O presidente dos EUA, Joe Biden

O chefe da Casa Branca, Joe Biden, fez sua estreia na Assembleia Geral da ONU nesta terça-feira (21), cercado de dúvidas e questionamentos pelo público interno e a comunidade internacional quanto à sua capacidade de fazer com que os Estados Unidos convivam com a nova realidade do mundo. Afinal, não é sempre que um presidente começa seu mandato com uma derrota da dimensão da que Biden sofreu no Afeganistão ou com uma rachadura do tamanho da que se abriu nas relações com um aliado tradicional de grande projeção internacional, como a França.

Por José Reinaldo Carvalho*

Apesar de uma retórica e um temperamento diferentes do seu antecessor, Biden ainda não conseguiu ser convincente quanto aos propósitos pacifistas de sua gestão, nem de que o país está realmente disposto a praticar o multilateralismo, a diplomacia, o diálogo, o compartilhamento de destinos. Os Estados Unidos, seja qual for o chefe de turno, não aceitam que emerge no mundo uma era multipolar.

Tal como seus antecessores, Biden suscita desconfiança, porque afinal não é fácil demonstrar as diferenças essenciais entre a palavra de ordem “América First”, de Trump, e a meta que se propôs de trazer a “América back”. Até porque, sua concepção, presente em todos os pronunciamentos que fez ao longo dos oito meses de exercício do mandato, inclusive neste de estreia na ONU, é condicionada pelo propósito de que seja um retorno à cabeceira da mesa.

Para não deixar dúvidas quanto à importância do fator militar no exercício da hegemonia estadunidense, embora tenha dito que o recurso ao uso da força deve ser o último, o presidente norte-americano não deixou de fazer sua profissão de fé no “compromisso sagrado” com a Otan, a Organização do Tratado do Atlântico Norte, seu braço armado pronto para intervir em qualquer região do mundo.

Biden compareceu ao pódio da 76ª Assembleia Geral da ONU com a missão de pôr fim ao isolamento dos Estados Unidos e apagar a imagem da derrota tão nítida com os acontecimentos em curso no Afeganistão. Tentou aparecer como um líder que combina assertividade na defesa dos interesses da superpotência com a disponibilidade para favorecer soluções conjuntas para os problemas globais.

Proclamou que os Estados Unidos não querem uma nova guerra fria, num recado direto à China, como se partisse do país socialista asiático a rivalidade hostil. Foram os Estados Unidos que a iniciaram, com Trump. São os Estados Unidos que a prosseguem, com Biden, tornando-se fator primordial de tensões na situação mundial. “Não estamos buscando uma nova guerra fria ou um mundo dividido em blocos rígidos”, disse, pontuando ao mesmo tempo que o mundo enfrenta uma escolha entre os “valores democráticos” defendidos pelos Estados Unidos e seus aliados e o menoscabo desses valores por “governos autoritários”. “O futuro pertence àqueles que dão a seu povo a capacidade de respirar livremente, não àqueles que buscam sufocar seu povo com um autoritarismo de mão de ferro”, disse ele. “Os autoritários do mundo procuram proclamar o fim da era da democracia, mas estão errados”, pontificou.

Pelo visto, Biden ainda crê, como todos os presidentes dos Estados Unidos desde que o país se tornou uma superpotência com aspirações ao domínio hegemônico do mundo, em sua vocação para universalizar esses valores, que seriam, segundo sua lógica, vilipendiados por países revolucionários, anti-imperialistas e socialistas. E contra esses países, vale tudo, até porque alguns deles, como a China, teimam em manter e fortalecer seu poder nacional sob a direção do Partido Comunista.

O discurso de que não está em guerra fria com a China foi uma falácia, mais uma demonstração de hipocrisia. As palavras mansas não encobrem a lei de ferro da lógica imperialista nem escondem o ataque direto ao país socialista asiático. Tudo o que Biden falou em termos alusivos foi uma repetição das reiteradas acusações à China: a luta pela “liberdade de navegação”, a “adesão” a leis e tratados internacionais e as referências à disjuntiva entre “democracia e autoritarismo”. A luta contra a China está explícita também na anunciada “Cúpula pela Democracia”, programada para dezembro próximo, um indisfarçável intento para convencer o mundo de que há uma bipolaridade entre nações “democráticas”, lideradas pelos Estados Unidos, e as “autoritárias”, a parte do mundo à qual pertence a China comunista.

Biden reafirmou na ONU a vigência do Build Back Better World ou B3W, uma iniciativa proposta aos países do G7, em junho último, visando a conter a influência estratégica da China, como uma alternativa à iniciativa Um Cinturão, Uma Rota, lançada em 2013 pelo presidente Xi Jinping.

A hipocrisia de Biden se manifesta também quando observamos que ele mantém a guerra comercial contra a China, a guerra tecnológica, a constituição de alianças hostis, militaristas e belicosas, como o Quad (com a Índia, o Japão e a Austrália), e a Aukus (com o Reino Unido e a Austrália), as incursões militares no Mar do Sul da China e o encorajamento ao separatismo de Taiwan e em Xinjiang.

O discurso de Biden soou falso não apenas no quesito Guerra Fria/China, mas também nas proclamações em favor da parceria com os aliados tradicionais dos Estados Unidos no Ocidente. É notável a fúria da França, aliada traída pelo recente pacto de segurança feito por Washington com a Austrália e o Reino Unido que acarretou o cancelamento de uma compra bilionária (US$ 66 bilhões, ou R$ 348 bilhões) de submarinos franceses pelo país da Oceania.

O episódio abalou as relações dos Estados Unidos não apenas com a França, mas com toda a União Europeia, que criticou a “falta de lealdade” do governo Biden. Os líderes do bloco europeu pediram explicações a esse governo no mesmo momento em que se reunia a Assembleia Geral da ONU, onde Biden discursava. O presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, chegou a questionar a vontade do presidente dos Estados Unidos de curar as feridas causadas nas relações entre a superpotência norte-americana e o Velho Continente por Donald Trump.

Por fim, Biden se jactou de que ao se apresentar na 76ª Assembleia Geral da ONU, os EUA não estão em guerra contra nenhum país. Esqueceu-se de completar que não estão em guerra convencional, porque ficou evidente que pretende continuar como o país que comanda golpes, intervenções e guerras híbridas, a julgar pelas alusões que fez à “luta contra a corrupção” e ao seu empenho na defesa e promoção dos direitos humanos, da democracia, da liberdade de religião e direitos LGBTQIA+, mirando países como Cuba, Venezuela, Irã, Belarus e de novo a China, brindando apoio explícito aos separatistas de Xinjiang.

Quanto ao acordo nuclear com o Irã, tergiversou, como tem feito desde o início do seu mandato, ao manifestar o desejo de voltar ao pacto, do qual os EUA se retiraram unilateralmente durante o governo Trump, mas condicionando esse retorno a compromissos adicionais por parte do Irã.

Por todas essas razões, o discurso de Biden conteve mais palavras vazias do que compromissos reais de fortalecimento do multilateralismo. Ele não está tão comprometido com relações pacíficas com outros países, mas com a busca constante da hegemonia.

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*Jornalista, membro do Comitê Central e da Comissão Política Nacional do PCdoB. Secretário Geral do Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz (Cebrapaz).

 

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