Juíza Ruth Bader Ginsburg, “uma gigante pela justiça e igualdade”
A Suprema Corte dos EUA anunciou que a juíza Ruth Bader Ginsburg morreu em sua casa na sexta-feira à noite, cercada pela família, devido a “complicações de câncer metastático no pâncreas” aos 87 anos.
A segunda mulher na história a ocupar uma cadeira na Suprema Corte, Ginsburg, como advogada da principal entidade norte-americana pelas liberdades civis, a ACLU, na década de 1970 cumpriu um enorme papel na luta contra a discriminação sofrida pelas mulheres nos Estados Unidos e pela igualdade, granjeando enorme respeito, ao encabeçar o Projeto de Direitos das Mulheres.
Passo a passo, em cada ação ajuizada, foi criando precedentes, expandindo direitos e proteções e movendo a Suprema Corte a adotar, em relação à discriminação da mulher a mesma proteção que a 14ª Emenda à Constituição estabelecera contra a discriminação racial, seguindo a abordagem do juiz Thurgood Marshall.
Atuação que faria com que ela fosse nomeada para uma corte de apelação em 1980 pelo presidente Jimmy Carter e, treze anos depois, já no governo de Bill Clinton, à Suprema Corte. Ali, teve um papel destacado na preservação de direitos, quando os conservadores passaram a ter maioria.
“Nossa nação perdeu um jurista de estatura histórica”, disse o presidente da Suprema Corte, John Roberts. “Hoje lamentamos, mas com a confiança de que as gerações futuras se lembrarão de Ruth Bader Ginsburg como a conhecemos – uma incansável e resoluta defensora da justiça.”
“Obrigado”, estampou a ACLU em seu portal, com um relato, assinado pelo presidente da entidade, sobre o papel de Ginsburg. “Poucos indivíduos tiveram um efeito tão dramático e duradouro em uma área particular da lei como a juíza Ruth Bader Ginsburg”, destacou Anthony Romero.
“Uma perda tremenda para nosso país”, disse o senador e ex-pré-candidato a presidente Bernie Sanders. Ginsburg “foi uma campeã extraordinária da justiça e da igualdade de direitos e será lembrada como uma das grandes juízas da história americana moderna.”
Na mídia e nas redes sociais, multiplicaram-se às homenagens. O enterro será realizado no Cemitério Nacional de Arlington, em uma cerimônia privada.
A bem dizer, a trajetória de vida de Ginsburg se confunde com a da luta das mulheres nas últimas décadas pela igualdade nos Estados Unidos. Uma judia baixinha, de voz suave e inesgotável energia, vista como uma rock star nos tempos da ACLU, com direito a camiseta e caneca com seu nome, e que, já idosa e na Suprema Corte, foi carinhosamente apelidada pelos fãs nas redes sociais como “Notória RBG”, uma brincadeira com o “Notório BIG”, um rapper.
Na audiência no Senado de confirmação da indicação do nome dela à Suprema Corte em 1993, a deputada Eleanor Holmes Norton, que atuara como diretora jurídica assistente na ACLU, destacou que quando Ginsburg fundou o Projeto dos Direitos das Mulheres da ACLU, “o axioma de hoje de que a 14ª Emenda se aplica às mulheres não era axiomático de forma alguma”. “A juíza Ginsburg passou a vida fazendo as coisas como deveriam ser, usando sua mente talentosa, afiada por um trabalho incansavelmente duro”.
Em um documentário em sua homenagem lançado este ano, Ginsburg disse que se tornou advogada “quando as mulheres não eram procuradas pela profissão jurídica”. “Naquela época, eu me via como uma espécie de professora de jardim de infância porque os juízes não achavam que existia discriminação por sexo.”
Na época, o movimento pelos direitos civis, desmontando o apartheid e as leis Jim Crow, tornara a discriminação racial percebida como odiosa e intolerável. “Mas a resposta que recebi dos juízes perante os quais argumentei quando falei sobre discriminação sexual foi: ‘Do que você está falando? As mulheres são tratadas muito melhor do que os homens. ‘”
Na Harvard Law School – então uma jovem mãe e uma das nove mulheres de sua classe -, em um almoço oferecido pelo reitor às alunas do primeiro ano de Direito, este pedira – como Ginsburg registrou certa vez – “a cada uma de nós que se levantasse e lhe contasse o que estávamos fazendo em um lugar que poderia ser ocupado por um homem”. As mulheres eram proibidas de morar nos dormitórios e de usar certas instalações do campus.
No início da carreira, ela iria se defrontar com outros episódios de discriminação, ajudando-a a desenvolver uma aguçada percepção do problema. Depois de se transferir para a Faculdade de Direito de Columbia e se formar como a primeira da classe, teve problemas para conseguir um emprego.
Quando obteve um cargo de professora de processo civil na Rutgers Law School, foi informada que receberia menos do que seus colegas homens porque tinha um marido que ganhava bem.
Ela e outras professoras entraram com um processo federal de discriminação em ação coletiva contra a universidade e venceram. Grávida do segundo filho, James, escondeu a gravidez, até depois de sua renovação de contrato. No final da década de 1960, integrou-se como voluntária à ação por direitos da ACLU.
Em 1971, no caso Reed v. Reed, a primeira vitória, com a decisão da Suprema Corte decidindo que dar preferência obrigatória a um sexo é “o próprio tipo de escolha legislativa arbitrária proibida pela Cláusula de Proteção Igualitária da Décima Quarta Emenda”. No ano seguinte, se tornou diretora fundadora do novo Projeto dos Direitos da Mulher e se tornou primeira professora titular de Direito na Universidade de Columbia.
O Projeto dos Direitos da Mulher da ACLU identificou centenas de leis federais norte-americanas discriminatórias, na educação, emprego, direitos reprodutivos, cartões de crédito, empréstimos, aluguel, hipotecas, prisão e militares – sob alegação de “proteger as mulheres”.
Em 1972, Ginsburg defendeu com sucesso Susan Struck (Struck v. Secretário de Defesa), que havia sido comunicada de que precisava interromper a gravidez se quisesse ficar na Força Aérea, claramente um problema que um homem nunca enfrentaria.
De forma sagaz, Ginsburg assumiu casos em que eram os homens os discriminados. Como no caso Frontiero, em que era o marido da oficial Sharron Frontiero da Força Aérea quem tivera negado alojamento e benefícios médicos que as esposas dos oficiais homens recebiam automaticamente.
Era uma forma brilhante de abalar preconceitos arraigados, despertar mais simpatia entre os juízes e mostrar que a discriminação fere a todos.
Foi a primeira alegação oral de Ginsburg perante a Suprema Corte. “Eu sabia que estava falando com homens que não achavam que existia algo como uma discriminação com base no gênero e meu trabalho era dizer a eles que ela realmente existe”, relatou depois.
Para sensibilizar os nove homens que estavam sentados no banco, ela citou Sarah Grimkè, defensora dos direitos das mulheres do século XIX: “Não peço nenhum favor pelo meu sexo. Tudo que peço a nossos irmãos é que tirem os pés de nossos pescoços ”.
Outra advogada, que acompanhava Ginsburg na causa, relembrou: “Não houve uma única pergunta de qualquer um dos juízes. Eles ficaram paralisados.”
Um dos casos mais importantes para Ginsburg envolveu um homem cuja esposa morreu no parto, deixando-o sozinho para cuidar de seu filho recém-nascido. A esposa de Stephen Wiesenfeld era o principal ganha-pão e, após sua morte, ele foi ao escritório local da Previdência Social para perguntar sobre os benefícios de sobrevivência para um dos pais e descobriu que ele não se qualificava porque era homem.
Ginsburg convenceu a Suprema Corte de que a seção da Lei da Previdência Social que negava benefícios aos pais por causa do sexo era inconstitucional. Ela ganhou por decisão unânime.
Já na Suprema Corte, em 1996, ela escreveu a decisão que derrubou a política de admissão somente de homens no Instituto Militar da Virgínia (VMI) e estabeleceu um novo padrão para os casos de discriminação por sexo.
Tratava-se da última universidade pública masculina do país. “Pode ser”, escreveu Ginsburg em seu voto, “que muitas mulheres não gostariam de ir para o VMI, mas muitos homens também não. E enquanto houver mulheres qualificadas que querem ir – e há – elas devem ser admitidas”.
À medida que nomeações por presidentes republicanos empurrou a correlação de forças na Suprema Corte ainda mais para a direita, Ginsburg se demarcou como uma poderosa voz pela razão e pelos direitos, em votos de discordância cada vez mais marcantes.
O que não a impedia de ter, como maior amigo no tribunal o conservador Antonin Scalia, falecido em 2016. “Discordamos em tudo na lei”, dizia Scalia, mas a amizade continua.
Quando em 2006 a Suprema Corte decidiu contra Lilly Ledbetter, que recebia menos do que seus colegas homens em empregos semelhantes na Goodyear, e que processara a empresa no momento da aposentadoria, Ginsburg denunciara que a corte “não compreende … a maneira traiçoeira como as mulheres podem ser vítimas de discriminação”.
“A bola está no campo do Congresso”, acrescentou. Alguns anos depois, o presidente Obama sancionou a Lei de Pagamento Justo Lilly Ledbetter.
Ela foi voto discordante também em 2007, quando a maioria apoiou a proibição federal de um procedimento chamado “aborto por nascimento parcial”. Decisão que ela chamou de “alarmante” e que “tolera, na verdade aplaude, a intervenção federal para proibir em todo o país um procedimento considerado necessário e adequado em certos casos pelo Colégio Americano de Obstetras e Ginecologistas”.
Em julho deste ano, Ginsburg foi voto vencido no caso da expansão, pelo governo Trump, das isenções para empregadores que alegassem objeções religiosas ou morais ao cumprimento do mandato contraceptivo do Obamacare.
“Hoje, pela primeira vez, a Corte põe totalmente de lado direitos e interesses compensatórios em seu zelo por garantir direitos religiosos ao enésimo grau”, escreveu Ginsburg, acompanhada pela juíza Sonia Sotomayor. Ela observou que o governo havia admitido que as novas regras fariam com que milhares de mulheres – “entre 70.500 e 126.400 mulheres em idade reprodutiva” – perdessem a cobertura.
Em 2000, na decisão da Suprema Corte que aprovou a eleição em favor de W. Bush, ela foi voto vencido, junto com outros três juízes, e assinalou que a “a conclusão de que uma recontagem constitucionalmente adequada é impraticável é uma profecia que o julgamento do próprio Tribunal não permitirá que seja testada. Essa profecia não testada não deve decidir a Presidência dos Estados Unidos ”, escreveu ela. “Eu discordo.”
Quando em 2013 a Suprema Corte devastou a Lei de Direitos de Voto (VRA) de 1965 [Shelby County v. Holder], ela condenou a medida. “A opinião do Tribunal dificilmente pode ser descrita como um exemplo de tomada de decisão moderada. Muito pelo contrário. Arrogância é uma palavra adequada para a demolição do VRA de hoje. “
“A discriminação eleitoral baseada em raça ainda existe”, ela repreendeu seus pares, novamente lendo seu voto discordante. Desmontar a Lei, ela disse mais tarde, foi “como jogar fora seu guarda-chuva em uma tempestade porque você não vai se molhar. ”
Dias antes de sua morte, Ginsburg ditou uma declaração para sua neta Clara Spera: “Meu desejo mais fervoroso é que eu não seja substituída [na Suprema Corte] até que um novo presidente seja instalado.”
A poucas semanas das eleições, Trump pode tentar atropelar tudo, para nomear com a ajuda do Senado controlado pelos republicanos um substituto para Ginsburg, proveniente daquela fornada de néscios de que já sacou dois anões jurídicos.
O que poderia significar uma Suprema Corte de perfil ainda mais retrógrado e obscurantista. O que só agravará a crise em curso no país. Para a deputada progressista Ayanna Pressley, que homenageou Ginsburg como “uma gigante pela justiça e igualdade”, é hora de transformar “a dor coletiva em ação”. “Não desanime por um momento. Nossa democracia está em jogo”, convocou.
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