José Carlos Ruy: Michel Foucault, a história como reino de perdição
Uma inovação introduzida por Michel Foucault diz respeito diretamente ao ofício do historiador, e está ligada à maneira como os documentos históricos são tradicionalmente tratados. Ele deixa de vê-los como monumentos do passado que permitem decifrar as marcas deixadas pelos homens e “reconhecer em negativo o que eles tinham sido”, num “amálgama de elementos que têm de ser isolados, agrupados, tornados eficazes, postos em relação, integrados em conjuntos”, diz o historiador Jacques Le Goff (1984).
Por José Carlos Ruy*
A renovação feita por Foucault contém, diz Le Goff, elementos que “caracterizam uma visão de mundo conservadora, presente na noção de descontinuidade, enfatizada por Foucault”, além da “perda de consistência da possibilidade de uma história global”. (Le Goff: 1984).
São traços que se manifestam também no rompimento com “racionalismos constantemente renascentes”, reduzindo a história a “uma genealogia nietscheniana”, longe da vocação empirista tradicionalmente atribuída a ela, diz Paul Veyne (1998), um historiador influenciado por Foucault, cujo interesse principal, escreveu Veyne, “não são os séculos, os povos e as civilizações, mas as práticas; as intrigas que ela conta são a história das práticas em que os homens viram verdades e reconheceram as suas lutas em torno dessas verdades” (Veyne, cit. in Le Goff: 1984; Veyne: 1998).
Foucault proclamou a “morte do homem” – portanto não há sujeito em sua visão da história. E também não há processo histórico – ele teorizou a descontinuidade na história. Ao contrário, ele deu status filosófico, à moda de Heidegger, para a noção de estrutura, absorvida de Lévi-Strauss, vestindo-a com a roupagem de um “sistema” opaco, inacessível ao conhecimento e à margem da experiência humana concreta.
No ensaio introdutório à edição portuguesa de “As palavras e as coisas”, Vergílio Ferreira lembrou a frase onde Foucault afirma não ser “o sujeito que pensa mas o Sistema por ele”. (Foucault: s/d). “Sistema” definido como o “conjunto de relações que se mantêm, se transformam independentemente das coisas que essas relações religam” (Foucault: s/d), sendo anterior e alheia a toda atividade prática humana. “Sistema” de existência tão fantasmagórica quanto o “ser” de Heidegger, a “estrutura” de Lévi-Strauss e Althusser, e outras criações igualmente arbitrárias. Nesse sentido, Foucault considerou que é um “grande sonho” toda história que leve em conta a causalidade (as relações de causa e efeito) e que tenha a ambição de entender as origens. Opõe a ela a concepção que aprendeu pela leitura de Nietzsche e valoriza um presente contínuo onde os acontecimentos se relacionam repetindo uma mesma gramática de origem inacessível ao conhecimento objetivo. Gramática que estende aos demais domínios do conhecimento, ao “estudo das economias, a história das literaturas e das gramáticas, numa palavra, a evolução do ser vivo”, sendo uma “historicidade descoberta primeiramente no homem”. Isto é, uma historicidade que só está presente na consciência e no pensamento – primeiro na ideia, da qual decorre, para ele, como idealista que é, o mundo real e objetivo.
As estruturas da linguagem, disse numa entrevista de 1967, “dão forma à ordem das coisas” (Foucault: 2008). O fundamento principal é o discurso, o pensamento, a linguagem. É pelo discurso que tudo se define; a ideia está na origem de tudo; é a partir dela que tudo se organiza. O próprio tempo seria uma realidade subjetiva. “O homem não é, ele próprio, histórico” pois o tempo procede dele próprio (Foucault: s/d). Ao contrário do processo real e concreto da evolução do homem, ele fantasiou e escreveu ter sido o “discurso” que permitiu ao homem evoluir, inventar formas de produção; estabilizar, prolongar ou abreviar “a validade das leis econômicas pela consciência” e “pelas instituições que dispõe” a partir dela ou em torno dela. E que, pela linguagem e as palavras, faz uma pressão e o homem, insensivelmente, desliza “sobre si próprio em cada instante do tempo”. Neste ponto surge a história que concerne “ao próprio ser do homem”, e dela decorre uma história da vida humana, da economia, das linguagens. (Foucault: s/d).
Além de só estar na ideia, de partir da mente, essa história é marcada por um relativismo absoluto, com foco no singular e no particular, rejeitando o universal, a generalização. Quando tenta alcançar a “esfera da universalidade”, a história trai, diz ele, “os enigmas do seu nascimento histórico” e surge através dela “a história de que ela própria faz parte”. Ao contrário, se “aceita a sua relatividade” e “mergulha no movimento que é comum ao que ela conta”, tendendo “à exiguidade da narrativa”, todo o “conteúdo positivo de que se assenhoreara através de todas as ciências se dissipa” (Foucault: s/d).
Eis a má dialética dos dois sentidos da palavra história – o desenrolar dos acontecimentos através dos tempos, e também o relato escrito sobre esse desenrolar, a historiografia. Quando o historiador “abusa da esfera da universalidade”, assegura ele, seu escrito fica “contaminado” pelo fluxo da história da qual ele próprio faz parte, acusa Foucault, repetindo a farsa de que as conclusões estão ca mente do pesquisador antes de serem atribuídas ao mundo objetivo pela investigação, que põe no mundo aquilo que está na cabeça do historiador. E daquela maneira esse relato deixaria de ser ciência para ser um eco da própria história em que o narrador está inserido – eis a visível influência de Althusser.
O abandono do caráter científico da história e demais ciências sociais é reforçado quando Foucault se refere à “ilusão doxológica” que ocorre, diz, quando o historiador “se faz valer da descrição como análise das condições de existência de uma ciência”.
Doxologia é uma palavra de origem grega que indica o estudo das opiniões. Ao usá-la, Foucault quer dizer que a história e os estudos do homem e da sociedade não passam de coleções de opiniões condicionadas pelas “divergências de interesses ou de hábitos mentais dos indivíduos” (isto é, a ideologia), sendo “a irrupção do não científico (do psicológico, do político, do social, do religioso) no domínio específico da ciência”. (Foucault: 2008).
Nesse sentido, em um ensaio muito influente (“Nietzsche, a genealogia, a história”, de 1971) ele disse que a genealogia não busca as origens pois considera “inacessíveis todos os episódios da história”; por isso, ela se detém no singular, no particular, no individual, “nas meticulosidades e nos acasos dos começos”, diz. “O genealogista tem necessidade da história para conjurar a ilusão da origem”; ele “não pretende recuar no tempo para estabelecer uma grande continuidade” (Foucault: 2008). E enfatiza a opção pelo pontual e episódico, contra a visão de um processo que se desdobra ao longo do tempo e tende “a dissolver o acontecimento singular em uma continuidade ideal”. Opõe esta visão àquilo que chama de história “efetiva”, movida por forças que “não obedecem nem a uma destinação nem a uma mecânica, mas ao acaso da luta”, fazendo surgir o acontecimento “no que ele pode ter de único e agudo”. (Foucault: 1979).
Não há nem intenção original nem resultado final a ser atingido, mas somente o “aleatório singular do acontecimento”, num reino onde – como Nietzsche já havia dito -, não há providência ou causa final, “mas somente a mão de ferro da necessidade que sacode o copo de dados do acaso”. Assim, assegura Foucault, a história é um reino de perdição: “o verdadeiro sentido histórico reconhece que vivemos, sem referências nem coordenadas originárias, em miríades de acontecimentos perdidos”. (Foucault: 2008; Nietzsche: 2007).
Aparentemente esta noção se aproxima de uma visão materialista. Em sua a superfície, não admite teleologia nem plano pré-estabelecido (“intenção original”) ou um rumo pré-determinado (“causa final”). Mas é uma semelhança superficial, que se desfaz na oposição ao materialismo dialético e supõe um acaso absoluto, aleatório, que governa a história que, à maneira de Nietzsche, flui “sem lei” nem tendências, à margem da experiência prática dos homens. Nessa concepção a práxis se dilui e se dissipa em “miríades de acontecimentos” que não podem ser compreendidos nem conhecidos pois são “perdidos”.
Referências
- Foucault, Michel. “As palavras e as coisas”. São Paulo, Martins Fontes, s/d.
- Foucault, Michel. “Microfísica do poder.” Rio de Janeiro, Edições Graal, 1979.
- Foucault, Michel. “Arqueologia das Ciências e História dos Sistemas de Representação”. Organização e seleção de textos: Manuel Barros da Motta. São Paulo, Forense Universitária, 2008.
- Le Goff, Jacques. Verbetes “História” e “Progresso/Reação”. In Enciclopédia Einaudi – vol. 1 – Memória-História. Porto, Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 1984
- Nietzsche, Friedrich. “Aurora”. São Paulo, Editora Scala, 2007, § 130.
- Veyne, Paul. “Como se escreve a história; Foucault revoluciona a história“. Brasília, Editora UnB, 1998
__
José Carlos Ruy é jornalista, escritor, estudioso de história e do pensamento marxista.
As opiniões aqui expostas não refletem necessariamente a opinião do Portal PCdoB