Haiti investiga guarda palaciana que não resistiu a matadores de Moise
Depois de três anos do país convulsionado sob o agravamento da corrupção, violações da democracia e miséria, a que se somou o zero de vacinação na pandemia, o Haiti se chocou esta semana com o assassinato, com requintes de brutalidade, do presidente Jovenel Moise e posterior captura de mercenários estrangeiros – 26 ex-militares colombianos treinados pelos EUA e dois norte-americanos de ascendência haitiana – acusados do crime, que lançou o país no vácuo a dois meses das eleições presidenciais marcadas para setembro.
Antes de ser fuzilado com 12 tiros em sua própria residência, o presidente Moise teve o pé e o braço quebrados e o olho vazado. Sua esposa, gravemente ferida, foi transportada de ambulância aérea para um hospital na Flórida.
Dos integrantes do esquadrão de assassinos, três já foram mortos em confrontos com a polícia haitiana e oito continuam foragidos. A existência desses ex-militares colombianos já foi reconhecida pelo governo de Bogotá, e suas patentes vão de tenente-coronel a soldado. Todos integrantes de forças especiais.
Como efeito colateral do Plan Colômbia, os mercenários entraram na pauta de exportação colombiana, por seu preço barato, treinamento a cargo de instrutores norte-americanos e disposição para o mal.
A residência particular de Moise está localizada no rico distrito de Pelerin 5 em Pétionville, uma área de vilas fortificadas nas colinas acima da capital, Porto Príncipe. A única estrada de ida e volta é rotineiramente guardada pelas forças de segurança haitianas. A polícia só chegou ao local depois do amanhecer.
Os norte-americanos foram identificados como James Solage e Joseph Vincent, da Flórida. Ao juiz Clément Noël, Solages disse sua função era de “tradutor”, que não estava na sala na hora da fuzilaria e que tinha arrumado o serviço “pela internet”. Foi ele que gritou, no início dos ‘trabalhos’, com um megafone, que “era a DEA”, a polícia antidrogas norte-americana.
Vincent relatou que o contratante era um estrangeiro de nome “Mike”, bilíngue em inglês e espanhol. O ‘tradutor’ estava no Haiti há seis meses, morando com um primo.
Solages chegara há um mês; anteriormente, fora segurança da embaixada do Canadá em Porto Príncipe. Os dois asseveraram que o plano “não incluía” matar Moise. Os preparativos foram discutidos durante um mês. Os colombianos começaram a chegar a partir de maio.
Sem resistência
Em outro aspecto da investigação, o promotor público chefe da capital haitiana, Me Bed-Ford Claude, intimou o chefe da guarda presidencial, Jean Laguel Civil, o chefe da guarda do palácio, Dimitri Hérard, e outros dois do comando a explicarem como os assassinos conseguiram entrar na residência mais guardada do Haiti, sem encontrarem resistência. “Se você é responsável pela segurança do presidente, onde estava?”, questionou Claude. “O que foi feito para evitar este destino do presidente?”.
O último assassinato de um chefe de estado haitiano ocorreu em 1915, quando Jean Vilbrun Guillaume foi capturado e massacrado depois que ele próprio ordenou a execução em massa de seus oponentes. O que foi seguido pela invasão do país pelos marines, que ali permaneceram por quase 20 anos.
O ex-presidente da república vizinha, Leonel Fernández, mostrou sua surpresa com a forma como o crime foi realizado, já que “assassinatos geralmente são cometidos nas ruas”, como o do ex-presidente dos Estados Unidos John F. Kennedy “ou o próprio Trujillo, o ditador dominicano que foi morto em uma emboscada na rua.”
“Mas para um comando entrar em sua residência, ir especificamente para seu quarto e executá-lo é algo que eu acho sem precedentes”, disse ele ao jornal Acento.
Ele reiterou sua impressão de que o que aconteceu com Moïse “tem algo de pessoal, principalmente porque o presidente estava a meses de sair, em dois meses haverá eleições no Haiti e a transferência do comando acho que em fevereiro, ou seja, não era possível de se perpetuar, ele não ia continuar no poder”.
“Então, por que um acontecimento tão horrendo ocorrendo dois meses antes das eleições, que coloca o país em uma situação de ingovernabilidade e vazio de poder?”, salientou.
“Teremos de investigar as raízes mais profundas deste crime e quais as razões ou causas que o podem ter motivado”, concluiu.
A Frente Ampla dominicana condenou o assassinato, que qualificou como um ato político desestabilizador realizado por grupos que “não acreditam na democracia do povo haitiano”, que por vários anos vem desenvolvendo uma luta pacífica em relação às suas instituições.
“Esta situação de violência e terrorismo de Estado que vive o povo haitiano foi claramente apoiada pelos Estados Unidos, a União Europeia e a OEA, que estão cientes desta situação, e continuaram a apoiar o presidente agora assassinado”, disse Juan Dionicio Rodríguez Restituyo. Ele pediu também “solidariedade internacional para com o Haiti” e advertiu contra a volta da intervenção estrangeira, que só fez agravar os males do país.
Por sua vez o jornalista norte-americano Garry Pierre-Pierre, que cobre a política do Haiti desde o golpe que derrubou o então presidente Jean-Baptiste na década de 1990, trama que, como denunciou, tinha a mão da CIA, como ficou provado depois, levantou em artigo no The Haitian Times uma pergunta muito indiscreta. “O assassinato de Jovenel Moise nas mãos de mercenários estrangeiros levanta muitas questões para mim e eu pergunto novamente: Que papel, se houver, a CIA está desempenhando aqui?”
O que mais o intrigou é que foi tudo “muito bem organizado”, o que não é uma coisa atualmente, digamos, muito haitiana. Ele igualmente observou como Moise se isolara muito nos últimos tempos.
Na sexta-feira, o jornal colombiano El Tiempo afirmou que, quando o comando mercenário chegou às 2 h da madrugada, Moise já estava morto desde 1 h.
Moise assumiu o cargo como resultado de eleições fraudulentas, cujo primeiro turno teve de ser anulado em 2015. Acabou eleito no ano seguinte, sob abstenção de 77%. Pela constituição do Haiti, seu mandato de cinco anos terminou em fevereiro, mas ele se recusou a renunciar e esticou indevidamente seu mandato por mais um ano.
Ele havia sido o sucessor escolhido a dedo por Michel Martelly, um ex-cantor que virou presidente graças à intervenção direta nas eleições haitianas de 2010-2011 da então secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton.
Ambos tinham vínculos políticos estreitos com ex-membros da ditadura Duvalier, que os EUA apoiaram, e que governou o Haiti por três décadas até “Baby Doc” Duvalier ser derrubado por uma revolta popular em 1986.
Moïse enfrentou oposição de massa nas ruas desde 2018, quando seu governo repentinamente anunciou um aumento de 50 por cento nos preços da gasolina como parte de um programa de “ajuste” do FMI.
As manifestações continuaram quando vazou que US $ 4 bilhões em subsídios à importação de petróleo fornecidos pela Venezuela sob seu programa Petrocaribe, supostamente voltado para o desenvolvimento do Haiti, haviam sido embolsados pelo governo e seus comparsas. A recusa de Moise, em fevereiro, de renunciar após o fim do mandato, levara multidões de volta às ruas.