Shinzo Abe faz a primeira visita em 41 anos de um dignitário japonês a Teerã

Autoridades japonesas rechaçaram na segunda-feira (17) a alegação do regime Trump de que o Irã atacou dois petroleiros – ambos carregando cargas “relacionadas ao Japão” – no Mar de Omã na quinta-feira e assinalaram que o vídeo divulgado por Washington “não prova nada” e não passa de uma “especulação”, assinalou a agência de notícias Kyodo.

No momento do ataque, o primeiro-ministro japonês Shinzo Abe estava fazendo a primeira visita em 41 anos de um dignitário japonês a Teerã, com o manifesto desejo de trabalhar pela preservação do acordo nuclear e por encontrar vias para manter as compras de petróleo iraniano, além de ser portador de uma mensagem de Trump.

A rapidez da acusação pelos EUA, antes de qualquer investigação internacional, e o atropelo de atribuir aos iranianos o ataque a navios a serviço do Japão em plena visita de seu primeiro-ministro ao aiatolá Ali Khamenei reforçaram no mundo inteiro a percepção de que pode se estar diante de outro “incidente no Golfo de Tonkin”, o inexistente ataque norte-vietnamita a navio de guerra norte-americano na década de 1960 que serviu de pretexto para a escalada da guerra já decidida por Washington.

 

No incidente da última quinta-feira, logo após os dois petroleiros serem atingidos pelas explosões, o secretário de Estado Mike Pompeo culpou Teerã, sem apresentar qualquer prova ou tempo sequer para uma investigação, e foi secundado depois pelo próprio presidente Trump. Mais tarde, um tosco vídeo em preto e branco, com imagem granulada de péssima qualidade, foi exibido por Washington como o flagrante de “pessoal iraniano removendo uma mina não explodida”. Embora não seja possível saber o país ao qual o navio mostrado e sua tripulação pertenciam ou o propósito do que eles aparentemente fizeram.

 

A fonte foi descrita pela agência japonesa como “próxima de Abe”. Outra fonte citada pela Kyodo – esta, ligada ao ministério das Relações Externas – contestou a alegação de Pompeo de que o ataque só poderia ser “do Irã” por ter sido “sofisticado”.

 

Como sublinhou a fonte, tal característica também poderia implicar os EUA e Israel – os principais adversários do Irã. O mesmo funcionário relatou à Kyodo que o chanceler japonês, Taro Kono, conversou por telefone na sexta-feira com Pompeo, a quem exigiu mais dados sobre o caso.

 

O rechaço do governo de Tóquio vem se somar à contestação, feito pelo operador japonês de um dos petroleiros, em entrevista coletiva, à alegação de Washington de que fora um “ataque com minas”, uma delas supostamente vista no vídeo e retirada por não ter explodido. Citando os testemunhos de marinheiros do Kokuka Courageous, o presidente da Kokuka Sangyo, Yutaka Katada, afirmou que o petroleiro foi atingido por “objetos voadores” e que os buracos no casco eram “muito acima da linha de água”. O outro petroleiro atingido foi o Front Altair, norueguês de bandeira das Ilhas Marshall, a serviço do Japão.

 

ONU: “EVITEM UMA ESCALADA”

 

Se Tóquio não acredita nas alegações dos EUA, a credibilidade é menor ainda praticamente no mundo inteiro. O secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, pediu uma “investigação independente” sob controle do Conselho de Segurança para apurar os ataques e convocou todas as partes a evitarem “uma escalada”.

 

A União Europeia, através de Nathalie Tocci, assessora sênior da chanceler Federica Mogherini, rejeitou as alegações de Washington, afirmando que “antes de culpar alguém”, são necessárias “provas confiáveis”. Conclusão reforçada pela declaração do ministro alemão das Relações Exteriores, Heiko Maas, que considerou o vídeo norte-americano “insuficiente”.

 

Como Tocci salientou, os iranianos são “atores profundamente racionais” e o Irã ter atacado um navio japonês quando o primeiro-ministro japonês estava em Teerã “não é uma coisa especialmente racional”.

 

A Rússia advertiu contra “conclusões precipitadas” e pediu uma investigação internacional, exortando todos à “moderação”. Moscou também agradeceu ao Irã pelo resgate de 11 tripulantes russos de um dos petroleiros.

 

A China se manifestou chamando todos os lados a exercerem “a contenção” para que se possa conjuntamente “salvaguardar a segurança de navegação” e a “paz e estabilidade” na região. “Ninguém quer ver a guerra no Golfo Pérsico, isso não é do interesse de ninguém”, asseverou o porta-voz Geng Shuang.

 

As acusações do regime Trump foram repudiadas prontamente pela missão iraniana na ONU: “nem as fabricações e campanhas de desinformação nem a vergonhosa imputação de culpa aos outros podem mudar a realidade. Os EUA e seus aliados regionais devem parar de fazer guerra e acabar com as provocações, bem como as operações de bandeira falsa, na região”.

 

Só chanceler inglês, que deve ser fã das relações especiais – e carnais – com os EUA, saiu em defesa da diatribe de Washington contra o Irã, acompanhado como era de se esperar pelos cúmplices mais tradicionais no Oriente Médio: feudais sauditas e do Emirado e o governo de apartheid israelense.

 

 

Até o jornal The New York Times achou que não podia deixar de fora as denúncias sobre um novo ‘incidente do Golfo de Tonkin’ e entrevistou um analista francês de Defesa, François Heisbourg, que confirmou as suspeitas entre os europeus sobre o caso.

 

“O meio marítimo é especialmente suscetível à manipulação – lembre-se do Golfo de Tonkin”, um relatório forjado de hostilidades navais que o presidente Lyndon B. Johnson usou para escalar a guerra no Vietnã. Ao que acresceu “as lembranças amargas da guerra do Iraque, que foi baseada em inteligência falha e dividiu a Europa”.

 

Heisbourg identificou como “beneficiários potenciais dos ataques” a linha dura de Washington, como o conselheiro de segurança nacional John Bolton, e o príncipe saudita MBS e seu tutor dos Emirados Árabes.

 

Nas redes sociais, o jeito tosco do vídeo levou internautas a compararem o episódio com o famoso antecedente da Guerra no Iraque. “Lembram de como eles levaram Colin Powell com o pó branco na ONU? Isso foi um trabalho profissional. Este é só um embaraço”.

 

VÍDEO

 

Especialistas independentes em inteligência expressaram dúvidas sobre o vídeo apresentado pelos EUA. William Church, ex-investigador militar do Conselho de Segurança da ONU, disse à revista Newsweek no sábado que os EUA já haviam manipulado evidências antes.

 

“O histórico americano de provas para iniciar guerras não é bom”, disse ele. “Mentiu para a guerra do Vietnã [inventando um ataque norte-vietnamita contra um navio da Marinha dos EUA no Golfo de Tonkin em 1964] e mentiu sobre armas de destruição em massa (WMD) antes da guerra do Iraque. Então, quando esses ataques de petroleiros acontecem, temos que perguntar por que e qual é a motivação, além de examinar as evidências.”

 

“O vídeo não significa nada”, acrescentou Church. “Precisamos saber como foi tirado, quando foi tirado, qual foi a sequência total. Então você teria que conversar com as pessoas no vídeo para ter uma visão do que aconteceu. Gostaria de verificar se o vídeo foi manipulado. Você precisaria fazer tudo o que um investigador treinado faria”, disse ele.

 

Analistas de inteligência mais alinhados com Washington buscaram desviar a condenação ao vídeo para outras direções. Como o chefe de análise do Oriente Médio da consultoria Eurásia, Ayham Kamel, que sugeriu os sauditas como culpados, “sob pressão dos ataques retaliatórios dos houthis iemenitas” apoiados por Teerã. Segundo ele, foi para “tentar pressionar os EUA a agir.”

 

Anthony Cordesman, do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, além de Riad e Abu Dhabi incluiu o Daesh (Estado Islâmico) como possíveis autores. “É preciso continuar fazendo a pergunta, bem, se não é o Irã, quem diabos é?”, apontou. “Há provas concretas de que o Irã é culpado? A resposta é não”.

 

Outro possível componente do incidente é que, no próximo dia 25, no Bahrein, haverá a conferência convocada pelos EUA para endossar o ‘acordo do século’ de Trump que oficializa o apartheid de Israel e a anexação das terras roubadas na Guerra dos Seis Dias – Jerusalém, ‘assentamentos’ e Golã -, e nada como uma provocação contra o Irã para justificar adesões de feudais do Golfo.

 

“SABOTAGEM”

 

Na sexta-feira, o chanceler iraniano, Mohamed Javad Zarif, reiterou o rechaço às alegações de Pompeo, dizendo que elas faziam parte da “sabotagem da diplomacia” promovida pelo “Time B”, sarcástica forma com que costumeiramente tem se referido a Bolton, ao primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu, ao príncipe herdeiro saudita Mohammed Bin Salman e ao príncipe herdeiro de Abu Dhabi, Mohammed Bin Zayed Al Nahyan.

 

“Que os EUA imediatamente saíram fazendo alegações contra o Irã sem provas factuais ou circunstanciais, somente deixa bem claro que o  #TimeB está se movendo para o #PlanoB: Sabotagem da Diplomacia, inclusive a de @AbeShinzo – e encobrindo seu #Terrorismo Econômico contra o Irã”.

 

Nas últimas semanas, e com o rompimento unilateral do acordo nuclear com o Irã pelo governo Trump completando um ano, vem sendo efetuado um intenso esforço diplomático para salvaguardar o tratado. No dia 7 de julho expira o prazo de 60 dias dado por Teerã aos demais signatários do acordo nuclear para que cumpram com suas obrigações, mantendo o intercâmbio econômico com o Irã apesar das sanções de Trump. Desde o início de maio, as sanções de Trump fizeram as exportações iranianas de petróleo caírem para 400 mil barris diários.

 

VIOLAÇÃO

 

“Há claramente uma tentativa de forçar o mundo inteiro a não cumprir uma resolução do Conselho de Segurança da ONU para alcançar o objetivo de estrangular um único país”, afirmou o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, no Fórum Primakov, realizado em Moscou na semana passada, sobre a atuação do governo Trump para chantagear a comunidade internacional para que ignore a Resolução 2231 do Conselho de Segurança da ONU, que sacramentou o acordo nuclear com o Irã, rasgado unilateralmente por Trump.

 

A imposição de Trump de “zero de exportação de petróleo” a um país que depende dessa receita para importar tudo que não produz, de maquinário a certos remédios, é a retomada dos cercos medievais às cidades, com o objetivo de matar de fome a população ou levar à derrubada do regime no poder.

 

A liderança iraniana tem advertido sobre a insanidade da meta de Trump de “zero de exportação de petróleo iraniano”, quando o principal fluxo de petróleo exportado do Oriente Médio passa por águas iranianas no Estreito de Ormuz. “”Se um dia eles quiserem impedir a exportação do petróleo do Irã, então nenhum óleo será exportado do Golfo Pérsico”, reiterou em dezembro o presidente Rouhani.

 

No Fórum de São Petersburgo, em que recebeu o presidente Xi no início do mês e declarou aberta “uma nova era” nas relações Rússia-China, o presidente Putin fora à raiz do problema, advertindo sobre “a degeneração” do modelo de globalização em vigor e sua transformação “em uma paródia, uma caricatura de si mesmo, onde as regras internacionais são substituídas pelas leis administrativas e judiciais de um país ou grupo de estados”.