Informais são mais de 60% no mundo. O que houve com o trabalho?
É fácil ver que algo mudou a nossa volta. Quantas pessoas você conhecia que trabalhavam sob o regime celetista há cinco anos? E agora? O trabalho por conta própria ou sem vínculo formal cresceu exponencialmente nos últimos anos e não foi apenas no Brasil. Segundo dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT) divulgados em 2018, o mercado informal abarcava dois bilhões de pessoas à época, o equivalente a 61,2% da população empregada em todo o mundo.
Aquele ano foi o primeiro em que a OIT captou esse número em escala global, incluindo pessoas que costumam ficar à margem das estatísticas. Organismos multilaterais como a própria OIT, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) defendem que é preciso identificar esse contingente e criar um novo pacto social de proteção, levando em conta as mudanças profundas no mundo do trabalho.
No Brasil, como ocorre em cada país, a mudança teve pontos de semelhança com o fenômeno global mas também cores próprias. Veio na esteira do impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff (PT), que era pressionada a implementar um programa econômico de austeridade, com corte de gastos públicos e reforma da Previdência, e a flexibilizar a legislação trabalhista.
Dilma até tentou agradar ao mercado, nomeando Joaquim Levy para o então Ministério da Fazenda. Mas eram pautas difíceis de fazer avançar em um governo de esquerda. A solução encontrada pela elite do país foi instrumentalizar a operação Lava Jato e o anseio popular por melhorias nas condições de vida até obter o impeachment. Para ficar só na questão do trabalho, a flexibilização de trechos da CLT veio em seguida, com a reforma trabalhista de Michel Temer em 2017.
A essa altura, já se consolidava no país a presença das gigantes do capitalismo do século XXI: Uber, Rappi, Netflix. Também já estavam presentes modalidades de trabalho que, à época, ainda causavam estranhamento. Teletrabalho. Trabalho remoto. Trabalho intermitente. Home office.
O sociólogo Clemente Ganz Lúcio, consultor do Fórum das Centrais Sindicais, lembra que a flexibilização trabalhista chegou com certo atraso ao Brasil. “Desde 2008, mais de 130 países fizeram reformas trabalhistas semelhantes à que o Brasil fez em 2017. O Brasil não é um ponto fora da curva. As empresas perceberam que estavam em ambiente de altíssima competição, de inovação em velocidade absurda e precisariam de flexibilidade para movimentar sua força de trabalho”, diz.
O sociólogo ressalta, ainda, que os efeitos da crise financeira de 2008, que começou nos Estados Unidos mas teve impacto global, também contribuíram para o cenário. Trabalhar com menos direitos e um salário menor assusta menos que o desemprego.
Jogo político
Na avaliação de Clemente, o saldo de todo esse movimento é que as empresas saíram vencedoras das primeiras batalhas. “As empresas ganharam no curto prazo esse debate. Têm conseguido flexibilizar mundo afora, alegando que isso geraria emprego. Não quer dizer que vai ser o resto da vida assim”, opina.
O economista Fernando de Aquino, coordenador da Comissão de Política Econômica do Conselho Federal de Economia (Cofecon) concorda que os defensores da flexibilização acabaram vencendo o jogo político. Segundo ele, “politicamente” tornou-se difícil exigir que vínculos como o do motorista do Uber sejam convertidos em celetistas. Para Aquino, no entanto, permanece a realidade das necessidades desse trabalhador, que a nova dinâmica do mercado não consegue atender.
“São pessoas que também têm suas necessidades de férias, licença médica, poupança e ficam sem acesso a esse tipo de benefício. A gente tem que pensar uma forma de financiar benefícios semelhantes aos celetistas para esse trabalhador”, afirma. O economista destaca ainda que, embora entre esses trabalhadores “flexibilizados” haja categorias de autônomos com salários elevados, a maioria tem remuneração muito baixa.
“Eles nos comparam com países como os Estados Unidos, que não têm todos esses encargos [trabalhistas], só que os salários que os norte-americanos ganham são melhores, a moeda é mais forte. [No Brasil] são salários muito baixos. O problema é que ganham igual ou menos do que os caras que estão na CLT, mas sem os benefícios”, destaca.
Uma outra economia
O sociólogo Clemente Ganz Lúcio acredita que é possível aumentar a proteção para autônomos e informais usando instrumentos já existentes nas leis brasileiras. Um dos mecanismos disponíveis, por exemplo, é a figura jurídica do Microempreendedor Individual (MEI), que faz um recolhimento simbólico de impostos (cerca de R$ 57) e tem acesso a benefícios como aposentadoria, auxílio doença saúde e licença maternidade, sempre no valor de um salário mínimo.
“Já existem mecanismos, que deveriam passar por alterações conforme o tipo de trabalho. Micro seguros, micro proteções que possam se multiplicar. Precisaria ter um trabalho de esclarecimento, de fiscalização da prestação de serviços, junto com responsabilidade dos contratantes e também convencimento da contribuição previdenciária”, defende.
Segundo ele, bastariam medidas simples, como o pagamento da taxa junto com o serviço. “Quando você compra uma pizza, já paga o seguro da moto [para o entregador]”, exemplifica. No entanto, para o sociólogo, é preciso lutar no campo da política também para que esses trabalhadores compreendam seus direitos. Mais do que isso: mostrar a eles a necessidade de uma outra economia.
“Não é possível ter um modelo onde as empresas tenham total liberdade visando um acentuado processo de concentração de renda. É preciso repartir os resultados do incremento de produtividade Vamos produzir mais, com uma tríplice dimensão: gerar ocupação para todos, reduzir a jornada de trabalho e considerar o equilíbrio ambiental. Imaginar uma outra lógica econômica, uma economia de interesse social para uma repartição da riqueza gerada”, conclui.