Polícia Militar interveio para conter a depredação de templos da Universal em São Tomé e Príncipe

A cúpula da Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd) tenta conter uma revolta popular que provocou a depredação de vários templos da igreja e a morte de um adolescente em São Tomé e Príncipe, pequeno país insular no oeste africano e ex-colônia portuguesa, registrou a BBC-Brasil. Em 16 de outubro, centenas de manifestantes vandalizaram e saquearam seis dos 20 templos da Universal em São Tomé para exigir a libertação do pastor Ludumilo da Costa Veloso e seu retorno ao país natal, depois que este foi preso e, em nove dias, condenado na vizinha Costa do Marfim a um ano de prisão, acusado de denunciar pelas redes sociais o confisco de dízimo e até vasectomia forçada.

Nos protestos, também foram queimados carros. A Polícia Militar interveio, e um manifestante são-tomense de 13 anos morreu baleado. Veloso, que havia sido transferido para a Costa do Marfim há 14 anos pela igreja, fora preso no dia 11 de setembro.

Como denunciou a defesa, Veloso foi condenado em um “processo sumário”, sem direito a advogado nem defensor público — condições que atribuiu à pressão que a Universal teria feito sobre autoridades marfinenses. A Costa do Marfim é um dos países africanos onde a Iurd tem presença mais sólida.

GRÁVIDA

A revolta ocorreu após a mulher de Veloso, Ana Paula, em entrevistas e pelas redes sociais, denunciar a prisão e condenação dele e relatar que fora forçada pela Universal a deixar a Costa do Marfim às pressas, embora estivesse grávida e desejasse permanecer no país para poder ficar perto do marido preso. Ana Paula também afirmou que a Igreja não ofereceu qualquer assistência jurídica a seu marido e o expulsou após a prisão.

Para a população são-tomense, foi a Universal que orquestrou a prisão e condenação de Veloso em tempo recorde para impedir novas denúncias de abusos. A Iurd assevera que apenas acionou a polícia marfinense por ser vítima de “mentiras e calúnias”, mas que foram as autoridades locais que o identificaram e puniram.

HUMILHAÇÕES E CONFISCO DOS DÍZIMOS

Os textos atribuídos a Veloso acusavam a Iurd de privilegiar pastores brasileiros e discriminar clérigos africanos. Segundo os posts, a Universal impedia muitos pastores africanos de se casar ou os obrigava a fazer vasectomia para que não tivessem filhos — assim, poderiam se dedicar integralmente à igreja.

O autor anônimo também acusava bispos e pastores brasileiros de se apropriar de dízimos recebidos pela igreja, além de “humilhar, insultar, esmagar e escravizar os (pastores) africanos”.  “Éramos muito pacientes, humildes demais, educados demais. Agora é hora de agir sem piedade!”, conclamava um dos textos, em francês, língua principal da Costa do Marfim.

A defesa do pastor diz que ele é inocente e que só admitiu a autoria dos posts “porque lhe disseram que, se confessasse, a igreja retiraria a queixa”. A Universal, porém, manteve a denúncia, e Veloso foi condenado.

AMEAÇA DE EXPULSÃO

Em meio à revolta, o Parlamento de São Tomé e Príncipe passou a discutir a expulsão da Universal no país. A parlamentar Alda Ramos, uma das principais líderes da oposição, disse a jornalistas que a Iurd deveria repatriar o pastor, ou “acionaremos outros mecanismos para não existir mais esta igreja cá em São Tomé e Príncipe”.

Ameaça que levou o embaixador brasileiro em São Tomé e Príncipe, Vilmar Júnior, a interromper as férias e retornar ao país para tentar apaziguar os ânimos. A cúpula da Iurd também se mexeu e no dia seguinte à revolta em São Tomé e Príncipe o bispo da Universal e deputado federal Márcio Marinho (Republicanos-BA) viajou à ilha africana para se reunir com autoridades locais.

Após visitar a Assembleia Nacional, Marinho disse a jornalistas que a igreja tinha o interesse “em resolver o mais rápido possível a questão”. Ele prometeu que uma comissão formada por políticos são-tomenses e dirigentes da Universal viajaria à Costa do Marfim para visitar o pastor e lhe dar suporte.

Marinho não quis dar entrevista sobre o caso à BBC-Brasil e sua assessoria se negou a informar se ele havia viajado a São Tomé e Príncipe enquanto parlamentar ou enquanto bispo da Universal, e quem havia custeado a viagem. No fim de outubro, outro deputado federal se manifestou sobre o episódio. Em vídeo no Facebook, o presidente da Frente Parlamentar Evangélica, Silas Câmara (Republicanos-AM), criticou autoridades são-tomenses por não garantir “a proteção, a integridade e a liberdade de culto dos nossos irmãos”.

A mobilização internacional pela soltura de Veloso surtiu efeito. A advogada Celiza de Deus Lima, que representa o pastor, disse à BBC-Brasil que ele foi libertado nos últimos dias, mas segue impedido de deixar a Costa do Marfim.

Ela informou que o pastor pediu proteção à embaixada de Angola na capital marfinense, por se sentir inseguro e porque não há representação diplomática são-tomense no país. Veloso e ele espera obter autorização para deixar a Costa do Marfim ainda neste mês.

Conforme a advogada, o movimento pela soltura de Veloso envolveu até o ex-presidente são-tomense Miguel Trovoada, que teria telefonado ao presidente da Costa do Marfim, Alassane Ouattara, para tratar do assunto.

Em nota à BBC, a Iurd diz que jamais denunciou o pastor Iudumilo Veloso, “até porque não sabia quem era o autor” das mensagens críticas à igreja e acrescentou que os crimes denunciados “foram, sim, praticados” via perfis falsos do Facebook e pelo Telegram. Também contestou ter obrigado a mulher grávida do pastor a deixar o país vizinho e negou a imposição de vasectomia, acrescentando que o que a igreja estimula “é o planejamento familiar, debatido de forma responsável por cada casal”.

Já o Ministério das Relações Exteriores do Brasil disse em nota que o caso “não demanda atuação consular por não envolver cidadão brasileiro” e registrou estar em permanente contato com as autoridades locais, “de forma a garantir o respeito à integridade física e às propriedades dos brasileiros lá residentes e da própria Iurd”.

ANTECEDENTES

Não é a primeira vez que a Iurd se vê envolvida em incidentes em outros países em que tem atuação. Em 2005, foi acusada de “prática de satanismo” na Zâmbia e chegou a ter atividades banidas, o que depois foi revertido.  Um ano antes, um pastor foi condenado em um tribunal de Madagascar sob acusação de “queimar bíblias” e outros objetos religiosos durante um culto em que o tema da pregação era a “idolatria”.

Em 2013, a igreja foi temporariamente suspensa em Angola após 16 pessoas morrerem pisoteadas num culto superlotado da igreja, propagandeado com “venha dar um fim a todos os problemas que estão na sua vida; doença, miséria, desemprego, feitiçaria, inveja, problemas na família, separação, dívidas etc. Traga toda a sua família”.

Em 2017, a rede portuguesa TVI24 revelou que a Iurd mantinha um “lar ilegal de crianças” nos anos 1990 de onde desapareceram menores de idade que teriam sido roubados de suas mães e pais. As crianças eram entregues por famílias com dificuldades financeiras e enviadas para outros países, numa rede ilegal de adoções, segundo a jornalista Alexandra Borges.

Para o produtor cultural são-tomense Nig d’Alva, que estudou administração de empresas em Fortaleza, a revolta “foi a gota d’água de decepções que algumas pessoas tiveram em relação à igreja”, embora aponte que a mobilização foi impulsionada pela oposição, que acusa o governo de ser submisso perante a igreja.

D’Alva disse à BBC-Brasil que há “repulsa” em São Tomé e Príncipe quanto a uma postura da Universal que ele classifica como “segregadora”: ele diz que muitos fiéis da Iurd deixaram de conviver com outras pessoas “porque a igreja diz que são mundanas, que não são cristãs o suficiente, e isso cria um ódio.”

Esse descontentamento, segundo ele, se somou a uma reação nacionalista contra detenção na Costa do Marfim “de um filho da terra sem que houvesse uma resposta do estado são-tomense e da própria igreja”.

Autora de vários artigos sobre a presença internacional da Iurd, a cientista social Camila Sampaio, professora da Universidade Federal do Maranhão, disse à BBC-Brasil que a igreja teve êxito em países africanos ao pregar uma “pedagogia do empreendedorismo”, tendo como público famílias egressas do meio rural carentes de saberem como lidar com o “novo universo urbano”.

Além do aumento do número de seguidores, a expansão para a África, como observou a acadêmica, atende a expectativa entre os fiéis brasileiros de que a igreja está “fazendo obra na ‘terra da feitiçaria’”. Sampaio afirma ainda que a igreja soube se articular com figuras importantes dos países onde atua – como Angola, onde tem entre seus fiéis altos dirigentes do partido governista.