José Carlos Ruy: Uma visão conservadora – história como caleidoscópio
Se o pensamento de Foucault tem um débito para com Lévi-Strauss e Althusser, tem também uma grande dívida com Heidegger. Vergílio Ferreira mostrou como o nazista de Freiburg é “o filósofo mais presente” em “As palavras e as coisas”, presença evidenciada desde o uso de expressões de forte sabor heiddegeriano para caracterizar a história, até concepções fundamentais para o raciocínio que desenvolve. Ele diz por exemplo que no século 18 a consciência da história surgiu por que “o homem se achou vazio de história”, que se entregou a “reencontrar no fundo de si” (Foucault: s/d).
Por José Carlos Ruy*
A sombra de Heidegger se manifesta através dos sinais distribuídos ao longo do texto. Um deles, indicado por Vergílio Ferreira, é o uso de expressões como “vazio”, ou “inacessível reserva” do mundo objetivo encarado como fugidio ao conhecimento. É também de coloração heideggeriana a ideia da manifestação “inefável que se ouve sem se poder dizer”, própria do “ser”. Isto é, como o deus dos crentes, o “ser” fala à intuição, ao sentimento, ao coração, mas não pode ser expresso pela razão. Sua fala pode ser “sentida”, mas não dita.
Essa tese repercute, diz Ferreira, na concepção de “sistema”, que Foucault vê como profundo e inacessível e que, como em qualquer saber iniciático, só sussurra aos ouvidos daqueles que o sabem ouvir (Foucault: s/d).
O historiador Paul Veyne arrolou ideias como estas num livro muito usado na universidade, principalmente entre historiadores, cujo foco é a chamada micro-história, a história das mentalidades, ou do cotidiano (Veyne: 1998).
Veyne recusa a possibilidade de conhecimento objetivo da história. Pensa que, como totalidade, “a História escapa-nos e, como entrecruzamento de séries, ela é um caos semelhante à agitação de uma grande cidade vista de um avião”.
Por esta razão, diz ele, só se pode ter dela um conhecimento parcial, nunca completo. A totalidade engloba “tudo que se passa”.
Em consequência, sua visão completa seria impossível e “somente Deus, se é que ele existe, que vê uma pirâmide sob todos os seus ângulos ao mesmo tempo, pode contemplar a História ‘como uma mesma cidade vista de diferentes lados’” (Veyne, 1998).
Veyne reduz a história a um gênero literário – um “conto, uma narração, mas ‘um conto de acontecimentos verdadeiros’. Ela se interessa por uma forma particular de singularidade, de individualidade, que é o específico: ‘A história interessa-se por acontecimentos individualizados dos quais nenhum é a inútil repetição do outro, mas não é a sua individualidade enquanto tal que a interessa: ela procura compreendê-los, isto é, reencontrar neles uma espécie de generalidade ou mais precisamente de especificidade’. E ainda: ‘A história é a descrição do que é específico, isto é, compreensível, nos acontecimentos humanos’. A história assemelha-se então a um romance. É feita de intrigas” (Veyne: 1971).
É uma opinião semelhante à do ex-marxista grego Cornelius Castoriadis para quem “o que está no coração de toda formação social-histórica” nada mais é do que “um magma de significações imaginárias sociais, em e pelas quais se organiza e organiza seu mundo”.
Esta formulação revela o idealismo de Castoriadis e sua ênfase no discurso, no imaginário e na ideia. Assim, o “objeto social-histórico não pode absolutamente ser apreendido como coisa, sujeito ou conceito” (Castoriadis: 1985).
É preciso “renunciar a fazer da história uma ciência”, pretende Veyne, para quem “não existem leis na história”. (Veyne: 1971, 1998). Ele comete o engano de quem vê a história não desde o presente, mas fixada no passado, sem compreendê-la como o processo ininterrupto da experiência humana que liga passado, presente e futuro num fluxo contínuo.
A história é o que foi, o que aconteceu, é o fluxo dos fatos da vida humana; o esforço permanente para resolver as contradições vividas pelos homens; é também o relato destes acontecimentos e do caminho percorrido do passado ao presente, a este presente concreto, vivido, e não outro, possível, imaginário. Só se pode compreender isso rompendo com o imobilismo que fixa no passado o objeto da história e seu conhecimento, como um aqui-agora interminável, como ocorre em interpretações conservadoras, como as de Nietzsche e Heidegger. E entendendo que a história é, fundamentalmente, um processo que só pode ser compreendido a partir do presente e de suas contradições.
Veyne não vê assim. Sua ideia de ciência padece do mesmo reducionismo do paradigma baseado na física a partir das ideias de Galileo Galileu, Isaac Newton e René Descartes, e que existe há quatro séculos.
Método que implica na observação de acontecimentos repetíveis, previsíveis e verificáveis diretamente.
Se a história chegasse a constituir, diz Veyne, “uma ordem de fatos que, pelo menos de maneira geral, comanda outros fatos”, como a geologia ou a astronomia, ela se tornaria uma ciência, permitindo “intervenção, ou pelo menos, previsão”. Mas, pensa, não é o que ocorre, e os homens permanecem presos a contextos e determinações que não dominam e sobre as quais não podem agir, e sofrem passivamente seus efeitos.
Este é o segredo e o fundamento irracionalista da posição de Veyne. Outro aspecto empobrecedor de seu pensamento aparece na defesa de que o essencial para a história não é o tempo mas a especificidade, a singularidade, o particular e não o geral ou o universal – esta é, aliás, uma das monótonas marcas daqueles que não reconhecem o caráter científico da história. Ao recusar o tempo, o processo, o continuum, ele vê apenas uma das dimensões da história, o relato de experiências desconectadas da linha geral do desenvolvimento. Aliás, Veyne só entende processo como série, numa visão neopositivista (“um acontecimento só tem sentido dentro de uma série”, escreveu) que alinha fatos imutáveis como as contas de um colar, com frágil relação entre si e que só estão juntas porque o escritor as uniu pelo fio arbitrário de sua narrativa, e não pela demonstração de uma necessidade própria ao desenvolvimento concreto e real. O que liga estas contas é algo externo, alheio, a elas, que não faz parte de sua existência ou da experiência a que estão ligadas. Elas se relacionam aleatoriamente como as peças coloridas de um “caleidoscópio” (Veyne, 1998).
Referências
Castoriadis, Cornelius. “A experiência do movimento operário.” São Paulo, Editora Brasiliense, 1985.
Foucault, Michel. “As palavras e as coisas.” São Paulo, Livraria Martins Editora, s/d.
Veyne, Paul. “Como se escreve a história; Foucault revoluciona a história”. Brasília, Editora UnB, 1998
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