Jandira: Um carnaval das matrizes, da resistência e da ancestralidade
O Carnaval de 2022 consagrou a ancestralidade negra na Avenida Marquês de Sapucaí. Mais que o resultado, o conjunto da obra dos desfiles das escolas de samba deste primeiro Carnaval pós-pandemia revela a potência da africanidade do povo brasileiro, da força de um povo que, através da cultura, expressa as possibilidades de um Brasil livre, diverso, democrático, liberto do preconceito e da intolerância, assentado no orgulho de sua história e tradição.
Por Jandira Feghali*
Não é casual, portanto, que a escola campeã, a Acadêmicos do Grande Rio, tenha vencido com o enredo “Fala Majeté – As Sete Chaves de Exu”. O primeiro no panteão dos Orixás, “aquele que matou um pássaro hoje com a pedra que atirou ontem”, Exu é a manifestação mais humana entre as divindades de matriz africana, é espírito e matéria, a força do movimento, da comunicação e da transformação. A Grande Rio apresentou as diversas formas que esta entidade se manifesta na cultura do povo, entre caboclos, andarilhos, malandros, mensageiros, ciganas, marabôs e pombagiras.
O retorno das Escolas de Samba aos seus fundamentos, aos seus toques ancestrais, e à dimensão sagrada das cores de seus pavilhões trouxe ainda para a passarela do samba outros enredos carregados da força dos Orixás e da cultura de matriz africana.
A Mocidade Independente de Padre Miguel homenageou seu odé, o padroeiro da escola, Oxóssi, o Orixá das matas, da fartura e da prosperidade, que no sincretismo religioso carioca é associado a São Sebastião. Sua bateria toda de cabeça raspada, com o auxílio luxuoso da regência de Carlinhos Brown, revelava a dimensão sagrada do espetáculo carnavalesco.
O Azul e Branco da Portela, com sua águia branca, cores e símbolos de Oxalá e Iemanjá, contaram no enredo “Igi Osé Baobá” a história e a simbologia dos Baobás, as gigantescas e milenares árvores que representam a ancestralidade, identidade, religiosidade e memória do povo africano. Ainda nos pavilhões azul e branco, a Beija-Flor de Nilópolis, vice-campeã deste carnaval, trouxe o enredo “Empretecer o Pensamento”, que se soma à grande exaltação da cultura negra que marcou este CarnAbril de 2022.
Enredos sobre fatos históricos são tradição do carnaval, e este ano não foi diferente. Foi contando a história do carnaval de 1919, um dos maiores de todos os tempos – quando o Rio de Janeiro foi tomado por um surto de folia após a pandemia da gripe espanhola – que a Unidos do Viradouro entrou na Avenida para defender seu título de campeã conquistado em 2020, alcançando um honroso terceiro lugar. Foi lindo ver a vermelho e branco de Niterói na avenida, em um desfile emocionante que falou de vida e morte, dor e superação, tristeza e alegria.
Escolas de Samba são elas mesmas um panteão de heróis, e constroem seus próprios mitos. A Mangueira brilhou homenageando seus baluartes Cartola, Jamelão e Delegado. Quantas escolas poderiam tecer um enredo inteiro sobre si mesmas? A Verde e Rosa, com seu céu estrelado, consegue.
Assim como a Vila Isabel, que homenageou Martinho da Vila como um griô que representa a ancestralidade dos sambistas, uma voz da liberdade e da cultura do povo africano e brasileiro, coroado na avenida como um Rei Negro.
Independente do resultado, foi linda e comovente a homenagem da São Clemente a Paulo Gustavo; a ancestralidade indígena representada no mito indígena do guaraná, presente no enredo da Unidos da Tijuca, ou a homenagem aos heróis da diáspora africana nos caminhos abertos pelo enredo da Paraíso do Tuiuti.
O carnaval de 2022 se afirma como o carnaval da re-existência, da superação, do reencontro da cidade consigo mesma e do povo com seu carnaval. Vida longa às Escolas de Samba!
*Deputada federal pelo PCdoB-RJ e vice-presidenta nacional do Partido.
Artigo originalmente publicado na Revista Forum
(PL)