Impunidade: nenhum policial responderá por matar Breonna Taylor
A decisão de um júri do Kentucky, de eximir de qualquer responsabilização dois policiais de Louisville e acusar o terceiro por uma questão secundária, após assassinarem com oito tiros a paramédica negra Breonna Taylor dentro do próprio apartamento, depois de arrombarem a porta, à noite e à paisana, foi recebida com indignação pelos familiares, pelas entidades pró-direitos civis e por lideranças democráticas dos EUA.
O único que foi indiciado por alguma coisa, o detetive Brett Hankinson, não foi pelo assassinato, mas por ter disparado tiros que atingiram um apartamento ao lado – de um branco. Os outros dois, o sargento Jonathan Mattingly e o detetive Myles Cosgrove, se safaram ilesos.
“Este resultado é uma vergonha e uma abdicação da justiça”, afirmou o senador Bernie Sanders, que denunciou que “nosso sistema de justiça criminal é racista”. Ele acrescentou que a hora para uma mudança fundamental “é agora”.
“Esta decisão é uma negação grosseira de justiça” , rechaçou a principal entidade antirracismo dos EUA, a Associação Nacional para o Avanço do Povo Negro . O “sistema podre de aplicação da lei e justiça criminal” foi repudiado pela maior entidade pró-direitos do país, a União Americana pelas Liberdades Civis (Aclu).
Um repórter do Louisville Courier Journal compartilhou um vídeo em que um manifestante estupefato pergunta: “É isso?”
Milhares de manifestantes foram às ruas de Louisville, em repúdio à impunidade dos assassinos, e o governador Andy Beshear decretou toque de recolher e enviou a Guarda Nacional. As prisões vêm se sucedendo. Os protestos já se estenderam a Washington, Nova York, Atlanta e Filadelfia.
“Todos têm o direito de ir às ruas e fazer com que suas vozes sejam ouvidas”, disse a dirigente da Anistia Internacional, Kristina Roth, – ainda mais “após essas notícias”. Ela pediu que a polícia “respeite o direito ao protesto pacífico”.
A prima Tawanna Gordon, que mora em Grand Rapids, Michigan, assistiu com lágrimas nos olhos o anúncio feito pelo procurador-geral de Kentucky, Daniel Cameron. “Não estou surpresa”, ela disse, logo após a declaração oficial. “Mas estou furiosa porque nada está mudando. A decisão de hoje foi uma injustiça adicional para nossa família e este país”.
Na semana passada, a mãe de Breonna, Tamika Palmer, convocara a “seguir em frente com as acusações criminais, porque ela merece isso e muito mais”.
Os advogados da família, liderados por Ben Crump, emitiram um comunicado classificando a decisão do grande júri como “ultrajante e ofensiva para a memória de Breonna Taylor”.
“Se o comportamento de Hankison constituía uma ameaça desenfreada para as pessoas nos apartamentos próximos ao dela, então também deveria ser considerado uma ameaça desenfreada para Breonna”, disseram eles.
“Na verdade, deveria ter sido considerado um assassinato desenfreado. É irônico e típico que as únicas acusações feitas neste caso tenham sido por tiros disparados contra o apartamento de um vizinho branco, enquanto nenhuma acusação foi feita pelos tiros disparados contra o apartamento do vizinho negro ou na residência de Breonna”.
“Isso equivale ao mais flagrante desrespeito aos negros, especialmente mulheres negras, mortas pela polícia na América, e é indefensável, independentemente de como o procurador-geral Daniel Cameron procure justificá-lo”.
Em resumo, três policiais brancos à paisana invadiram e arrombaram um apartamento à noite, em busca de drogas e de um indivíduo que não morava ali, sob a folha de parreira de um “no knock” – um mandato que permite invadir sem bater -, e quando o namorado de Breonna tentou se defender dos agressores usando uma arma legal, os que supostamente deveriam agir como agentes da lei promoveram uma fuzilaria, que matou a paramédica.
A operação estava toda errada desde o começo, nem Breonna nem o namorado eram procurados, não havia drogas, e as normas mínimas de conduta policial e de respeito aos direitos humanos foram violados em um patamar absurdo. Ainda, segundo o namorado, após balearem Breonna, os policiais sequer chamaram os serviços de emergência.
A tentativa de legítima defesa do namorado virou pretexto para o não-indiciamento dos policiais assassinos, a impunidade. Apesar de uma vítima inocente rasgada por tiros – oito tiros. “Sob fogo”, a fuzilaria seria “legal”.
Um escárnio, depois não sabem por que os protestos, quando parece que vão amainar, vem mais um assassinato brutal e estúpido, e recomeça a revolta contra esse joelho que insiste em asfixiar o pescoço alheio.
Na véspera da decisão do júri, o policial que comandava a operação, Mattingly, em e-mail enviado a cerca de um milhar de agentes de segurança de Louisville, descreveu os manifestantes contrários à impunidade como “bandidos” e lamentou que os “mocinhos são demonizados”.
Como havia dito o advogado da família, “Breonna não representava nenhuma ameaça para os agentes e não fez nada para merecer morrer às suas mãos. Os tiros foram disparados cegamente pelos agentes em toda a casa de Breonna”.
Há uma semana, a prefeitura de Louisville fez acordo com a mãe de Breonna, com o pagamento de uma indenização de US$ 12 milhões e compromisso de reformas na polícia que evitem novas mortes.
O famigerado mandato “no knock” foi abolido na cidade, por uma lei que leva o nome de Breonna. Pelo acordo com a família, tornou-se obrigatório que os comandantes das unidades aprovem mandados de busca antes que sejam submetidos a um juiz.
Entidades contra a impunidade afirmaram que “não haverá justiça” até que todos os policiais que assassinaram Breonna “sejam indiciados pelo crime”.
Também causou espanto a acusação escolhida contra Hankinson. “Mais uma vez, a lei diz que a propriedade é mais valiosa do que a vida de negros”, afirmou a deputada progressista Ilhan Omar. Ela pediu que a luta por justiça para Breonna e para cada negro que morreu nas mãos da polícia não esmoreça. “Vamos lutar para dar fim à imunidade qualificada”, conclamou.
Ao contrário dos outros dois implicados, que nem esse contratempo sofreram, Hankinson foi demitido da polícia em 23 de junho, quando a revolta contra o covarde linchamento de George Floyd já corria de costa a costa, e multidões respondiam ao “diga seu nome” com “Breonna!”. Seu assassinato fora em março.
“Ouvi corretamente? Somente um policial está sendo remotamente responsabilizado, e não por matar Breonna Taylor mas em vez disso por atirar em apartamentos?” – espantou-se a deputada Rashida Tlaib, diante da decisão em Kentucky. E concordando com Omar, concluiu: “jamais foi tão claro que este país considera a propriedade mais valiosa do que a vida humana”.
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