Santo Agostinho

A concepção providencialista da história continuava sendo mística e sem espaço para a intervenção humana em seu curso. Mesmo assim foi um passo adiante ao permitir o estudo do processo histórico e de sua lógica pois, sendo encarado como parte dos desígnios de Deus, estudar a história seria semelhante a examinar os mistérios da mente divina.

Por José Carlos Ruy*

Assim, a visão providencialista cristã resultou de uma ruptura, “uma revolução na mentalidade histórica”, diz Le Goff. “O cristianismo teria substituído as concepções antigas de um tempo circular, pela noção de um tempo linear e teria orientado a história, dando-lhe um sentido” (Le Goff: 1984).

Santo Agostinho, que escreveu sua “Cidade de Deus” em 413 d.C., sistematizou a concepção da história baseada na providência divina. Foi o pioneiro de uma teoria cuja influência seria secular, chegando ao nosso tempo. Seu pressuposto era que Deus não deixou “os reinos dos homens, seu domínio e sua servidão, fora das leis de sua providência” (Agostinho: 1952).

É preciso reconhecer que há um progresso nesta forma de ver. Esse progresso consiste no fato de que, nela, a história deixa de ser o domínio de forças inacessíveis à compreensão humana. A história passa a ter um sentido, embora místico e subordinado aos desígnios divinos sendo, portanto, sobrenaturais.

Este progresso consiste em que o estudo da história pode, desde então, ser organizado segundo critérios conhecidos por todos os que o estudam, que podem aceitá-los ou refutá-los. Estabelece uma base que permite tirar a história do domínio das arbitrariedades conceituais ou da camisa de força dos ciclos imutáveis, dando os primeiros embora débeis passos para sua compreensão como ciência. Esse progresso se traduziu no rompimento com a circularidade de um movimento que volta sempre ao ponto de partida e, assim, nunca sai do lugar nem avança. Foi um progresso limitado pela noção da existência de um rumo pré-estabelecido, teleológico, externo ao movimento concreto da história e da experiência humana real.

Ao permitir a busca de um sentido para a história, a noção providencialista cristã deu origem também à tese da necessidade histórica como um conjunto de desdobramentos necessários e inevitáveis que decorrem de um plano prévio que a orientaria. Esta é uma limitação do providencialismo, que preconiza a existência daquele plano prévio, definido à margem da experiência concreta dos homens, sem espaço para a contingência ou o acaso, nem para a intervenção humana consciente no desenrolar da história.

Além disso, a história é vista como orientada para um fim definido, o Juízo Final, que instalaria na Terra o reino de deus. O processo histórico deveria percorrer as etapas previstas naquele plano fixado pela mente divina, onde cada acontecimento estaria rigorosamente determinado desde a origem dos tempos, sendo seu sentido revelado pelo objetivo final a ser alcançado pelo processo histórico assim compreendido.

O providencialismo cristão teve largo curso na tradição europeia, mesclando-se à ideia de progresso que se firmou ao longo do século 18, na luta da burguesia ascendente contra a aristocracia e o feudalismo.

A palavra progresso significava, para os iluministas – os pensadores avançados do século 18 – o alcance da igualdade jurídica entre os homens; era a emancipação ante as imposições da religião e dos preconceitos. Emancipação decorrente da conquista de condições sociais e históricas em que existam as relações contratuais requeridas pelo modo de produção capitalista, que pressupõem a liberdade dos homens e sua igualdade perante a lei, que Kant viu como a superação da menoridade entre os homens. E Gramsci compreendeu como “uma ideologia democrática, que serviu para a formação dos modernos estados constitucionais”. E os ataques contra ela, no século 20, “são muito interessados e tendenciosos” (Gramsci: 1991, 2001, 2002).

Referências

  • Agostinho (santo). The “City of God”. In “Great Books of the Western World”, vol. 18. Chicago, Encyclopaedia Britannica Inc, 1952.
  • Goff, Jacques Le, “História”, verbete à Enciclopédia Einaudi, v. 1, “Memória-História”, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Porto, 1984
  • Gramsci, Antônio. “Cadernos do cárcere”, vol. 3: “Maquiavel – notas sobre o estado e a política”. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 2002 (É recomendável ler o vol. 1 dos “Cadernos do Cárcere”, onde está a “Introdução ao estudo da filosofia”. A edição brasileira dos “Cadernos”, publicada em 6 volumes pela Civilização Brasileira, é primorosa e merece ser estudada).
  • Gramsci, Antonio. “Cadernos do Cárcere”. Volume 3 (“Caderno” 13). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
  • Gramsci, Antonio. “Concepção dialética da história”. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991.

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José Carlos Ruy* é jornalista, escritor, estudioso de história e do pensamento marxista.

 

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