José Carlos Ruy: As lutas do povo brasileiro
A história brasileira tem sido, desde o desembarque dos portugueses nesta parte do mundo, a crônica de uma resistência sem fim pela liberdade, contra a escravização, pela liberação da terra, contra a opressão.
Por José Carlos Ruy (*)
Amigos, inicio aqui uma tentativa de resumir a história das lutas do povo brasileiro. Este artigo inicial é a apresentação de uma sucessão de textos nos quais tentarei, a partir de velhas notas de pesquisa, resumir alguns dos mais notáveis episódios da luta de classes no Brasil.
Estes textos devem ser vistos como aquilo que são: apenas uma apresentação das lutas do povo brasileiro. Uma história completa e acabada com rigor é tarefa para um escritor, um historiador jovem, que possa dedicar tempo ao domínio da bibliografia e, a partir daí, produzir uma história que atenda às exigências referidas na série terminada recentemente. Esta é uma tentativa, submetida à leitura rigorosa dos amigos.
Apresentação
Muita gente gosta de repetir o jargão conservador de que os brasileiros são um povo pacífico, que não luta e aceita a opressão quase sem se rebelar. Esta mentira, repetida por escritores e ideólogos conservadores, e pela mídia patronal, não corresponde à verdade histórica, não resiste ao exame da história a partir de um ponto de vista popular.
De acordo com o grande historiador José Honório Rodrigues, a história do Império teria sido a crônica de uma guerrilha permanente. Ele poderia ter ampliado esta avaliação para toda a história brasileira, que tem sido, desde o desembarque dos portugueses nesta parte do mundo, a crônica de uma resistência sem fim pela liberdade, contra a escravização, pela liberação da terra, contra a opressão.
A história das lutas sociais no Brasil demonstra de forma inequívoca a falsidade das teses que atribuem ao povo brasileiro uma “índole pacífica”. Como todos os povos, de todos os lugares, o povo brasileiro defendeu-se, muitas vezes de armas na mão, contra os opressores.
Neste texto é feito um levantamento sumário das lutas mais importantes, desde a resistência dos habitantes originários à conquista portuguesa e dos negros à escravização, até a luta de classes característica dos tempos modernos.
Tamoio e Xavante
A conquista portuguesa do Brasil enfrentou poderosa e decidida resistência armada por parte dos ocupantes originários da terra. Os pontos altos dessa resistência foram a “Confederação dos Tamoio” (1554-55 a 1567), entre São Paulo e o Espírito Santo, ou a “Confederação dos Janduim” (conhecida também como “Guerra dos Bárbaros“, de 1683 a 1710), no sertão do Nordeste.
Ao lado dessas grandes insurreições indígenas, ocorreram ações menores, constantes em toda a história do Brasil. Na primeiras décadas do século XX, os Xavante tornaram-se célebres por sua ousada resistência à ocupação das terras do Brasil Central. E hoje, na Amazônia, são escritas talvez as páginas mais recentes dessa resistência heroica e desesperada. Basta ler os jornais e acompanhar seu desenrolar.
Revoltas escravas
Desde os primeiros momentos da escravidão no Brasil os negros lutaram contra o estatuto que os oprimia. Essa luta assumiu a forma de fugas para as matas, com a formação de quilombos; guerrilhas; insurreições urbanas; revoltas urbanas organizadas para a tomada do poder; e a participação em movimentos políticos conduzidos por outras camadas sociais.
O quilombo de Palmares é a manifestação mais marcante dessa luta. Já nos fins do século 16 há notícias, na Serra da Barriga, de quilombos formados por negros que escaparam dos engenhos de açúcar na região dos atuais estados de Alagoas e Pernambuco. O quilombo cresceu a partir de 1630, ocupando uma área de mais ou menos 60 léguas, abrigando cerca de 25 mil moradores – uma população imensa para a época. Em 1694, comandada por Domingos Jorge Velho, a maior força armada jamais vista em todo o período colonial destruiu o quilombo, depois de quase um século de resistência.
Quilombos existiram por todo o tempo em que durou a escravidão. Em 1759, Bartolomeu Bueno do Prado destruiu o quilombo de Campo Grande, em Minas Gerais e Goiás. Por volta de 1770, formou-se o quilombo da Carlota, em Mato Grosso. E, no Maranhão, o quilombo do Preto Cosme ficou famoso por sua participação na Balaiada (1838/1843).
As insurreições armadas urbanas e as revoltas organizadas para tomar o poder tem, entretanto, alcance social mais profundo, e ocorreram também em todo o território nacional. As mais conhecidas compõem a série de revoltas urbanas ocorridas em Salvador (Bahia) em 1807, 1808, 1809, 1813, 1814, 1822, 1823, 1826, 1827, 1830, 1835 e 1844.
A mais importante entre estas foi a de 1835 – com um planejamento meticuloso e envolvendo todos os escravos do Recôncavo, teve seu início precipitado por uma delação. Na prisão, alguns deram exemplo de grande dignidade, como o nagô Henrique que, sob tortura, e já com as primeiras contrações do tétano que o mataria, recusava-se a delatar seus companheiros afirmando que “não dizia mais nada porque não é gente de dizer duas coisas, e o que disse está dito até morrer”.
As lutas pela independência
As primeiras manifestações de uma dinâmica autônoma frente aos interesses coloniais ocorrem na luta contra os holandeses que, em 1624, atacam Salvador, (BA), cuja população fugiu para o interior. Dom Marcos Teixeira, bispo da cidade, organizou a resistência para expulsar os invasores. Em 1630, os holandeses ocuparam Pernambuco e em seguida uma faixa do território entre Alagoas e o Rio Grande do Norte. Quando a exploração holandesa mexeu com os interesses dos grandes proprietários rurais, eles mobilizaram todas as forças sociais da Colônia – clero, camadas pobres, índios e até mesmo os negros – e, em 1654, forçaram os holandeses a assinar a rendição.
Nos últimos anos do século 18 houve várias conspirações pela independência, como as Inconfidências Mineira (1789), do Rio de Janeiro (1794), e a Revolução dos Alfaiates (1798), liderada por soldados e alfaiates negros de Salvador, e envolvendo padres, profissionais liberais, funcionários públicos, oficiais das milícias, sapateiros, pedreiros, além de muitos escravos.
Em 1817, comerciantes brasileiros, grandes proprietários, parte do clero e pobres sem acesso à terra instalaram em Recife (Pernambuco) o primeiro governo nacional brasileiro, abrangendo Pernambuco, Alagoas, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. A falta de coesão política entre os dirigentes (causada por divergências sobre a abolição da escravidão e a mobilização do povo em defesa da revolução) tornou o novo governo muito frágil. Em maio de 1817, tropas portuguesas desembarcaram em Recife, os revolucionários saíram para o interior e o sonho de independência teve fim.
Mas serviu, contudo, para mostrar que o jugo português tinha seus dias contados. Em junho de 1822, os liberais baianos iniciaram no interior um movimento contra as tropas portuguesas. A luta durou até julho de 1823, com a expulsão do colonizador. No Piauí e no Maranhão, a luta contra o domínio português foi até março de 1823.
rebeliões coloniais
Os levantes da Regência
As lutas entre nacionalistas e portugueses marcaram todo o primeiro reinado. Em 1823, D. Pedro I dissolveu a Assembleia Constituinte, atribuindo-se poderes absolutos. Os liberais em Pernambuco não aceitaram a Constituição outorgada e, com apoio da Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará e Piauí, proclamaram a Confederação do Equador, em 1824.
Em 1831, um levante popular no Rio de Janeiro. com apoio da tropa, obrigou Pedro I a abdicar, abrindo-se assim o período agitado da Regência, com revoltas em diversas províncias: a Setembrada, no Maranhão, a Novembrada e a Abrilada, em Pernambuco, as Revoltas Federalistas, na Bahia, a Guerra dos Cabanos (1832 a 1835) nos sertões de Alagoas e Pernambuco. Em 1835, houve uma revolta em Ouro Preto, Minas Gerais; em, 1834-35, a Carneirada, em Pernambuco; em 1837, a Sabinada tentou instaurar uma república independente na Bahia. No Rio Grande do Sul, a Revolução Farroupilha instaurou uma república independente que durou de 1835 a 1845. Ocorreram também a Cabanagem (1835-1840), no Pará, onde pela primeira vez as camadas populares conquistaram e mantiveram o poder por longo espaço de tempo. Em 1838, houve a Balaiada, no Maranhão, reprimida por Caxias com apoio dos liberais que, tendo aderido à revolta, foram anistiados pelo mesmo repressor com a condição de aderirem à luta contra camponeses e ex-escravos, que haviam sido seus aliados. Em 1842, houve a Revolução Liberal, em São Paulo e Minas Gerais, também reprimida por Caxias. E, de 1848 a 1850, houve a Revolução Praieira, em Pernambuco, um movimento democrático e anti-latifundiário, com grande apoio popular.
Guerras camponesas
Entre os movimentos armados dos camponeses, destacam-se por sua extensão e capacidade de resistência às investidas das forças repressoras as revoltas dos Mucker (RS), Canudos (BA) e a Guerra do Contestado (SC).
Os colonos alemães de São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, espoliados pelos comerciantes locais e pela especuladores de terras, juntaram-se num movimento que ficou conhecido como Mucker. Em 1874, após perseguições e humilhações, passaram a incendiar as propriedades de seus opressores. A força policial do Rio Grande do Sul e a Guarda Nacional foram insuficientes para reprimir o movimento e um batalhão do Exército foi mobilizado, sob o comando o general Genuíno Olympio de Sampaio, que morreu em combate. Após uma batalha onde os Mucker foram vitoriosos, o batalhão foi reforçado por soldados e canhões e, em agosto de 1874, os revoltosos foram pura e simplesmente massacrados.
Guerra de Canudos – Flavio de Barros/Museu da República
A guerra sertaneja de Canudos teve proporções amplas. No sertão baiano, cerca de 25 mil pessoas juntaram-se em torno de Antônio Conselheiro, fixando-se no arraial de Canudos, que foi atacado, em 1896, pela polícia baiana, que foi derrotada e repelida. Mais tarde, com reforço do governo federal, a polícia atacou novamente, sendo derrotada outra vez. Canudos transformou-se, então, num caso nacional, sendo considerado uma ameaça à República. Em 1897, uma tropa do Exército foi derrotada pelos sertanejos. A seguir, foram enviados dois regimentos de infantaria, um batalhão da polícia estadual, um esquadrão de cavalaria e uma bateria de artilharia ligeira, sob o comando do coronel Moreira César. O coronel morreu em combate, e a tropa debandou. Ainda nesse ano, outra expedição, comandada pelo general Oscar de Andrade Guimarães, com canhões, farta munição e quase 5 mil soldados, cercou Canudos, cuja população foi aniquilada. O cadáver de Antônio Conselheiro foi desenterrado, e sua cabeça decepada e levada a Salvador como troféu.
Outra grande revolta sertaneja foi a Guerra Santa do Contestado, de 1912 a 1915, numa área extensa na fronteira entre o Paraná e Santa Catarina. Utilizando táticas de guerrilhas os rebeldes, que várias vezes foram dados como vencidos pela repressão, reorganizavam-se em locais diferentes, continuando a luta até que, em 1915, se dispersaram.
Movimentos modernos – da Revolta da Armada à Guerrilha do Araguaia
Depois da proclamação da República, em 1889, ocorreram a Revolta da Armada e a Revolução Federalista, no Rio Grande do Sul (de 1893 a 1895). Esses movimentos, fortemente suspeitos de simpatias pela monarquia, foram reprimidos de forma sangrenta pelo governo de Floriano Peixoto. Em 1910, houve a revolta da Chibata, liderada por Francisco Dias e João Cândido, contra o código disciplinar da Armada, que previa castigos físicos. Os marinheiros manobraram os navios mais importantes e modernos da Marinha de Guerra e ameaçaram bombardear o Rio de Janeiro caso não fossem atendidos.
João Cândido
Em julho de 1922, o levante do Forte de Copacabana marcou o início do Movimento Tenentista, que se desenvolveu durante toda a década, ocorrendo levantes militares em vários estados.
Em 1926, os remanescentes dos levantes tenentistas em São Paulo e Rio Grande do Sul formaram a Coluna Prestes, comandada por Luís Carlos Prestes e Miguel Costa. A Coluna percorreu 36 mil quilômetros pelo interior do Brasil, enfrentando tropas federais e estaduais e, em 1927, internou-se na Bolívia.
Os tenentes tiveram uma participação importante no movimento que, em outubro de 1930, colocou um ponto final na República Velha. Depois de 1930, entretanto, os tenentes dividiram-se. Uns aderiram ao governo Vargas, enquanto outros se tornaram fascistas ou adotaram posições socialistas. Depois de 1934, frente a essas divisões, o movimento desarticulou-se.
Em 1935, sindicatos, políticos independentes, tenentes e comunistas fundam a Aliança Nacional Libertadora, uma frente única cuja presidência coube a Luís Carlos Prestes. Com um programa nacionalista e anti-latifundiário a ANL foi fechada pelo governo meses após sua fundação. Em novembro de 1935, ocorreu o levante armado da ANL, em Natal, Recife e Rio de Janeiro, prontamente derrotado pelo governo. Essa derrota foi seguida por prisões em massa, torturas e assassinatos políticos.
Cartaz em homenagem aos mortos e desaparecidos na Guerrilha do Araguaia – Reprodução
Cartaz em homenagem aos mortos e desaparecidos na Guerrilha do Araguaia – Reprodução
Assassinatos políticos e repressão sangrenta que se repetiram no combate à Guerrilha do Araguaia, que foi dirigida pelo Partido Comunista do Brasil nas matas do Sul do Pará, entre 1967 e 1974. Os lutadores, que se levantaram contra a ditadura militar de 1964 e pretendiam organizar e preparar o povo para essa luta, foram dizimados pelo Exército, que mobilizou contra os guerrilheiros mais soldados que o contingente que, na Segunda Grande Guerra, combateu na Itália. E tinha ordens expressas para não deixar nenhum vivo – cerca de 70 guerrilheiros e moradores da região que aderiram à luta foram mortos pela repressão.
(*) José Carlos Ruy é jornalista, escritor, estudioso de história e do pensamento marxista.
As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal PCdoB
(BL)