Itália: submissão às sanções dos EUA desestabiliza governo Draghi
Sob o tiro no pé das sanções contra a Rússia e seu efeito colateral na inflação, falta de gás e risco de recessão, mal Boris Johnson foi apeado em Londres e já tem outro líder europeu nas cordas, agora em Roma: o primeiro-ministro italiano, Mario Draghi, banqueiro, ex-Goldman Sachs e ex-chefe da máquina de impressão do BCE.
Seu pedido de renúncia, que chegou a apresentar ao presidente italiano Sergio Mattarella, por ora não foi aceito. “A maioria de unidade nacional que apoiou este governo desde a sua criação já não existe”, afirmou. Na quarta-feira (20) a questão deverá ser definida no parlamento italiano, ou poderá haver eleições antecipadas. As eleições regulamentares estão previstas para a primavera de 2023.
Sinal dos tempos, a quase renúncia de Draghi ocorreu após ele vencer um voto de confiança por 172 a 39 na quinta-feira no Senado. O pivô foi a decisão do Movimento 5 Estrelas (M5S), ‘antissistema’, que é o segundo maior partido da coalizão de Draghi, de não endossar no Senado a proposta do primeiro-ministro para pacote de socorro pós-pandemia, de 23 bilhões de euros.
“Tenho um forte medo de que setembro seja uma época em que as famílias terão de pagar a conta de luz ou comprar comida”, advertiu o líder do M5S, Giuseppe Conte, que acusou o governo Draghi de não fazer o suficiente para ajudar as famílias atingidas pelos custos crescentes de alimentos e energia. A divergência, no caso, foi quanto à questão do salário mínimo.
A inflação italiana bateu em junho o recorde de 36 anos, chegando a 8 %, sendo que, na energia, a alta foi de 48,7% (contra 42,6% no mês anterior), de acordo com dados do Instituto Nacional de Estatísticas (ISTAT).
Bruxelas rebaixou em 1 ponto percentual a previsão de crescimento do PIB da Itália para este ano. A Itália é a terceira maior economia da União Europeia. Na sexta-feira (15), o país viveu uma greve de transportes. Em dezembro passado, houve uma greve geral. Para complicar a OMS anda alertando sobre a ressurgência da pandemia.
A recusa do 5S também se deveu a projeto de que a cidade de Roma instale um novo incinerador, o que violaria a política ambiental do M5S.
O comissário de finanças da União Europeia, Paolo Gentiloni, ex-primeiro-ministro italiano, disse que Bruxelas está “seguindo com preocupado espanto” o possível desmoronamento da coalizão de Draghi e voltou a pedir um novo “governo de amplo entendimento”.
Analistas advertiram que a turbulência política da Itália poderá ser sentida em toda a Europa. O colapso do governo de Draghi arriscaria desencadear “a desestabilização da Europa”, declarou Antonio Saccone, senador do partido de Silvio Berlusconi, Forza Itália.
Um traço comum entre Boris Johnson e Draghi, aliás, o ‘Super Mário’, como era chamado quando operava a bazuca do BCE para salvar bancos europeus quebrados, vários deles, italianos, é o empenho com que apoiam o regime Zelensky, demonizam a Rússia e fazem genuflexões a Washington.
Na cúpula do G7 em junho de 2022, Draghi defendeu a imposição de um teto de preço para a importação de petróleo russo, sem explicar quem iria colocar o guizo no pescoço do urso. Ele também prometeu que as sanções contra a Rússia irão “durar muito tempo” – mais que seu governo, quem sabe?
Draghi assumiu o cargo de primeiro-ministro na Itália em fevereiro passado. De 2011 a 2019, ele chefiou do Banco Central Europeu – e a famigerada ‘Troika’.
O atual ministro das Relações Exteriores Luigi Di Maio, que deixou o M5S, acusou Conte de executar um plano para derrubar o governo Draghi “enquanto arrastava a Itália ao colapso econômico e social” e fazia o jogo “de Putin”.
“Se Draghi cair, nós votaremos”, disse Di Maio à rádio RTL, acrescentando que, sem um governo em pleno funcionamento nos próximos meses, a Itália correria o risco de perder bilhões de euros em fundos de recuperação pós-pandêmicos da União Europeia e não seria capaz de promulgar medidas para combater os altos custos de energia.
“A Itália não pode passar sem Mario Draghi”, afiançou Renato Brunetta, ministro da Administração Pública, do partido Forza Italia. “Não podemos perder a credibilidade e a confiança que ganhamos na Europa e no mundo em tempos tão difíceis”, ele postou no Twitter.
A grande motivação para a coalizão de quase todos os partidos em torno de Draghi foi exatamente aproveitar os fundos de recuperação pós-pandemia decididos pela UE.
Os especuladores reagiram à inesperada crise política, com o euro caindo em relação ao dólar e o spread entre o rendimento dos títulos soberanos italianos e alemães – visto como um indicador-chave de risco – aumentou. Na terça-feira, o euro chegou à paridade com relação ao dólar pela primeira vez em 20 anos.
Ecos de 2022
A última vez que o euro valeu menos que o dólar foi em 2002, quando a moeda estava engatinhando e a zona do euro compreendia apenas 12 países. Na véspera a Croácia se tornara o 20º país europeu a adotar a moeda comum.
“A queda do euro tem muito mais espaço para acontecer”, postou no domingo o economista-chefe do Instituto de Finanças Internacionais, Robin Brooks. “Estamos apenas começando.”
A moeda única perdeu mais de 10% de seu valor em relação ao dólar desde o início do ano. Foi uma queda rápida, impulsionada em parte pela piora das perspectivas de crescimento na zona do euro, após a intervenção russa na Ucrânia , assim como pela demanda mais forte pelo dólar como moeda porto-seguro.
Entretanto, uma fonte do gabinete do primeiro-ministro, sob anonimato, expressou pessimismo sobre as perspectivas da coalizão e anteviu como resultado mais provável uma votação no início de outubro. Nesse caso, Draghi poderia permanecer na função como interino, mas não seria capaz de elaborar um Orçamento para 2023 ou decretar reformas exigidas pela Europa em troca dos fundos de recuperação.
A Itália não tem uma eleição de outono desde a Segunda Guerra Mundial, pois esse é normalmente o período em que o orçamento é elaborado e é grande a pressão sobre o M5S para que recue do impasse.
“Temos agora cinco dias para trabalhar para que o Parlamento confirme sua confiança no governo Draghi”, resumiu o chefe do Partido Democrata, Enrico Letta.