Jandira: Somos sujeitas à misoginia e desqualificação na política
Finalista na categoria legisladora no Prêmio Viva 2020 — do Instituto AVON em parceria com a Revista Marie Claire — a deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ) comemorou em suas redes sociais: “É a luta política que faz a diferença. Simbora!”.
Ela concedeu entrevista à revista na qual fala de seu trabalho, em especial o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) que protocolou para anular os efeitos da Portaria Nº 2.282, que alterava os dispositivos relativos aos procedimentos de justificação e autorização da interrupção da gravidez nos casos já previstos em lei no SUS, dificultando o aborto seguro em casos de estupro, gestação de feto anencefálico e risco de vida para a mulher.
“Quando vimos a portaria ficou claro que ela tinha uma ideologia fundamentalista por causa do que aconteceu no caso da menina de 10 anos, do Espírito Santo, estuprada pelo tio. Essa interferência que vem sendo arquitetada, ao que tudo indica, dentro do ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, comandado pela Damares Alves, se reflete na portaria, que estava cheia de ilegalidades, de inconstitucionalidades”, explica na entrevista.
Confira a íntegra:
A deputada federal Jandira Feghali tem 32 anos de carreira pública, toda ela destinada a lutar pelos direitos das mulheres. Eleita pelo PC do B do Rio de Janeiro, a parlamentar é a líder da minoria na atual Câmara dos Deputados e, por ser médica, trata com especial atenção questões relacionadas à saúde da mulher. “Esse acompanhamento da pauta é antigo, porque eu sou médica. Sempre foi prioritário no meu trabalho de parlamentar”, afirma ela.
Por isso mesmo, Jandira protocolou um Projeto de Decreto Legislativo (PDL) para anular os efeitos da Portaria Nº 2.282, de 27 de agosto de 2020, promulgada pelo então Ministro Interino da Saúde na época, general Eduardo Pazuello. Ela alterava os dispositivos relativos aos procedimentos de justificação e autorização da interrupção da gravidez nos casos já previstos em lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde, o SUS. Em outras palavras, dificultava o aborto seguro como previsto em casos de estupro, gestação de feto anencefálico e risco de vida para a mulher.
De acordo com os novos termos, deveria ser obrigatória a notificação de autoridade policial por parte da equipe de saúde quando fosse realizado o procedimento de aborto legal nos casos listados em lei. Na prática, medida afeta negativamente a parcela mais vulnerável das vítimas de violência sexual – meninas, adolescentes e mulheres negras – que estariam expostas à polícia e seriam obrigadas a iniciar um processo contra o agressor no mesmo momento em que fosse notificado o aborto. Levando-se em consideração que, na maioria dos casos, esse abusador é alguém próximo ou mesmo da família, a pressão sobre a vítima poderia inibir a realização do procedimento, além de representar uma ruptura do sigilo médico. A obrigatoriedade, defendem ainda especialistas, poderia dificultar não só o aborto como qualquer outra medida de profilaxia de doenças sexualmente transmissíveis, bem como o uso de contraceptivos de emergência.
Jandira e outras nove deputadas da bancada de oposição ao governo se uniram para derrubar a alteração já apenas um dia depois de o governo ter agido. “Quando vimos a portaria ficou claro que ela tinha uma ideologia fundamentalista por causa do que aconteceu no caso da menina de 10 anos, do Espírito Santo, estuprada pelo tio. Essa interferência que vem sendo arquitetada, ao que tudo indica, dentro do ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, comandado pela Damares Alves, se reflete na portaria, que estava cheia de ilegalidades, de inconstitucionalidades”, explica.
A alteração impunha mais dificuldades para a realização de um direito feminino que existe em território brasileiro como lei há mais de 80 anos. “Estamos nessa batalha para impedir os retrocessos. E esse é um retrocesso tão antigo que é anterior à década de 1940”, diz Jandira. “Aliás, nunca vi isso em todos esses anos de governo, de querer anular algo que existe desde a década de 40 que é o direito de garantir que uma mulher violentada possa decidir sobre seu corpo e exercer esse direito amparada pela lei, na rede de saúde pública de saúde.”
O assunto é mesmo bastante grave e somente graças à mobilização quase imediata a portaria não se manteve como promulgada. “É um retrocesso, principalmente levando-se em conta a realidade brasileira, na qual grande parte das vítimas de estupro são crianças e adolescentes”, reforça a parlamentar, que também prepara uma representação contra a ministra Damares.
O embate em cima da portaria segue, já que o governo editou, novamente, o texto retirando a palavra obrigatoriedade, mas mantendo a recomendação de equipes médicas seguirem avisando órgãos de polícia sobre casos de interrupção de gravidez previstos em lei. Por isso mesmo, Jandira e o grupo de deputadas vão ao Superior Tribunal Federal (STF) para dar vazão ao caso. “Esse é o nosso papel na Câmara. A gente precisa, pelo menos, reagir ao retrocesso”, desabafa ela.
A visibilidade conquistada por defender, de forma tão ferrenha, temas da vida das mulheres que viraram bandeira de grupos conservadores acaba por fazer de Jandira Feghali uma das parlamentares mais atacadas do Congresso. Apesar da elevada polarização de agora, ela conta que isso não é novidade em sua trajetória política: “Sou agredida há bastante tempo”, diz. “Fui a primeira vítima de fake news em uma eleição, isso em 2006, na corrida ao Senado. Era profundamente atacada por causa do tema do aborto. Lembro que havia cartazes do meu tamanho espalhados pela cidade do Rio inteira. E olha que eu tenho praticamente 1,80m de altura.” Jandira conta que pessoas recebiam até mensagens via SMS – maneira de se comunicar em texto no mundo pré-whatsapp – falando sobre sua ligação com o tema do aborto.
“É impressionante, mas na política brasileira somos sujeitas a uma misoginia pesada, a um grau de desqualificação moral muito grande”, reforça ela. “Quando entra no nível da ameaça, a gente processa. Já fiz isso contra um jornalista do Paraná que teve que pagar uma indenização por dano moral.” Ser alvo constante do machismo estrutural da nossa sociedade cobra um preço alto: “Em alguns momentos a gente se pergunta se vale a pena. E o que faz valer é quando percebo que meu trabalho gerou benefício, avanço para a vida das pessoas. Daí, sim, tem um sentimento positivo. Quando a gente leva benefícios reais, isso gratifica, faz valer esse custo todo”, finaliza a deputada.
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Por Luciana Borges e Giovanna Brezolini – para Revista Marie Claire
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(PL)