O músico morreu no sábado aos 88 anos.

Um violão, uma voz, um homem, um gênio, uma revolução que levaria toda a pujança da musicalidade brasileira a um outro patamar. Como hoje, nesse domingo 7 de julho que amanheceu sem João Gilberto, vários falam e escrevem: a Música Brasileira é o antes e o depois de João Gilberto.
O João considerado o pai da Bossa Nova, que, dizem algumas biografias, refutava o título e dizia: “o que eu faço é samba”, foi um obstinado ourives, capaz de passar dias ou meses lapidando uma música, o som, a perfeita união entre o violão e a voz, ritmo, acordes, harmonias, melodias e silêncios.
Não à toa, sua frase: “Não se pode machucar o silêncio, que é sagrado”.
Apontado por Luiz Tatit, no livro “O Cancionista”, como um “recompositor”, que apesar do pequeno número de obras autorais, com sua genialidade transformava o belo em algo mais belo ainda, uma música conhecida em uma surpresa de novos acabamentos e injunções, de comedimento, elegância e pureza de sons. Assim, também gostava de dizer: “há tanta coisa bonita a ser consertada”.
Da influência do jazz na Bossa Nova, é o que muito se fala, mas toda a criação de João Gilberto foi fortemente influenciada pelas canções que ouvia quando menino em sua terra natal Juazeiro, no Sertão Nordestino, às margens do Rio São Francisco; depois em Aracaju e Salvador, antes de aportar no Rio de Janeiro e criar a tal nova batida do violão e sutileza de voz que dariam uma nova dimensão ao samba. Uma modernidade, no melhor sentido da palavra, que alçou voo e ganhou o mundo.
Afirmava publicamente a influência de Orlando Silva em sua carreira, principalmente na divisão rítmica do canto, e o considerava “o maior cantor do mundo”. No violão, apontava Dorival Caymmi.
Herivelto Martins, Noel Rosa, Lamartine Babo, Geraldo Pereira, Ary Barroso, Bororó e o próprio Caymmi estão entre os compositores que marcaram sua trajetória e que tiveram algumas de suas canções regravadas e buriladas por ele com sua marca inigualável.
A primeira gravação do que viria a ser a Bossa Nova apareceu no disco que Elizeth Cardoso lançou em 1958, “Canção do Amor Demais”, com músicas de Tom Jobim e Vinícius de Moraes e que tinha João Gilberto acompanhando Elizeth ao violão nas faixas “Chega de Saudade” e “Outra Vez”, introduzindo o que ficou conhecido como a “batida da Bossa Nova”.
O LP é considerado um marco da música popular brasileira. Mas o que viria a se consolidar como o fundador da Bossa Nova foi um compacto lançado por João Gilberto no mesmo ano, com as músicas “Chega de Saudade” e “Bim Bom”.
Com arranjos de Tom Jobim e participação de orquestra, o disco trazia a inovação, a pedido de João, de dois microfones na gravação, um para a voz e outro para o violão, ressaltando assim a harmonia. O disco foi um sucesso, estouro de vendas e primeiro lugar nas rádios.
Na apresentação do disco, o texto de Tom Jobim, na contracapa, já dizia da sua importância: “Em pouquíssimo tempo, João influenciou toda uma geração de arranjadores, guitarristas, músicos e cantores”.
Outro disco, contendo “Desafinado”, de Tom Jobim e Newton Mendonça, e “Hô-bá-lá-lá”, de sua autoria, foi lançado em 1959, seguido do LP “Chega de Saudade”, que também alcança enorme sucesso de vendas.
Nos anos seguintes, junto com “Chega de saudade”, de 59, João Gilberto lança os discos em que a Bossa Nova extrapola as fronteiras do país, e começa a projetar a música brasileira além mares, principalmente nos Estados Unidos e Europa: “O amor, o sorriso e a flor” de 1960 e “João Gilberto” de 1961.
Na época, o músico foi vencedor do Grammy, e junto com Tom Jobim começou a fazer grande sucesso nos Estados Unidos.
Em Nova Iorque, além de se apresentar no Carnegie Hall, gravar discos considerados obras-primas, também gravou, com o saxofonista de jazz americano Stan Getz, o álbum Getz/Gilberto, que se tornou um dos discos mais vendidos em 1964.
Da infância em Juazeiro, onde iniciou o contato com a música através do pai, músico amador que tocava cavaquinho e saxofone; o abandono dos estudos em Salvador para se dedicar ao estudo da música; o início no Rio de Janeiro, para onde foi ao ser convidado para fazer parte do grupo Garotos da Lua; às passagens tocando em boates e bares e até gravando jingles de propaganda e os primeiros contatos com músicos, compositores e intérpretes que fervilhavam na noite carioca; o estouro da Bossa Nova e o sucesso mundial, muito estudo, muitas andanças pelo país e muitas águas rolaram como parte da genialidade desse brasileiro.
Em Diamantina, Minas Gerais, onde foi passar uma temporada na casa de uma irmã, teve o primeiro insight do que marcaria sua maneira única de tocar e cantar, quando percebeu que se “cantasse mais baixo, sem vibrato, poderia adiantar ou atrasar o canto em relação ao ritmo, desde que a batida fosse constante, criando assim seu próprio tempo”.
Em Porto Alegre, em uma outra temporada, aprofundou seus estudos musicais, principalmente de harmonia, ao conhecer o compositor, pianista, violonista, musicólogo e amigo de Radamés Gnatalli, Armando Albuquerque.
No Rio, não se pode deixar de citar os nomes que passaram a fazer parte do seu universo, como Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Roberto Menescal, Ronaldo Bôscoli, Nara Leão e seu famoso apartamento dos memoráveis encontros musicais, João Donato, O Rei da Noite Carlos Machado, Luiz Bonfá, Marisa Gata Mansa e Russo do Pandeiro, Carlos Lira e Chico Buarque, Caymmi e Nana, Gal Costa e Maria Bethânia, Caetano Veloso… para que está história faça sentido.
Seria uma infinidade citar todos que fizeram daquele período uma das décadas de ouro da Música Popular Brasileira.
Quando lançou, em 2000, o clássico “João Voz e Violão”, o músico disse que teve “a alma gravada ali”.
Coisa de gênio. E poderíamos ficar por aqui…
Mas, mesmo sabendo ser de extremo mau gosto terminar esse texto citando alguém tão alheio ao significado de que matéria é feita a nossa Nação, é difícil ignorar a tamanha ignorância de um presidente que diz sobre a morte de João Gilberto: “Uma pessoa conhecida. Nossos sentimentos à família, tá ok?”, e não afirmar, com todas as letras, que João Gilberto, sim, já ocupa a cadeira dos imortais, para Bolsonaro, apenas o lixo da História.