de metros do porto de Lampedusa. Na inspeção, Patronaggio foi acompanhado por uma equipe de médicos e chefes da capitania e comprovou a advertência do capitão Marc Reig, de que o quadro a bordo era “insustentável”.

19 DIAS À DERIVA

A primeira sentença judicial favorável ao navio humanitário na quinta-feira derrubava a proibição expressa de Salvini e permitia que o Open Arms entrasse em águas territoriais italianas para se proteger de uma tempestade, embora sem autorizar imediatamente o desembarque. Desde o fim de semana, os promotores estudavam a melhor forma de resolver a crise humanitária.

Documentos apreendidos por ação policial determinada pela promotoria mostraram que o pessoal do porto não tinha qualquer restrição ao desembarque e só aguardava ordens para que isso fosse feito.

O que faz o Open Arms igualar o triste recorde do Sea-Watch em janeiro, no caso, Malta, de 19 dias à deriva em flagrante violação da lei internacional sobre socorro a náufragos.

XENOFOBIA E OPORTUNISMO

Também na terça-feira, acabou o governo de coalizão Movimento 5 Estrelas (M5S) e Liga, com o primeiro-ministro Giuseppe Conte renunciando diante do Senado e denunciando a ambição e oportunismo de Salvini, que não esconde que deseja uma coalizão totalmente pela extrema-direita.

Um dos aspectos mais gritantes no episódio dos 19 dias à deriva do Open Arms foi a insistência de Salvini de manter a interdição dos portos italianos a náufragos, mesmo quando seis países europeus, ainda que tardiamente, haviam assumido o compromisso de dar abrigo a eles – França, Alemanha, Espanha, Portugal, Luxemburgo e Romênia.

Pelo chamado ‘Decreto Salvini’, só o ministro do Interior, isto é, ele próprio, pode decidir sobre questões de imigração. O desembarque de 27 menores só foi concedido por Salvini – a contragosto, como fez questão de expressar – após carta incisiva de Conte.

Ainda mais nojento foi o afã de Salvini em fazer da crise humanitária o pretexto para romper o próprio governo de que fazia parte e buscar arrancar novas eleições, em que apostava que venceria, ao insuflar o chauvinismo, a xenofobia e o racismo, com os imigrantes transformados em bodes expiatórios do desastre para a Itália que o arrocho da Troika e a primazia à salvação dos bancos quebrados à custa de todos os demais significaram.

Para a eleição antecipada, Salvini – no que lembra a estratégia de campanha de Trump – já tinha como mote que “a Itália não é mais o campo de refugiados da Europa”.

OMISSÃO DE SOCORRO

A investigação da promotoria italiana sobre a crise humanitária no Open Arms tem como alvo óbvio o ministro Salvini. Conforme fontes do processo citadas pela Efe, o foco é averiguar se foi cometido crime nos termos do artigo 328 do Código Penal, que pune com até dois anos de prisão o funcionário que foi omisso no cumprimento de um dever que ‘por razões de justiça, ordem pública ou higiene e saúde, deve ser realizado sem demora’.

Antes da determinação da promotoria italiana, a crise do Open Arms sofreu enormes idas e vindas, com o governo espanhol oferecendo um porto que foi recusado por ser impraticável nas condições existentes a bordo e seis dias de viagem, até o anúncio do envio de um navio de sua marinha, o Audaz, para escoltar o Open Arms até um porto espanhol mais próximo. Quando o promotor italiano deu a ordem de desembarque, o Audaz já partira da base Naval de Rota, Cádiz, mas levaria três dias para chegar.

QUEM MANDOU PROCURAR?

Dentro da Espanha, há quem queira punir a organização humanitária Open Arms por ter salvado todos esses náufragos. Segundo o El País, esta está exposta a uma multa de 901.000 euros por violar a proibição de “conduzir operações de busca e salvamento”. De janeiro até meados de abril, o Open Arms foi obrigado a ficar parado no porto de Barcelona sob alegações de insegurança, não cumprir requisitos para longas viagens e não ter permissão dos portos próximos do centro do Mediterrâneo (Itália e Malta) para desembarcar resgatados.

Foi finalmente autorizado a levar ajuda humanitária somente às ilhas gregas de Samos e Lesbos. No final de julho, quando dezenas de pessoas morreram afogadas no Mediterrâneo, o Open Arms se dirigiu à região, onde no dia 1º de agosto resgatou 55 pessoas (inclusive dois bebês e uma mulher grávida); no dia seguinte, mais 69 (duas crianças e duas mulheres grávidas) e no dia 10, outros 39. Total: 163. Número que, após vários transbordos, se reduzira para 147 diante de Lampedusa.

Esclarecedor do caráter absurdo que a xenofobia tem alcançado na Europa, matéria do El País registra que pesa contra o Open Arms na Espanha ameaça de multa por supostamente cometer “uma ofensa muito grave contra a segurança marítima” – nos termos da Lei de Portos e Marinha Mercante. E, para o capitão Reig, o risco de perda de sua habilitação profissional por cinco anos. O jornal registra que o Open Arms “pode afirmar, no entanto, que a lei do mar o obriga a resgatar o náufrago. A questão a ser resolvida é se ele os encontrou ou foi procurá-los”.

Não seria que seja o senso elementar de humanidade que prevaleça e, não, a barbárie? Como se costuma dizer, perguntar não ofende.