Juíza imputa Funai, União e MG por ‘campo de concentração’ na ditadura
A 14ª Vara Federal de Minas Gerais condenou a União, a Fundação Nacional do Índio (Funai) e o governo do Estado de Minas Gerais por atrocidades cometidas contra indígenas em um campo de concentração durante a ditadura militar.
O posicionamento, da juíza Anna Cristina Rocha Gonçalves, da 14ª Vara da Justiça Federal em Belo Horizonte, foi emitido dentro de ação impetrada pelo MPF-MG (Ministério Público Federal em Minas Gerais) em 2015 pedindo a responsabilização do poder público pela construção e manutenção do chamado Reformatório Agrícola Indígena Krenak e pela criação da Guarda Rural Indígena.
A União, a Fundação Nacional do Índio (Funai) e o governo do estado de Minas Gerais foram condenados por violações dos direitos humanos e civis do povo indígena Krenak.
A sentença ainda pede que seja reconhecido em cerimônia pública “graves violações de direitos aos povos indígenas” e determina que também seja feito pedido público de desculpas à etnia Krenak.
A juíza deu prazo de seis meses para que a sentença seja cumprida. Cabe recurso.
Juntamente com o estado de Minas Gerais, o governo federal deverá implementar “ações e iniciativas voltadas ao registro, transmissão e ensino da língua Krenak, de forma a resgatar e preservar a memória e a cultura do referido povo indígena, com a implantação e ampliação do Programa de Educação Escolar Indígena“.
Em 1969, a ditadura já havia criado o Reformatório Agrícola Indígena Krenak, um presídio que chegou a abrigar 94 pessoas de 15 etnias, vindas de 11 estados brasileiros.
“Eles não sabiam por que estavam sendo presos. Alguns eram detidos por causa de bebida ou por terem saído de áreas demarcadas. Não havia julgamento. A tortura era comum. Eles ainda eram obrigados a fazer trabalhos forçados”, disse o procurador.
As investigações do Ministério Público Federal mostraram ainda prática de tortura, violência sexual e trabalhos forçados dentro do reformatório.
Em 1972, homens, mulheres e crianças do povo indígena Krenak foram expulsos de suas terras, na região hoje do município de Resplendor, leste do estado, a 445 km de Belo Horizonte, pelo governo e obrigados a viver confinados na Fazenda Guarani, pertencente à Polícia Militar (PM), em Carmésia, a mais de 300 quilômetros de distância de suas terras.
A medida foi tomada para facilitar a ação de posseiros vizinhos que tomaram os mais de 4 mil hectares dos indígenas.
“Era um campo de concentração. Famílias inteiras ficaram confinadas, presas mesmo, por anos nesta fazenda”, disse o procurador da República Edmundo Antônio Dias, autor da ação que tramitava há seis anos.
Dias comemorou a decisão, que ocorre durante a discussão do marco temporal sobre terras indígenas, que teve votação iniciada no STF (Supremo Tribunal Federal).
“Todo esse passado autoritário inclusive de negação de direitos indígenas se faz presente hoje no nosso país. A discussão do marco temporal, que nada mais faz do que tentar limitar direitos originários dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam, é uma manifestação da nossa história de autoritarismo”, afirmou.
Violência sexual
O Ministério Público Federal (MPF) também pediu a punição do capitão Manoel dos Santos Pinheiro, responsável pelo reformatório na época de sua criação. O órgão reivindicou a perda da patente e da aposentadoria de militar.
Indígenas ouvidos pela Comissão da Verdade relataram abusos cometidos pelo capitão:
“Não tinha juiz, não tinha advogado, não tinha Justiça, não tinha nada. O capitão Pinheiro era quem decidia quem ia para a cadeia e quanto tempo ficava”, disse a indígena Maria Júlia, em depoimento.
“Se um militar queria uma índia, ela tinha que dormir com ele e o marido ficava preso. E isso aconteceu muitas vezes. O próprio capitão Pinheiro vinha de vez em quando na aldeia Krenak e praticava estes atos de violência sexual contra as mulheres”, contou Douglas Krenak, também em depoimento.
A defesa do militar reformado nega as acusações. A juíza entendeu que o pedido de punição do MPF deve ser analisado pela Justiça Militar, mas determinou que ele também é responsável pelas violações dos direitos dos indígenas.
Passo importante
A decisão da Justiça Federal em Minas Gerais manda ainda que a Funai conclua em seis meses a delimitação da Terra Indígena Krenak de Sete Salões. A região, com grutas e pinturas rupestres, é considerada um local sagrado pela etnia.
“Queremos preservar a história de nossos antepassados e também o meio ambiente”, disse Marcos Krenak, cacique da aldeia Nakrehé, uma das oito que a etnia tem na região. A área de Sete Salões se juntaria às terras em que a população Krenak, formada hoje por aproximadamente 500 pessoas, vive atualmente.
O filósofo e líder indígena Ailton Krenak, que foi um dos indígenas obrigados a crescer longe de sua terra natal, considerou a decisão da justiça um passo importante para os povos tradicionais. “O nosso povo perambulou por todas as regiões do país, em outros estados com suas famílias. Todos nós fomos expulsos”, disse Ailton ao portal G1.
“Esta decisão é um passo importante para que as pessoas conheçam como funcionava a prática genocida do povo indígena durante a ditadura. Para nós, este período ainda é muito vivo. Até agora ninguém se retratou. O que há é uma decisão judicial que determina isso. Mas ninguém veio pedir desculpas”, disse Ailton.